Bilhete (2)
A vanguarda de Sampa que já subiu em peso. E também a Velha Guarda, a paulistana e a carioca. Gente das duas Penhas e dos morros da Cidade Maravilhosa, das Vilas Ré, Carrão, Cisper, Ermelino Matarazzo, Brás, das quebradas da ZL, e, claro, da Mooca. Noel Rosa, elegante, estava lá. De prosa e batucada com a Miriam, a da caixa de fósforos. E não era o único representante das gerações mais antigas. Donga chegou e trocou cumprimentos amáveis com Sinhô, puxou uma cadeira e ali mesmo, na hora, ambos começaram a rabiscar uma nova letra. Agenor de Oliveira, com um caprichado chapéu feito de jornal, afinava a viola ao lado de Mano Décio quando Clara Nunes entrou. Não é à toa que o mar serenava quando Clara pisava na areia: toda de branco, assim que ela surgiu, tudo ao redor ganhou ainda mais luz, todos ficaram ainda mais iluminados. Com ela vieram Silas de Oliveira, João Nogueira, além de Roberto Ribeiro, e Ismael Silva. Bem naquela hora Dona Zica servia às rodas uma disputada água benta providenciada pelo Bezerra da Silva. Bom cabrito que não berra, o recifense descolara o de beber levando um papo reto com um querubim cuja cara era de destaque de carro alegórico -- a quem, ao recompensar, apenas recomendara “aperta, mas não acenda agora!”
Moreira da Silva, Jovelina da Pérola Negra, Paulo Vanzolini, Mussum, e, com a sogra a tiracolo, Dicró. Carlos Cachaça, Herivelto Martins. Além de músicos e cantores contavam-se nada ruins da cabeça ou doentes do pé jornalistas, poetas, jogadores de futebol, atores, cronistas e escritores dos calibres de Mario Lago, Rubem Braga e João Antônio. E para onde se olhava se ouvia uma cuíca roncando, um surdo, um cavaquinho, um tamborim, um repenique, um chocalho. Ambiente de alegria e de camaradagem, misto de Café Nice com barracão em dia de ensaio. Agepê até trouxe um cachorro magro! O bicho, na dele, parecia que descansava junto a um coqueiro, ou a um fogão de lenha numa casinha branca -- distante, lá, lá, bem longe, onde não mora ninguém, onde não passa ninguém. Ataulfo Alves até tentou brincar com o totó, que, no entanto, manteve-se impassível. Nem mesmo uma escultural mulata desfilando, para lá, e para cá, para lá e para cá, perturbou o cão. Dizia a moça que só estaria tentando se aproximar para pedir ao Guilherme de Brito que cantasse “Meu Dilema”; atento, o sempre parceiro e eterno companheiro do Guilherme, Nelson Cavaquinho, encontrou um jeito de contornar a situação: puxou o violão e, em dueto com Clementina de Jesus, ofereceu à fã do amigo “Quando eu me chamar saudades”, sucesso de ambos que, por sinal, nenhum dos presentes tirou como ironia considerando-se as circunstâncias daquela festa!
Ah, sim, a festa! Neste momento, o anfitrião Adoniran Barbosa se tocou: “Ih, seu Gervásio, cadê aquele malandro que até agora não chegou?” E, depois, virando-se para a “Pimentinha”: “Só está faltando ele, e, há horas, já era para estar aqui. Será que aconteceu algo com nosso récem admitido, Elis?” A mesma pergunta repetida de mesa em mesa ficou sem resposta, o silêncio cresceu até todos se aquietarem com cara de ué. O Mato Grosso, olhando para o Joca, deu de ombros, fez um muxoxo e abriu os braços. Para tentar descontrair, o Moacir ainda gritou “ah, gente, vai ver que ele perdeu o trem das onze!”, bravata pela qual acabou levando um tremendo beliscão da Gabriela. Foi então que a Iracema, ainda sem as meias e sem os sapatos, pediu a palavra. Ela acabara de encontrar um bilhete ponhado debaixo da porta com um que recado dizia assim, ó:
"Ói, turma, num deu pra chegá. Tava vindo, mais incontrei o Tim Maia. Ele me disse que tinha de dar um show, mas preferiu ir pescá e me convidou. Ah, duvido que isso num faz mar, num tem importância, nem vai deixar ninguém com réiva como daquela outra vez, que, por sinar, não aconteceu. Assinado em cruz porque ainda num sei iscrevê"
Arnesto"
N.R.: Ernesto Paulella, o "Arnesto", do samba de Adoniran Barbosa, morreu por volta do meio-dia da quarta-feira, 26 de fevereiro, aos 99 anos. Ele faria cem anos em 15 de dezembro de 2014 e morava ainda no bairro do Brás.
Arnesto sofreu uma fratura de fêmur e foi internado na sexta-feira (21), passou por cirurgia e estava no hospital. Era advogado aposentado, viúvo e estudioso de latim. Ele garantia que nunca convidou o amigo para um samba e nunca lhe deu "um bolo", como diz a canção.
"Isso é coisa da cabeça dele", assegurou, em entrevista ao G1 em 2010. Ele lembrava com carinho que Adoniran, semanas após serem apresentados, em 1935, pediu-lhe um cartão de visitas. "Ele falou: 'Você é Arnesto, porque seu nome dá samba. Você aduvida?'", contava Ernesto, imitando a voz rouca do amigo. "Eu não aduvido mais", respondeu. O compositor prometeu escrever, então, uma canção para o amigo.
Aproximadamente 17 anos depois, Ernesto foi surpreendido com a música em sua homenagem sendo tocada na rádio. "Fiquei muito emocionado", conta.
Mais tarde, Ernesto tentou dar um puxão de orelhas no amigo. "Adoniran, você me meteu em uma encrenca. Todo mundo me pergunta por que eu convidei você para o samba", diz o advogado, que também era músico. Adoniran foi incisivo: "Arnesto, se não tinha mancada, não tinha samba". Quando questionado pelo amigo se havia gostado do samba, Ernesto declarou a ele: "Você me abriu ao meio. [Esse samba] foi a coisa mais bonita que me aconteceu".
Texto extraído do site G1