sábado, 1 de março de 2014

Bilhete 2 (Barulho d'água)

Bilhete (2)



A vanguarda de Sampa que já subiu em peso. E também a Velha Guarda, a paulistana e a carioca. Gente das duas Penhas e dos morros da Cidade Maravilhosa, das Vilas Ré, Carrão, Cisper, Ermelino Matarazzo, Brás, das quebradas da ZL, e, claro, da Mooca. Noel Rosa, elegante, estava lá. De prosa e batucada com a Miriam, a da caixa de fósforos. E não era o único representante das gerações mais antigas. Donga chegou e trocou cumprimentos amáveis com Sinhô, puxou uma cadeira e ali mesmo, na hora, ambos começaram a rabiscar uma nova letra. Agenor de Oliveira, com um caprichado chapéu feito de jornal, afinava a viola ao lado de Mano Décio quando Clara Nunes entrou. Não é à toa que o mar serenava quando Clara pisava na areia: toda de branco, assim que ela surgiu, tudo ao redor ganhou ainda mais luz, todos ficaram ainda mais iluminados. Com ela vieram Silas de Oliveira, João Nogueira, além de Roberto Ribeiro, e Ismael Silva. Bem naquela hora Dona Zica servia às rodas uma disputada água benta providenciada pelo Bezerra da Silva. Bom cabrito que não berra, o recifense descolara o de beber levando um papo reto com um querubim cuja cara era de destaque de carro alegórico -- a quem, ao recompensar, apenas recomendara “aperta, mas não acenda agora!”
 
Moreira da Silva, Jovelina da Pérola Negra, Paulo Vanzolini, Mussum, e, com a sogra a tiracolo, Dicró. Carlos Cachaça, Herivelto Martins. Além de músicos e cantores contavam-se nada ruins da cabeça ou doentes do pé jornalistas, poetas, jogadores de futebol, atores, cronistas e escritores dos calibres de Mario Lago, Rubem Braga e João Antônio. E para onde se olhava se ouvia uma cuíca roncando, um surdo, um cavaquinho, um tamborim, um repenique, um chocalho. Ambiente de alegria e de camaradagem, misto de Café Nice com barracão em dia de ensaio. Agepê até trouxe um cachorro magro! O bicho, na dele, parecia que descansava junto a um coqueiro, ou a um fogão de lenha numa casinha branca -- distante, lá, lá, bem longe, onde não mora ninguém, onde não passa ninguém. Ataulfo Alves até tentou brincar com o totó, que, no entanto, manteve-se impassível. Nem mesmo uma escultural mulata desfilando, para lá, e para cá, para lá e para cá, perturbou o cão. Dizia a moça que só estaria tentando se aproximar para pedir ao Guilherme de Brito que cantasse “Meu Dilema”; atento, o sempre parceiro e eterno companheiro do Guilherme, Nelson Cavaquinho, encontrou um jeito de contornar a situação: puxou o violão e, em dueto com Clementina de Jesus, ofereceu à fã do amigo “Quando eu me chamar saudades”, sucesso de ambos que, por sinal, nenhum dos presentes tirou como ironia considerando-se as circunstâncias daquela festa!
 
Ah, sim, a festa! Neste momento, o anfitrião Adoniran Barbosa se tocou: “Ih, seu Gervásio, cadê aquele malandro que até agora não chegou?” E, depois, virando-se para a “Pimentinha”: “Só está faltando ele, e, há horas, já era para estar aqui. Será que aconteceu algo com nosso récem admitido, Elis?” A mesma pergunta repetida de mesa em mesa ficou sem resposta, o silêncio cresceu até todos se aquietarem com cara de ué. O Mato Grosso, olhando para o Joca, deu de ombros, fez um muxoxo e abriu os braços. Para tentar descontrair, o Moacir ainda gritou “ah, gente, vai ver que ele perdeu o trem das onze!”, bravata pela qual acabou levando um tremendo beliscão da Gabriela. Foi então que a Iracema, ainda sem as meias e sem os sapatos, pediu a palavra. Ela acabara de encontrar um bilhete ponhado debaixo da porta com um que recado dizia assim, ó:
  
"Ói, turma, num deu pra chegá. Tava vindo, mais incontrei o Tim Maia. Ele me disse que tinha de dar um show, mas preferiu ir pescá e me convidou. Ah, duvido que isso num faz mar, num tem importância, nem vai deixar ninguém com réiva como daquela outra vez, que, por sinar, não aconteceu. Assinado em cruz porque ainda num sei iscrevê"

Arnesto"

 
N.R.:  Ernesto Paulella, o "Arnesto", do samba de Adoniran Barbosa, morreu por volta do meio-dia da quarta-feira, 26 de fevereiro, aos 99 anos. Ele faria cem anos em 15 de dezembro de 2014 e morava ainda no bairro do Brás.
 
Arnesto sofreu uma fratura de fêmur e foi internado na sexta-feira (21), passou por cirurgia e estava no hospital.  Era advogado aposentado, viúvo e estudioso de latim. Ele garantia que nunca convidou o amigo para um samba e nunca lhe deu "um bolo", como diz a canção.
 
"Isso é coisa da cabeça dele", assegurou, em entrevista ao G1 em 2010. Ele lembrava com carinho que Adoniran, semanas após serem apresentados, em 1935, pediu-lhe um cartão de visitas. "Ele falou: 'Você é Arnesto, porque seu nome dá samba. Você aduvida?'", contava Ernesto, imitando a voz rouca do amigo. "Eu não aduvido mais",  respondeu. O compositor prometeu escrever, então, uma canção para o amigo.
 
 
Aproximadamente 17 anos depois, Ernesto foi surpreendido com a música em sua homenagem sendo tocada na rádio. "Fiquei muito emocionado", conta.

 
Mais tarde, Ernesto tentou dar um puxão de orelhas no amigo. "Adoniran, você me meteu em uma encrenca. Todo mundo me pergunta por que eu convidei você para o samba", diz o advogado, que também era músico. Adoniran foi incisivo: "Arnesto, se não tinha mancada, não tinha samba". Quando questionado pelo amigo se havia gostado do samba, Ernesto declarou a ele: "Você me abriu ao meio. [Esse samba] foi a coisa mais bonita que me aconteceu".

Texto extraído do site G1

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Barulho d'água (A procissão e o cão sem dono)

A procissão e o cão sem dono
 
A procissão, como todo ano, principiou com alguns gatos pingados aos primeiros raios do sol. Como de costume, arrebanhou depois fiéis por todos os vilarejos pelos quais passou. Era gente que fluía do fundo dos vales, da beira do rio, das grotas mais longínquas, dos limites com outras cidades, das casas mais acanhadas ou das melhores estruturadas à beira da estrada de chão batido. Por onde seguia, encontrava estandartes enfeitando postes e porteiras, fitas e outros adereços coloridos ornamentando cercas e sebes, até mesmo chaminés e automóveis.
 
Com poucas horas, da ponta ao cabo, já se contavam entre cem a 150 pessoas. Até alcançar a Matriz, já passando das 16 horas, a tendência sempre fora a de atrair pelo menos meio milhar. Isto de acordo com contagens consideradas oficiais, posto que divulgadas em manchete da Gazeta com base em observações policiais e dos assessores clericais, pois de boca-a-boca falava-se, por baixo e sem admissão de margens de erro, em 1.500; o recorde, há três décadas, teria batido em 2.000, ocasião em que o arcebispo do Estado subira até a diocese para inaugurar o novo templo.
 
 (A chegada dos adoradores à praça central jamais deixou de ser celebrado com festa, estardalhaço, e vivas. Mesmo em 1973, quando choveu torrencialmente o dia todo e um dos córregos que cortam o percurso transbordou, rompendo cordão ao meio e arrastando consigo dezenas de corpos depois de arrebentar a frágil ponte, houve queima de fogos. Quermesse, bandinha ocupando o coreto, palhaços, sorteios e outras formas de entretenimento completam a oferta de atrações que ano a ano ganham concorrentes e novos serviços. A convivência, entretanto, é pacífica, o espírito que reina é mesmo o de devoção, de respeito, de paz. Quem não consegue lugar dentro da igreja se alegra em assistir à missa pelos telões [cortesia dos donos do supermercado local], com a vantagem de que entre um comentário do sermão e um ato litúrgico pode-se degustar um saquinho de pipocas. Com muita descrição, até um vinho quente desce bem.)
 
  
Nesta presente edição, em determinado ponto, ainda a boa pernada do destino, um vira-lata juntou-se aos caminhantes. Obstinado, peregrinou de ponta a ponta várias vezes, abanando o rabo. A alguns farejou, em outros colou e os seguiu por breve tempo, sempre a suplicar nos olhos por um bocado de farinha, ou um teco de cuscuz. Talvez estivesse à procura do ou de um dono, cansara da vida pelo meio do mato, dormindo em tocas e em buracos, debaixo de árvores. Apesar do privilégio de curtir estrelas e luas, ora ouvindo a cantoria dos sapos, ora o miado de uma pintada, havia as noites frias durante as quais nem as corujas, ou os morcegos, ousavam desafiar. Um lar viria a calhar, ainda mais se equipado com lareira, ou, vá lá, um prosaico fogão à lenha. Contentar-se-ia com uma polenta rala regada a caldo de frango, uma travessa de leite, um corte menos nobre da mesma ave, um tapete roto na varanda para esquecer a carcaça e relaxar. Quando não estivesse a pestanejar, ou a curtir o tinir das cordas da viola no alpendre dedilhando "Corixo", poderia ser útil combatendo eventuais invasores do galinheiro ou do chiqueiro: lobos nunca lhe meteram medo, gambás não o atordoaram jamais, e sabe muito bem como escapar do bote dos cascavéis e expulsá-los para longe da área delimitada pelos mourões nos quais mija. Acompanharia o senhor até e durante a lida com a lavoura, ajudaria a apascentar o gado, latiria para comunicar a aproximação de visitas, e, ai sim, iria botá-las a correr caso fossem indesejáveis.
 
 Durante o vaivém, o cachorro ganhou, sim, alguns mimos. Porções da merenda que o povo trazia em mucutas lhe adoçaram os beiços, um carinho aqui ou acolá serviu para compensar as bicas que tomava dos mais exaltados e maldosos, os xingamentos para afastá-lo, os "passa, Totó!" grunhidos com ódio, paus, bengalas e pedras nas mãos. Ah, e pensar que estes impiedosos estavam ali a rezar e a entoar ladainhas por curas e outras graças, inclusive o brutamontes que rangeu os dentes com tamanha ferocidade que o fez julgar ser quem o agrediu o bicho, não ele que se desloca em quatro patas, característica que depois daquele coice por pouco não perdeu, ficando sem o par traseiro e obrigado a viver o resto dos dias deixando sulcos no solo de tanto arrastar a bunda.
 
 O golpe, ou mais aquela pancada, seria a última que suportaria, convenceu-o a mudar de estratégia. Não mais transitaria entre as pernas dos fiéis, iria doravante completar o percurso junto àqueles vestidos de aventais brancos e estolas roxas. O minúsculo grupo suportava aos ombros um pedestal, ao centro do qual repousava uma imagem. Ao chegar à cidade estava fatigado, e o reboliço do espetáculo pirotécnico que de repente se misturou aos primeiros acordes de instrumentos o assustou. Ainda assim, manteve-se junto ao andor. Fotografado, apareceu colorido em seis colunas na capa da edição especial da Gazeta, nas imagens da repetidora que captava os eventos por aquelas bandas, virou assunto e ganhou repentina, mas efêmera fama.
 
 Um sacristão o encontrou na manhã seguinte, vasculhando restos de comidas pelo chão. Pernoitara dentro da barraca de pastel e apresentava a cara amarrotada de sono, mas foi prontamente reconhecido pelo homem, que levava jornais dobrados debaixo de uma das axilas, pães e leite. A partir de então, "Totó" tornou-se Matilde. O nome feminino para ele, um macho, jamais trouxe dissabores, sobretudo por aludir à caridosa Padroeira cujos bens a rica mulher distribuiu aos pobres e aos doentes, mais de uma vez em vida. O sacristão o amava. E morava num sobrado defronte à praça, donde, da varanda, uma vez por ano, deitado numa macia poltrona, o cão podia curtir os crisântemos espocando no céu e aquele formigueiro lá embaixo...
 
 
7 de novembro de 2013 às 17:02
 


quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Barulho d'água (Maria Helena)

 
 
31 de outubro de 2013 às 10:27

Barulho d'água (Embarque)

Embarque
 
Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, e, assim, sucessivamente, até as pálpebras, finalmente, fecharem-se. Nem sei em que altura da contagem, de repente, o sono me recolheu da plataforma. Ah, benditos pingos de chuva que repicando na lata esquecida sob o novo beiral puseram-me a bordo do trem. Se não tinham lã, bem me lembro: um a um várias vezes pularam a cerca entre o lado de cá e o de lá...
 
 
1 de novembro de 2013 às 20:31

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Barulho d'água (Marcardor de páginas)

Marcador de páginas
 
A aranha de pernas longas e bunda grande assusta mais pela aparência do que pela ferocidade. É tão inofensiva que nem sequer se mexe na teia. As moscas voam para lá, e para cá, para lá e para cá, até incomodam a gente da mesma forma que atazanam o gado. Em vão vacas, bois e bezerros balançam o rabo tentando espantá-las ou golpeá-las, e de vez em quando ainda levam umas ferroadas; cada ferroada, pode ser um novo berne. Nem fome o estranho octópode parece sentir: outro inseto caiu na aparentemente frágil mandala há dias e ainda está lá, paralisado, pois que morto.
  
Daqui da varanda, sentado sobre o mesmo banco de madeira pintada de azul-acinzentado no  qual desde menino me amoldo para leituras, divagações, e alguns pecadinhos, miro sempre a estrada. Conto os caminhões, os carros de passeio, alguma alma que de vez em quando peregrina. Como trem não corre por aquelas paragens e mineiro não perde embarque, ônibus que pela rodovia sobe, ou desce, é sinônimo de relógio. Se forem nove horas, ou se já bateu o meio-dia, o povo descobre pelo vaivém deles. Pontuais, regulam compromissos como o momento de tomar banho para ir à escola, avisam ao boia-fria se já é tempo de pousar a enxada, desembrulhar a mucuta e levá-la ao fogo improvisado para o almoço sob a mangueira. O pescador também fica com um olho na linha, outro na pista para não perder a hora de voltar ao rancho para a fritada de traíra ou de lambari. Um que segue para Rio Pomba está sempre cadenciado com o carrilhão da sala: treze e três quartos quando soa a badalada, o veículo cruza à frente do sítio, infalível.
 
Já desbravada metade do livro, ao relincho de um cavalo, responde a ciriema. Depois, de novo, eclode o silêncio de perfurar tímpanos. O ouvido sai a galgar e encontra o chuá da bica, água que desce das grotas serena, fresca e límpida, sem carregar a nódoa do bambu pela qual escorre. Mais uns passos abaixo, o pino do carneiro d’água em sua incansável lida de bater, bater, bater, bater, bater, e bater. Ou será a marreta do Osmar fincando mais um mourão de cerca, bem fundo para que nenhum bicho o leve no peito?
 
O sol desce em silêncio, solene, morro abaixo, deixando sombra em seu rastro. Já os grilos começam a cricrilar e a fumaça que sai pela chaminé a expelir os odores vespertinos que perfumarão a mesa em mais um jantar.
  
A leitura quase no fim, sobre o umbral da janela titia deixara um copo de leite, uma caneca esmaltada de café quentinho, um pedaço de broa recém-saída do forno, e um Capri. Lancho com displicência e ganho um bigodinho branco de espuma. Quando vou acender o cigarro, mainha materializa-se do nada. Não gosta de me ver fumando, ralha para que eu use meu lenço para limpar a boca e me arrolha por seu estar lendo sem meus óculos, os quais nem ao menos saberia onde estavam naquelas alturas. Mal ela virou as costas, a prima entrou em cena. Ladina, lambeu a marquinha do leite, e com a língua, roçou-me os lábios. Senti o hálito lascivo e quente vindo do interior daquele vulcão. Estremeço, cai-me das mãos o livro. Rápida, ela me furtou o marcador de páginas e se foi provocante, em seu curto vestido vermelho; com uma das alças caídas deixou-me ver parte dos seios, um pouco sem querer, muito mais de propósito. Terei de recuperá-lo, caso queira, bem mais tarde, para lá, bem para além do paiol.
 
O movimento na estrada agora parece entrar em longas pausas. A família toda se espreme na sala para ver a novela do casal mais querido do Brasil; depois, virá o carteado e as modas de viola. Mas tenho contas a acertar e saio ao terreiro iluminado pela lua cheia, seguido pelo velho e quase cego gato angorá. A trilha está clara e para facilitar ainda mais a caminhada milhares de estrelas cintilam. Precisarei transpor a cerca de arame farpado refeita com a ajuda de meu pai depois que a última chuvarada levou tudo, contornar o chiqueiro, adentrar uma picada e seguir beirando o regato.
 
Não levo arma, nem faca, só uma canção que assovio. Não preciso temer bote de cascavel, lobisomem que se desembrenhe de repente, ou mula-sem-cabeça que resfolegue atrás de mim; até ouço os cascos dela batendo contra as pedras, mas carrego comigo o terço que vovó Sianinha me deu de presente, e a imagem de São Jorge no bolso da camisa, amuletos que sempre me valeram e que me acompanham como meus pés vão comigo, inseparáveis de mim. O gato é mesmo companheiro, ainda não desistiu de me seguir. Para trás vai ficando o cheiro das goiabas do pomar que, amanhã, ainda bem cedinho, irei visitar...

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Domingo perfeito (Barulho d'água)

Domingo perfeito
 
Assistir às apresentações do XI de Junho onde, atualmente, encontra-se instalado o Centro de Treinamentos do Grêmio Esportivo Osasco, no jardim Cipava, na zona Sul da cidade, era um dos meus programas prediletos no final dos anos 1970, começo da década seguinte. Chamados por “segundo e primeiro quadros”, os dois times amadores reuniram vários dos irmãos mais velhos dos meus vizinhos ou dos amigos de minha idade, e, por ficar bem pertinho de minha casa, que era na Vila Yolanda, eu batia cartão quase todos os domingos lá no campo do XI, onde costumava ficar sentado no barranco que ficava atrás do gol aos fundos da atual Escola Estadual Deputado Guilherme de Oliveira Gomes, situada à Rua Hipólito da Costa. Desta “arquibancada”, lugar privilegiadíssimo, presencei jogos memoráveis e vi atuar usando o uniforme amarelo e preto do XI de Junho, por exemplo, o meio-campista Peres, campeão brasileiro de 1977, autor de um gol na decisão por pênaltis no enlameado estádio Mineirão, para o São Paulo, contra o Atlético Mineiro, decisão que ficaria marcada, ainda, pela fatídica entrada do bom e já falecido meio campista tricolor, o querido Chicão, lance tão duro que partiu ao meio as pernas do oponente do Galo, Ângelo.
Em um destes alegres  domingos, o XI de Junho promoveria um badalado festival, ocasião em que bons times de várias localidades se defrontariam e, ao final de cada embate, o vencedor levantaria um troféu. Esta modalidade de disputa amadora até hoje está em voga; mas dependendo do número de participantes, a tabela, àquela época, às vezes ficava muito extensa. Assim, para que todas as partidas ocorressem ainda com luz natural, já que campos de várzea raramente possuíam iluminação artificial há quarenta anos, o tempo delas poderia ser reduzido, chegando ao máximo de 35 minutos por etapa. Em caso de empate, ocorria, como ainda hoje, decisão por pênaltis. Naquele dia no jardim Cipava, o “Cascudão” (era assim que se chamavam os segundos quadros, ou seja, a formação tecnicamente inferior entre as duas de uma mesma equipe) abriria as disputas, estreando uniforme novo, às 9 horas. Acordei tarde, engoli um pedaço de bolo e um pão com manteiga, acompanhados por café com leite, sai voando. Cheguei com a bola já rolando, não me lembro contra qual adversário, mas o XI de Junho ganhou por 2x0 e consegui chegar a tempo de ver ambos os gols.
O duelo do primeiro quadro, pela ordem, seria o último, ou seja, a final do dia. No papel, os oponentes deveriam estar dentro das quatro linhas, prontos para o pontapé inicial, às 16h15. Atrasos, entretanto, eram inevitáveis, já que, não raro, várias decisões morriam na marca da cal devido ao equilíbrio técnico entre os candidatos ao troféu, pois apenas timaços eram convidados pelos organizadores. Balão subindo, balão descendo, balão para o mato, balão para o quintal das casas contíguas, por volta do meio-dia meu estômago começou a tocar jazz, tango, rumba, moda de viola, tudo junto e misturado. À beira do campo enxergava vendedores de cachorro-quente, de pipocas, no entorno botequins ofereciam a chance de fazer uma boquinha, pedir pastel, salsicha no palito, coxinha, torresmo, mais para os lados da Vila dos Artistas havia padaria.  Mas além de duro, eu estava tão ligado nas partidas que praticamente ignorava aquele samba do crioulo doido e famélico. Com o passar das horas, porém, o zabumba bumba esquisito tornar-se-ia cada vez mais agudo. Contrariado, conclui: seria melhor voltar para casa, bater um rango e regressar o mais breve possível -- o que significava ter de convencer minha mãe a, novamente, ausentar-me, embora, desta vez, devidamente alimentado. Quando já começava a descer o barranco, avistei meu pai chegando à ponta da rua, do outro lado do campo, pedalando uma das muitas bicicletas antigas que ele montava e desmontava.  
Preparei-me para a bronca, já lamentando ter de perder o resto do festival e o jogo do primeiro quadro do XI de Junho, pois, na certa, ele estaria indo até lá para me dar um pito e ordenar minha imediata volta.  Enganei-me, no entanto, e que bom ter me equivocado! Quando me alcançou, sorridente, o velho perguntou-me quem estava jogando e quem ganhava estendendo-me um pequeno embrulho, tirado de um embornal feito de uma velha calça jeans que ele carregava para baixo e para cima. Ao abrir o pano de prato, que ainda guardava a temperatura do que embalava e um delicioso e familiar cheiro, dentro de um saco de papel daqueles pardos de padaria e de mercados, eu encontrei dois pães franceses com ovos mexidos em molho de tomate com cebola bem picadinha. Havia também neste frugal farnel duas laranjas, descascadas, com as tampas cortadas, sem machucados, intactas, prontas para chupar, mais um generoso naco de queijo com goiabada. Em uma garrafinha de plástico, minha mãe mandara, ainda, tubaína, bem geladinha. Antes de subir na magrela e se retirar, meu pai entregou-me, para o caso de esfriar, o meu único agasalho -- uma surrada jaqueta de nylon vermelha que tinha um emblema de escuderia de F1 sobre um dos bolsos, mais algumas moedas.
De volta ao meu lugar cativo no barranco, saboreei o primeiro lanche e metade do refrigerante mastigando e bebericando bem devagar, curtindo cada pedacinho daquela delícia, aproveitando o intervalo da partida que rolava na hora da merenda. Contei as moedas: vi que seria possível comprar picolé e ainda, mais tarde, um pacote de pipocas, estouradas na hora. Saciado, feliz pela generosidade de minha mãe e pelo esforço de meu pai, bastava esperar o momento de o primeiro quadro do XI de Junho entrar para o embate, trajado de camisa com gola careca e calções negros, com faixa vertical amarela por trás do distintivo, de acordo com as descrições de como seria o fardamento a ser estreado naquela tarde. 
Perto da hora do jogo, começou a soprar repentinamente um vento meio frio. Embora ainda houvesse sol o suficiente para manter-me aquecido, resolvi vestir a jaqueta. Ela era um pouco larga, e comprida, de forma que, sentado, pude puxá-la até a altura dos joelhos, prolongando a proteção para as minhas coxas. Cheiro de bacon sendo frito para adicionar à nova panela de pipocas que logo mais seriam estouradas ganhou o ar. A charanga do XI de Junho chegou, animando o ambiente com uma ruidosa batucada e marchinhas de incentivo ao time. Um casal de idosos, trazendo um vira-lata puxado por uma corrente, também se acomodou no barranco a esta altura já apinhado, ambos enrolados em uma bandeira preta e amarela que ela costurara. O cachorro me olhou com simpatia, abanou o rabo e latiu, duas vezes. O dono do cão, então, dirigiu-se a mim todo prosa: “O Tupi dá sorte para o primeiro do XI, o time jamais perdeu quando o trouxemos em outras ocasiões”.
Pouco tempo depois, em meio às comemorações por mais um troféu que ficaria no jardim Cipava, lá estava o bicho dando a volta olímpica misturado aos torcedores, aos jogadores, e à charanga, latindo sem parar, saltitante, promovendo uma gostosa algazarra. Minha barriga, novamente, repicava no ritmo de um reco-reco afinado como se fosse cuíca. Abandonei o cordão e, sentado, comi a parte restante das pipocas que havia sobrado no saquinho e que não dividira com o Tupi durante o jogo. O segundo pão com ovos mexidos saciou-me por inteiro. De reserva eu ainda tinha aquele “Romeu e Julieta”, que, no entanto, ficaria para depois do jantar. 
Eu estava bem feliz, mas para o domingo terminar completo, faltava saber o placar do clássico que envolvia o Corinthians. Atravessava a pinguela sobre o córrego João Alves a caminho de minha casa quando cruzei com um senhor que levava um rádio de pilhas grudado ao ouvido esquerdo. “Quanto está o jogo, tio?”, perguntei. “Um a zero Timão, gol do [Geraldão] Manteiga”, respondeu, erguendo o polegar da mão direita, placar que perdurou até o derradeiro apito do árbitro Pantera-Cor-de-Rosa encerrando mais um Majestoso travado no Cícero Pompeu de Toledo.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Coleção de tampinhas (Barulho d'água)

Coleção de tampinhas
 
Briga de travesseiro, guerra de mangueira, deslizamento na lama, campeonato de peidos: lembra-se como era gostoso pisar em bosta de vaca? 
  
Mãe-na-mula, queimada, amarelinha, rela-rela-ajuda-ajuda: na hora de dar um tapa na bunda e ir se esconder, você acertava onde? 
 
Joelhos ralados, tampão do dedo do pé estourado, bolada no saco, dentes arrancados com linha: quantas vezes você tomou uns cloques do teu pai?

Piolho na escola, carrapato no paiol, furúnculo lá, bicho de pé: que tipo de quebranto sua nona teve de tirar de você? 
 
Coleção de tampinhas, cintos de maços de cigarro, bicicleta dobrável, bola de capotão: quem nunca calçou Kichute, Conga, Bamba ou Melissa? 
 
Cola para a prova, circo por debaixo da lona, nadar pelado na lagoa, roubar a cana da vizinha: volte dez casas quem nunca andou pelos trilhos de um trem!
 
Espiar primos pela fechadura, pera-uva-maça, cabular aulas para namorar, mentir para o padre durante a primeira confissão: jogue de novo quem levava catecismos no meio dos livros.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Barulho d'água (Luas)

Luas

A sorte me brinda,
possuo duas camisas --
posso ir ver a lua.
 
 
Quando a lua é citada no poema haicai escrito pelos mestres japoneses, na maioria dos casos, eles referem-se à lua cheia (mais precisamente a primeira lua cheia do outono), fase dela que encanta e inspira tanto quem a observa que muitos autores, não só os românticos, a reverenciam como se fosse divindade, ou musa. Os poemas muitas vezes são, portanto, demonstrações de amor, fascínio puro pelo satélite da Terra.
Neste busquei imprimir outra característica de autores como Kobaiashy Issa: a humanidade, revelada pela humildade e pela consciência de que o homem NÃO é o centro do universo. Aqui o observador sente-se feliz pelo simples fato de possuir duas camisas e poder sair de casa para contemplar a lua melhor vestido, sem ter de comparecer ao encontro usando, provavelmente, a mesma da labuta diária.
A lua, por sinal, desperta tanta admiração em poetas de uma maneira geral que o chinês Li Po, rezam os estudiosos de sua obra, teria morrido afogado... após saltar em um lago, onde a vira refletida, no afã de abraçá-la! Li Po estaria embriagado por vinho, posto que o destilado seria outra de suas paixões. Tenho uma série de poemas em formato haicai dedicados à lua, inclusive este que lembra o suposto gesto de Li Po (Bêbado de vinho,/grita à lâmpada do poste--/amo-te, lua cheia!). Arrisco, portanto, na arte dos três versos, e, de tabela, fica público minha quedinha pela lua. Mas de uns cálices e copos, entretanto, passo longe. Ademais, nem sequer sei nadar.
Aquele poema do qual mais gosto, e virá após os dois pontos, é, porém, meramente uma composição, um exercício para brincar com as palavras e com as imagens. Não ilustra um fato real, um fenômeno que observei; posto que trata-se de algo imaginado, e não vivenciado, é um texto que poderia ser classificado como "não-haicai" por contrariar normas clássicas, aqueles mandamentos mais tradicionais das escolas seculares do Japão e que têm muitos e bons seguidores entre nossos contemporâneos:
 
Com meia no céu/mais a meia da lagoa/uma lua cheia.   
 
 
Abaixo, outros textos em formato haicai de minha autoria com o tema lua, exceto os dois últimos, cujos autores eu desconheço. O penúltimo é, na verdade, uma frase grafitada em um muro, cuja foto pode ser conferida na fanpage P.U.T.A.
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No céu que cabe/no vão de minha janela/a lua cheia
Voando lá perto/ o avião por um segundo/inteiro na lua*
Lua cheia/ o vizinho fuma à janela/seu canário canta
Brincando de clicar,/meu filho dispara flashes--/A lua no visor.
Noite na rua/último ônibus perdido/distraído com a lua
Bolinha de gude--/Até o som das estecadas/a lua me faz ouvir.
A primeira lua--/Esquecidos no varal,/doze pregadores. 
A caminho de Minas/esticadinha nas pernas/para ver a lua 
Meninos de rua/o último a dormir/apaga a lua**
Cidadezinha qualquer/Seis lâmpadas na rua/sete com a lua**
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* Poema classificado em nono lugar no I Concurso de Haicai de Outono, cujo tema era Lua, promovido pelo
 jornal Nippo-Brasil, em 1.999.

domingo, 14 de abril de 2013

Barulho d'água (O casal)

O casal
 
Cair da tarde, praça semideserta. Um casal de jovens namorados, entrando na puberdade, matando aulas, troca tapinhas e risinhos. Ah, mas que delícia é a vida: se é que já não rodopiou, demora nada, o mundo estará rodopiando, rodopiando, atrás ou debaixo dum pé de qualquer coisa...
 
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Publicado, em forma de poema, na página 58 da Antologia de Poesias, Contos e Crônicas Scortecci, 16a. Bienal Internacional do Livro de São Paulo - 2000, com o pseudônimo Henrimar

Barulho d'água (Descoberta)



Descoberta
 
Observo o peixe em incansável singrado, centenas de vezes, do fundo à tona da linha de superfície do aquário, sempre tão fluído e tão plácido quanto à água com a qual convive. Vez por outra ele estaciona e um ponto ao acaso, e, junto ao vidro, dando uma pausa no vaivém, também me manja. Até que, passados alguns instantes desta troca de olhares, percebo empatia mútua, em suas pupilas há um quê qualquer que faz dele mais do que um bicho -- um delicado ser que, voltando segundos antes desta descoberta, sequer era de estimação, apenas ocupava há meses e quase despercebido um pote em um canto da sala.
Intrigo-me, não sei ao certo e me pergunto a fundo, embora eu já desconfie: qual seria este sentimento?
Aceito esta impressão e considero-a como válida. Apago o cigarro, a luz, vou me deitar: a noite desta terça-feira de maio açoita as venezianas com seu vento frio. O peixe de brilhantes escamas azuis com tons púrpura fica lá, em seu aquático mundo, insone, sereno. Rumo à cama acompanha-me forte sensação: sobre a cantoneira da sala, vivendo feliz, há um velho-novo amigo dentro do recipiente que removerei, cuidadosamente, para o centro da mesa, ao qual, a partir de amanhã, terei de passar a desejar bom-dia...
 

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Barulho d'água (A última noite de Aninha)

A última noite de Aninha (do original Aninha está a fim)
Aninha cortou refrigerante, massas, carne vermelha e o que mais ama: chocolate. Combinou com a nutricionista perder quatro quilos, enxugou seis. Não que estivesse gorda, ou acima do peso: queria apenas ficar mais atraente. Na academia, realçou algumas formas, três aulas por semana. Aos finais de semana, cumpriu o mesmo ritual: pedalar duas horas, tanto aos sábados, quanto aos domingos. E, de quebra, nos feriados.
Aninha mudou todo o guarda-roupa, gastou pelos shoppings mais badalados, passou a frequentar salão refinado, refez-se da cabeça aos pés.  Aulas de Inglês, de Espanhol, de Português, de etiqueta, de postura, de como caminhar com elegância e sorrir fatal, um enólogo particular. Decorou endereço de restaurantes vips, traçou roteiros de viagens por lugares de tirar o fôlego e ao alcance de poucos. Agora está ficando escolada em poesias -- até já arrisca uns versos, com rigor métrico, mas também oswaldianos, planeja até um livro --, e mergulhou nos clássicos. Amou as personagens de Almodóvar, considera Antonioni o melhor de todas as gerações da sétima arte, achou muito cabeça Truffaut. E concluiu que prefere a versão escrita de Comer, Amar e Rezar...
Aninha sabe que a lista de concorrentes dela é extensa, mas atualmente está apostando muito em si própria. Aprendeu com tudo o que tem experimentado e feito a também polir a autoestima, sem contar que o baralho e os demais sortilégios têm sido favoráveis e recomendaram ir em frente sem medo. Para ajudar ganhou ainda mais confiança após girar entre Paraty, Cabo Frio e Búzios e por onde deixou pegadas na areia receber e desfrutar elogios, convites, propostas, cantadas, telefonemas, mensagens, flores, descontos, presentes, músicas, brindes em taças finas, jantares, passeios de iate e muito mais. Entusiasmou-se, demonstrou simpatia, cordialidade e até afeto com os rapazes e os cavalheiros, alem de uma atrevida salva-vidas. Entretanto, em todas as ocasiões manteve-se sóbria, guardou-se para o que espera será um grand finale.
Aninha não se arrependeu de ter segurado a onda: o que está em jogo e almeja justificará quando alcançado tantos sacrifícios e renúncias, os investimentos não serão em vão. Já à véspera de retornar da viagem de férias ao litoral fluminense soube pelo telefonema de uma amiga que Leandro está sem par na dança, voltou para a pista, enfim encerrou com Alessandra o casamento que já vinha dando sinais de fracasso incontornável.  A hora da cartada decisiva ficou, portanto, bem próxima. Ainda no hotel, olhou-se no espelho, demoradamente. Neste ritual, passou as pontas dos dedos nos cabelos, simulou que os prenderia em coque, a língua roçando instintivamente os lábios apalpou os seios. Alisou a barriga, empinou o bumbum, mediu as coxas e conferiu a silhueta, observando-se de perfil, tanto à direita, quanto à esquerda. Sorriu. Então cerrou os olhos, e pausadamente respirou até se sentir leve e adormecendo, curtindo a cada expiração a própria imagem que há pouco foi esmaecendo na escuridão até reabri-los para a luz. Por fim, atirou-se à cama. Agarrada ao travesseiro dormiu sem sobressaltos a última noite antes de trazer a tona a Ana Luísa de Almeida Tavares que havia se encolhido em seu interior, que por tantos anos e sem motivos ela mesma sabotara...

Barulho d'água (Durante a viagem)

Durante a viagem
 
Sim, era só uma garotinha, ainda. Catorze, talvez, no máximo, quinze anitos. E o que posso fazer se estas coisas bolem na/com a gente? Sem contar que,  embora comportadíssima, ela estava mais do que com as manguinhas  de fora, deixando aparecer a barriguinha morena, a cintura delicadamente entalhada, ah, o umbigo. E o rabinho de  cavalo -- mulheres  com rabo de cavalo me deixam maluco --, o pescoçinho? É como estar passando pela rua e avistar da calçada, dentro do quintal bem murado e guardado por um cão feroz, a fruta que você prefere já quase  ao ponto de ser saboreada: a fome não bate na hora, mano? Queria olhar mais bestialmente, ah, queria, mas   encrenca, e ai, culpa: a Carmem, que trabalha com minha esposa e eu ainda não havia identificado, estava bem ao lado da ninfeta e poderia ganhar o lance, entregar-me à patroa e ai eu estaria ferrado. O Júlio César diria que cometi pecado capaz de me lançar direto aos tachos do inferno e envergonhar o Coisa Ruim só porque tenho aliança no dedo e barba na cara;  mas, ah, véio, espera ai que eu vá me ajoelhar no milho e pedir perdão por isso, só espera! Veja bem, para mim, a culpa é de Deus! Foi Ele quem me dotou de libido e faz correr em minhas veias, embora até há pouco cruelmente sublimadas, estas energias de macho. Por conta da fisiologia, isto é, da natureza pura e simples, meu estremecimento da cabeça aos pés, reforçado pelo entumescimento, durou o resto da viagem. E só arrefeceu quando desci do ônibus (no mesmo ponto no qual a   Carmem que, álias, nem me viu!) pisoteado pelo impacto na calçada do pé direito introduzindo-me de novo na realidade. 



sexta-feira, 29 de março de 2013

Barulho d'água (Mergulho)

Mergulho

Subiu e desceu a rua várias vezes naquele dia de feira-livre às primeiras horas da manhã. Pelo menos uma hora no vaivém. Achava-se, sentia-se. Tinha de fato o que exibir. Calça justa, formas estonteantes. O decote da camiseta na medida exata para atiçar desejos, fartos seios quase pulando pela abertura. O apregoar dos feirantes, maliciosos: “Moça bonita não paga, mas leva só se der beijinho!”. Inchava-se, a poderosa. Todos aos seus pés. A glória a despeito de olhares invejosos, de expressões de desdém enciumado, nem sempre caladas, das rivais. Comprar nada queria. Chegava-se às barracas apenas para conferir mais de perto um tolo ou um pretendido – que, dependendo do freguês, não deixa de ser otário, também. Entre apalpadelas maliciosas em frutas, perguntas dúbias sobre o frescor das hortaliças, um cheiro nas flores, assim ia aumentando a lista de basbaques. Na barraca de roupas, biquínis provados sobre as roupas atiçam ainda mais os desejos da atriz e da plateia (logo mais faria topless, o palco seria a praia). Antes de se ir embora, o japonês ofereceu pastel na faixa, que ela recusou alegando precisar manter a linha, aceitando apenas o guaraná alegadamente diet. Ao agradecer pela gentileza roçou provocantemente a ponta da língua sobre os lábios carnosos, murmurando “o senhor é um amor!”. O verdureiro também ganhou o dia, satisfeito por ter sido prestigiado não pensou duas vezes em ser generoso. “Para cativar a freguesa”, descontou metade do preço da alface e dos tomates.
Enfim, em casa, banho ao som dos Rolling Stones. Admirou o próprio corpo nu diante do espelho e ficou se lembrando da cara de todos aqueles papalvos – não é que até um carreteiro, fedelho ainda engatinhando na puberdade, havia se engraçado? Rápida refeição, salada temperada com limão, sem óleo, sem sal, semente de chia à vontade, arroz com dourado grelhado, suco de clorofila com hortelã.  Meteu tudo o que julgava precisar na sacola de palha e saiu. Estava chegando o momento pelo qual tanto ansiava, e agora depois de semanas planejando tudo se sentia corajosa, pronta para agir. Nada mais poderia atrapalhar a esticada dela até o mar, impedi-la de atingir seus objetivos: mergulhar em um ponto remoto, mas suficientemente à vista do atlético e sempre atento salva-vidas.

 

Barulho d'água (Noite estrelada)

Noite estrelada

Ao abaixar-se para apanhar a mercadoria na prateleira de uma loja de departamentos, deixou escapar pelo cós do jeans uma das luas estampadas na calcinha. Mais da noite não pode ser visto, entretanto brilharam estrelas nos olhos do único espectador que flagrou o luar...

Barulho d'água (Sem-ônibus)

Sem-ônibus
 
Frete para o Norte de Minas, caminhão enguiçado à beira da estrada, em ponto remoto e ermo, ainda bem distante do destino. O caminhoneiro resolve caminhar em busca de ajuda. Um deserto só, por quilômetros não se vê nem sequer vacas pastando nos morros ao redor, o sol queima a ponto de fritar borracha. Quase trinta minutos depois, o motorista avista pequena igreja ao fim de íngreme subida de chão batido; antes, passara por um ponto de ônibus. Adentra a capela, um homem varre  preguiçosamente o salão. Cumprimenta-o, explica “quero chegar à cidade mais próxima, preciso de socorro mecânico”. E pergunta: “a que horas, por favor, passa por aqui um ônibus que me levaria até lá?”. Apoiado no cabo da vassoura, o sujeito clone do Mazzaropi coifa a barba, olha para o teto, e depois de alguns segundos, responde: “Isto não sei, não, senhor. Melhor perguntar lá no posto de gasolina!”. “Ah, um posto de gasolina, que bom! Pode ser que eu encontre ajuda nele, então! E onde fica este lugar, é aqui por perto, como eu chego lá?”, quer saber o viajante, animado com a notícia. Rebate o outro, do mesmo modo sereno de linhas acima: “Não, não, senhor. O posto do Turco fica na cidade mesmo, onde mais ficaria por estas bandas? E para chegar lá é só o senhor descer a rua e esperar o ônibus passar pelo ponto, uai!”.

quarta-feira, 27 de março de 2013

Barulho d'água (Mangas)

Mangas

Tem tesão de babar pela minha bunda.
Diz-me que foi feita à mão.
Por ela, sempre, começamos a farra,
por trás é que, primeiro, ele me traça.
Morde-a, acaricia-a, beija-a, se esfrega,
enquanto a penetra nem sequer resfolega.
Inteirão, lá dentro, se afunda,
reviro os olhos, sinto uns troços,
viro um traço, fico prestes a ter um treco;
ele, frenético, cutuca-me,
vai fundo até que minha cuca se funda:
caimos para o lado, eu semidesfalecida, ele triunfal.
Ah, como eu grito e gemo,
e sinto-lhe o gozo, e gozo, melhor: relaxo.
Ainda dardejante, sem pulso, pulso além da mais longínqua galáxia;
deitada em seu peito trasmuta-me em concha, saciada,
a repousar em abissais e azuladas águas profundas.
Acendo-lhe o cigarro,
juntos o fumamos, gargalhamos, choramos,
isto sim é que é sarro!
Enquanto trago, e tramo, pensamentos bizarros,
etéreo, Meu Amor se refaz expelindo círculos de fumaça:
dentro em breve, mal ele sabe, serei mais ainda devassa,
quererei um orgasmo que me mate e me nasça de novo,
pedaço por pedaço,
até rever-me usando meu primeiro vestido cor-de-rosa,
sem nada, sem nadinha por debaixo,
trepada no galho mais alto, colhendo avermelhadas mangas,
atirando-me ao rapazinho ávido por mim ao pé da árvore,
mastro em riste, o calção azul já joelhos abaixo,
maliciosamente comparando o volume, a forma,
o sabor da fruta com os das minhas tenras nádegas.

Barulho d'água (Acuamento)

Acuamento

Amou pela última vez já nem sabe quando. A traição da mina não sai mais da cabeça. Perdeu o melhor amigo baleado numa emboscada. O intrujo dançou na mão de uma tropa da Cinza, “sem chance de voltar a fazer daquelas lanças”. Para piorar, a grana do bico do prédio em construção continua promessa (“Será que estão me enrolando?”). O derradeiro cigarro do maço virou há dias bituca. Se der o trocado no Paratodos, o não terá para o de comer (“Ou para a pedra...”). A noite está caindo (“Esta garrafa só tem meia dose!? Será que estão me roubando?”). O pandu nas costas ronca repetidas vezes, mas as panelas estão vazias,  o dono da quitanda de Zé nada tem, anda esperto, não aceita pendurar mais nada.
 
A noite assumindo, abafada, não choveu como se esperava. Recebeu o aviso de Dico Rato (“Ou paga, ou te asso no forno, te juro, vacilão!”), e desde a sentença ninguém mais da pala com ele. Quem o encontra sai de quebrada, muda-se de calçada, abaixa a cabeça, consulta o relógio, pigarreia, finge não conhecê-lo. E desgraça pouca, é bobagem: tem alemão dando geral direto no morro, até helicóptero voa penteando e filmando a comunidade. Engole, seco: será que algum filho da puta me caguetou?”

O calor atraindo moscas, lixo de dias amontoado nos cantos. Junto ao monturo há um exemplar do dia do NP, mancheta crime passional. Lera a notícia ainda de manhã, julgou que a suposta “sem vergonha, puta, mulher à toa!” teria merecido tantos pipocos na cara, rosto belíssimo desfigurado em seis colunas. Em seguida, suspirou: “com quem estará e por onde anda Suzana?”. E chorou. Como da última vez.

Agora a lua já vai à meia altura, começa a despencar. No copo a dose passa a ser imaginária. Um zumbido corta a rua (“Sirene? Talvez... mas será?”), estampidos rompem de novo a solidão até instantes apenas burlada pelo chilrear de um grilo (“Nova vingança, talvez... Será que ela está me chifrando?, ah, e se deram o meu barraco?”). Passos apressados nas imediações. Cães latindo, nervosos (“Será um vapor, mas a esta hora?”). Tremedeira. Delírio. Olhos fechados, um corpo na penumbra (“Ahhhhh Suzanaaaaa, vem, vem cá, cadela, hum, gostoso assim, isto, assim, ah, não, não vou te pagar camundongo, que você se foda! Ah, Maluzinha, hum, hum, hã, hã, Suzana, Maluzinha, Suzana, ai, ai, filho de uma puta, eu é quem vou te dar baixa, Suzana, Suzana, ah, hã, hã, ah português sovina, vê se enfia no rabo tua... tua... tua... minha, minha, minha Suzana, Suzana, Maluzinha, não, Suzana, ai, ai, ai, tesão, oh quitanda de merda, hum, gostosa, cachorra, toma, toma, tudo no teu rabo, vaca, ah, ah, ah, hum, hum, ah, ah, ah, ah, bando de babacas, por São Jorge, vocês nunca me pegarão, ah...”). Um leve choque, breve arrebatamento, os dedos, até o jato jorrar lépidos, ficam melados. Alívio. Vazio. Um sinistro chamado, sobressalto, e tome pancadas na porta. Taquicardia. A garrafa, vazia... O maço, vazio... A carteira, vazia... Azia. A alma, vazia. Dedos novamente ágeis, giro no tambor, só uma bala, porta abaixo, um estampido, um baque, seco, ao cair no chão: o próprio .38, agora, também vazio...

Barulho d'água (Lâmpadas de ouvido)

Lâmpadas de ouvido
 
Um rapaz, parado na calçada que separa ambas as pistas da avenida, espera o sinal ficar verde para ele atravessar. Aproximavam-se as sete badaladas da matina. A primeira coisa que vi dele, a cerca de cem metros de distância, o discretíssimo par de fones de ouvido, guardavam a forma de grandes círculos amarelos, tais quais duas lâmpadas incandescentes acesas; poderiam ser, também, o amigo Sol que até aquele instante não havia aberto a janela do quatro, aparecido ao menos para dar um bocejo, espreguiçar-se. Do mesmo ponto de observação pude ouvir as pancadas que a atual geração classifica como sendo música, ribombando...

segunda-feira, 25 de março de 2013

Barulho d'água (Pequena morte)

 Pequena morte
 
É uma pequena morte cair na cama torturado por enxaqueca, às dezesseis horas de uma quarta-feira de sol, para acordar só (e só) às dez horas da quinta-feira. E, ainda, com a dor de cabeça!
 
 

 
 
 

terça-feira, 19 de março de 2013

Barulho d'água (Pequena crônica que morre ao pôr do sol)

Pequena crônica que morre ao pôr do sol

Bêbado, o par de chinelos acabou se perdendo do dono. Quando estiveram juntos pela última vez, Adilson roncava  em decúbito ventral e de boca na areia, ao lado do quiosque do Jamil, depois de entoar loas à lua cheia que prateava as ondas e a praia desde o recorte da serra. Antes de apagar, pranteou amor não correspondido por Andreia -- mulata ingrata que preferiu  dar área do povoado arrastando asas pelo pescador Juvenal, mais moço, bem mais rico. A partir de então, direito e esquerdo se separaram à procura do desiludido. Já conferiram toda a trilha dos bares, dos botecos e das biroscas nos quais bebiam toda santa noite, via sacra solidária ao rapaz enquanto este afogava as mágoas. Consultaram conchas que subiram com as marés, peixes que ainda se debatiam nas redes há pouco retiradas do mar, vasculharam atrás de cada pedra. Nada. Levaram o caso ao distrito. Fizeram abrir gavetas e cumpriram formalidades de praxe no IML da sede da comarca. Afixaram cartazes nas redondezas, em pousadas, em igrejas, na rodoviária. Dispararam alertas nas redes sociais. Filaram anúncio na Gazeta Litorânea. Falaram ao vivo na Rádio Iemanjá. Tudo em vão, não obtiveram sinal algum do desaparecido. Fatigados ao fim de uma semana, hoje decidiram manter as buscas somente até o pôr do sol. Ao escurecer de logo mais, caso não o tenham encontrado, vão enfim calçar outros pés de cana...

Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
http://www.poesiafeitaemcasa.blogspot.com e http://www.karumi.nafoto.net, outros trabalhos que assino. A cópia e reprodução dos elementos aqui contidos sem a devida autorização, por escrito, e sem estarem negociados direitos autorais e outras questões comerciais, sujeitarão o infrator a entendimentos com a lei.

Marcelino Lima



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