Quadrilha da morte
Caim pereceu vítima da ira de Abel, que, depois,
atormentado, jogou-se em um poço. Santo Cristo levou junto consigo Jeremias,
mas abatido por um tiro certeiro de Winchester 22, também tombou. Horas antes
da overdose, Maria Lúcia vira Pablo morrer, cavalgando-a ensandecido. Luís
estava no lugar errado, na hora errada. Gilda perdeu muito sangue ao dar a luz.
O filho dela, dezoito anos depois, a onda levou. A bebida que deram para Marcos
continha cicuta. Durante uma ronda pelo bairro, Khalil teve o azar de ser
confundido com bandido. Manoel a cobra picou. Tião e a mula rolaram precipício
abaixo durante tempestade inesperada. O dono da pizzaria vacilou tentando
salvar o máximo possível durante o incêndio. Um desastre custou o adiamento do
início da temporada de futebol. Só as bolas sobraram intactas no ônibus
capotado. Naquela mesma sinistra curva, um ciclista ficara debaixo das rodas de
um caminhão, um ano antes.
Entre os vitimados por doenças conta-se dona Belarmina, já
nonagenária e quase cega. O óbito de Lili está registrado como “causas
naturais”. A quimioterapia não conteve a metástase pelo corpo de Raimundo. A
rejeição por Tereza explica a cirrose que consumiu o primo apaixonado.
Acusava-o de ter pernas estúpidas. Como não amava ninguém, ficou para titia,
desencarnou intacta. Os jornalistas trigêmeos Gabriel, Miguel e Rafael
conseguiram imunizar a moléstia de nascença. A notícia ruim é que fragilizaram
pulmões, rins, e estômago, respectivamente. A tia de Joaquim foi dada como
desaparecida três semanas depois de fugir do manicômio. Francisco ignorou a
cancela abaixada antes da passagem de nível. Não parou. Não olhou. Não escutou.
O maquinista, de tanta tristeza, tomou quatro copos de água sanitária. O circo
teve de baixar as lonas depois que o leão, em fúria, invadiu o trailer do
trapezista. Jússara não resistiu à espera por um leito no único hospital da
cidade enquanto ardia em misteriosa febre. O poeta considerou dura demais a
crítica ao livro com o qual esperava sair do anonimato. Ao editor reservou três
projéteis. Dois alvejaram a secretaria do desafeto. A última bala não repartiu
com ninguém.
Também teve aquele menino que queria apenas resgatar a pipa
presa ao fio de alta tensão. Antes dele, várias facadas gelaram o coração de
Juliana. O mesmo aço interrompeu a roda gigante para João. Com um espinho no
peito e sangue nas mãos, o corpo do assassino foi encontrado, e ato contínuo,
enterrado, na beira do rio. Zé, naquele domingo, só queria chupar sorvete no
parque, entregar uma rosa vermelha à namorada.
Para escrever um final feliz, nestas últimas linhas pensei
em ressuscitar cada um dos citados nesta crônica. Entretanto, para quem ainda
não soube, ao comemorar um gol do meu time há alguns dias aproximei-me
demasiado do parapeito do apartamento e despenquei feito um pacote bêbado por
treze andares. Com meu corpo ainda atrapalhando o sábado, J. Pinto Fernandes
surgiu do nada e conduziu-me por um longo túnel de luz até o lugar do qual
escrevo agora, com os demais todos ao meu redor. Fernandes, que ainda não havia
entrado na história, ostentava no peito uma medalha, honraria que obteve dois
meses depois de ter conseguido se naturalizar filho de Tio Sam e ser aceito em
uma unidade ianque para combater vietcongues.
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