Um quadro negro
(ou um jeito diferente de encarar a escuridão)
Engana-se se você pensa que neste cenário há só escuridão. Olhe bem e veja em quantas coisas o olho pode tocar. Tem um fusca amarelo estacionado. Um par de botas namorando outro de sapatos num cantinho
do quarto. Três estrelas capricham na emissão dos brilhos para ver qual dos fachos primeiro acaricia a lua cheia. Um elegante senhor faz palavras cruzadas, sentado num banco de praça. Como pode ser noite ou dia, sentiu o perfume da rosa? Viu o girassol? E o garoto, que há pouco deslizou de uma nuvem, soprando dente-de-leão? Reparou a rã saltando, ainda no ar, a meio caminho do mergulho no lago? E no goleiro encostado à trave, desolado pelo sétimo gol sofrido pelo time dele? Tem mais, é só procurar. O pardal cansou-se de zanzar e agora dá um tempo sobre a placa indicando o rumo para São Paulo. O ciclista passou voando, já dobra a esquina lá na frente, mas, fique atento: atrás dele vem o atleta treinando para a São Silvestre. Vestido de Papai Noel. Um avião fazendo um barulho danado decola ao sul. O vento carrega uma pipa taiada. Garis varrem as folhas caídas que o cara de cima derrubou. Guris, pilotando carriolas, apostam corrida. Na feira-livre não faltam cores, seja as das barracas de frutas e de verduras, ou as das sacolas de nylon das donas-de-casa. Os caquis, a propósito, de tão aquecidos pelo sol, loguin vão queimar as retinas. Para o gato, que sonha estar desfrutando um pires de leite, requentando no telhado da casinha branca, o tempo parece perfeito. O vira-lata simpático, como não alcançou o bichano, desconta a frustração no poste pintado pela Prefeitura de novo ontem. E os jornais desfraldam em todas as bancas manchetes alvissareiras. Está tudo ai, neste quadro, supostamente negro. Se por um acaso você não estiver enxergando nada recorra ao interruptor. Ele está à direita da porta, bem ao alcance da mão.
Engana-se se você pensa que neste cenário há só escuridão. Olhe bem e veja em quantas coisas o olho pode tocar. Tem um fusca amarelo estacionado. Um par de botas namorando outro de sapatos num cantinho

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