domingo, 30 de dezembro de 2007
Barulho d´água (Poesia cotidiana em forma de bilhete)
Barulho d´água (O menino e a lua)
O menino ganhou um binóculo da mãe. Ainda na loja, ansioso, pedia que sem demora recebesse o par de lunetas, mas não o estreou na hora. Esperou até chegar em casa, onde entrou apressado, subindo a passos largos a escada que leva ao quarto. Debruçado à janela, buscou-a no céu: a lua estava cheia, do jeito que ele mais gosta. Então, ajustou as lentes para trazê-la mais perto, trouxe-a tão próxima dos olhos que roçou uma das mãos no vazio como se pudesse afagar a superfície da bola cinzamarelada. Passou muito tempo fitando-a, enluarado, dizendo à musa coisas bonitas de se ouvir, fez promessas de todos as noites contemplá-la, de construir, quando homem, uma escada bem grande, de virar estrela depois de morrer só para brilhar ao lado dela...
Barulho d´água (A tarefa)
Barulho d´água (Cargueiro II/Pedras)
Barulho d´água (Mais três de gatos)
sábado, 29 de dezembro de 2007
Barulho d´água (A mãe no meio)
Pelas vésperas do Natal, um rapaz, usando camiseta do Timão, depositava carta numa caixa dos Correios, à entrada de um movimentado shopping, quando de um gaiato que por lá passava veio, gratuitamente, a seguinte provocação: “Ai, mano, escreveu para o Papai Noel pedindo para que ele traga o Corinthians de volta à Primeira Divisão?” O corintiano não mexeu um lábio, mas o olhar com o qual fulminou o piadista disse tudo, o engraçadinho, que também se calou, deve ter virado o ano se penitenciando, pensando arrependido bem que mamãe poderia ter passado as festas sem essa, permanecido na santa paz sem ser assim rebaixada...
quinta-feira, 27 de dezembro de 2007
Barulho d´água (A batida)
Um grande helicóptero pilotado por um policial, durante a madrugada da véspera de Natal, sobrevoou o conjunto habitacional, subindo e descendo, de quase do solo aos andares mais altos, entre os prédios, janela por janela. Carregava uma poderosa metralhadora giratória, mais um holofote capaz de iluminar, sozinho, o Maracanã. A aeronave metia medo pelo tamanho, parecia mais um transatlântico, mas como navios não flutuam no ar ao menos que sejam o Holandês Voador, talvez seja melhor compará-lo a um avião mais robusto, não um B´52, um Hércules, embora fosse mesmo um helicóptero, um monstruoso helicóptero. Dá para imaginar o ronco do motor, o ensurdecedor barulho que a tudo fazia tremer, terremoto que aliado ao ruflar das hélices, não deixou nem sequer uma árvore imóvel, sem quase ser arrancada com raiz e tudo? Ah, e aqueles trapos que os donos dos apartamentos costumam pendurar para secar junto aos parapeitos, sabe onde foram parar? Uma a uma, à medida que se aproximava delas, as janelas iam se abrindo, atendendo ao imperativo comando do piloto – dava para sentir o clima de terror no ar, ai de quem se fizesse de tonto, que não colocasse a cara a vista para ser identificada, os mais prudentes mãos cruzadas sobre a cabeça, braços ao alto, quando não em trajes menores, nus, alguns clamando por clemência. Era neste instante em que vinha o facho da poderosa lâmpada bem no meio da fuça. A claridade era tanta que cegava, mas paradoxalmente permitia ver crânios pintados por toda a fuselagem, tudo que havia a bordo e que o sujeito, de cenho franzido, olhos ameaçadores, sinistro, não era o Papai Noel vindo entregar um presentinho. O porte da metralhadora enregelava a espinha, pelos buracos no cilindro por onde cuspiria os projéteis , pelo calibre que sugeriam, olha que deveriam ser apenas menores que ogivas. Era minha vez de levar a geral. Apesar de temeroso, resoluto levantei a cortina atrás da qual até então eu espiava toda a “batida” apenas entreabrindo as persianas. Então, o gambé jogou a lâmpada e viu que ao meu lado estava meu guri, assustado, mas fascinado. Tamborilou sobre a arma como quem contava até dez, brincava mentalmente de “bem-me-quer, mal-me-quer”, como quem decidia uma dúvida e qual decisão tomar, mas alívio: tirou a mão do gatilho. Depois, apagou o farol e todas as luzes do helicóptero simultaneamente. Antes de sumir como se houvesse sido tragado por um buraco negro, a mim bateu continência. O profundo silêncio que se seguiu fez com que eu acordasse. A lua cheia, emoldurada na janela, sobre o telhado do vizinho, acariciava o sereno rosto da minha amada dormindo, a gatinha aos pés dela; inundando meus aposentos de amarelada e intensa claridade (dava para ver o pó no chão e os pernilongos dando rasantes), já começava o movimento de descida do firmamento para trás do morro...
sexta-feira, 21 de dezembro de 2007
Barulho d´água (Alfajor)
Barulho d´água (Na mosca)
Barulho d´água (Desacertos de um...)
Crônica dos desacertos de um grande amor
Eu assobio o refrão “bola de meia, bola de gude”, ela reclama: quer ouvir a música e exige silêncio. Eu acelero e tento uma ultrapassagem, ela resmunga e fala: se quer morrer, traste, morra sozinho! Para que ela não perceba, arrisco de canto de olho dar uma espiadinha na gostosa que invade meu campo visual, lá, na calçada oposta. Ela, arisca, ui, belisca-me e, agitando os braços, imita o bater de asas de uma galinha. Ato contínuo, luz do farol no vermelho, eu tento uma carícia, busco beijá-la. Ela refuga, e alega: minha mão pesa e minha barba espeta, arrê!
Já em casa, ligo o chuveiro depois da novela das oito (que eu odeio, todas, mas acompanho por razões sociológicas), convido-a para um banho. Ela avisa: quer descansar “só um pouquinho” antes, e pega no sono. Então, após passar pomada no músculo do braço direito (é por causa do beliscão, viu?), busco consolo no futebol. Ai parece mágico: sempre na hora do gol ela acorda, e pede, choramingando, que eu coce as costas dela, emenda queixando-se de que estaria frio e cobra que eu a abrace (...)
Pequenos desacertos de um grande amor, feito como todos de algumas contradições e sutilezas, além da observação de cuidados cotidianos como não deixar copos sujos na pia, ou a bituca que fede no cinzeiro, ou os jornais espalhados pela sala, ou a toalha molhada no tapete do quarto -- pecadilhos que, saibam, eu jamais cometo. Ou...
quinta-feira, 20 de dezembro de 2007
Barulho d´água (Alma agreste)
Alma agreste
E eu que possuo alma agreste
Seduzido por teu sorriso de menina, mulher,
De novo experimento as duvidas e os medos,
Todos os temores que eu já tive:
Tu me habitas, mas não estás comigo
E neste desvario posso sentir a tua maciez
A textura de tua tez aveludada
(“tuas mãos doces, plenas de carinho”)
O frescor de tua língua grossa
O aconchego do vale entre as tuas coxas!
Ai quem me dera me fosse possível ter aprisionado teu afeto,
Liberar outra vez teu húmus em meus poros –
Esta bendita chuva que jorra na medida exata
E descalcina a seara na qual ardo!
Barulho d´água (O grito)
O grito
O rosto desesperado e estampado no jornal
deixou um grito parado no ar,
dilacerado, cortante, dolorido,
esbofeteando nossa cotidiana covardia:
de jardim, o bairro não tem nada,
de Ângela, só nome.
Naquele lugar pior que Cali,
onde nem político vai,
o que mais se reivindica não é asfalto,
não é ônibus, nem pronto-socorro --
Embora tudo isto falte, prioridade é continuar vivo,
é não morrer de bala bem endereçada ou perdida mesmo,
de tédio ou de medo,
não ficar jogado na sarjeta como se fosse esgoto.
O Jardim Ângela não é carioca,
não está nos mapas do JN e dos investimentos sociais,
mas está no das estatísticas e no da vergonha,
não deve ter orgulho nenhum de pautar reportagens,
e muito menos por estar nesta poesia.
Barulho d´água (Tempo de manacás)
Tempo de manacás
Era época de manacás, de novidades, e na Rua Carmem, as flores enchiam os galhos. Também era bonito o espetáculo dos piscas-piscas iluminando a barroca, vistos lá longe, da janela. Parece-me que havia musica no ar, não tenho certeza. Em mim, tocavam as três etapas do Concerto Grosso Opus 3/8. O clima era de festa: era tempo de celebrar o nascimento de Jesus-menino, com a Estrela de Belém brilhando bem em cima de casa!
(Era mesmo tempo de fatos novos, pois lá estava a Lusa na final do Brasileiro, ora pois, pois...)

Como demorava a espera: o pouco que faltava parecia eterno, e, ansioso, eu revirava a mente em busca de cantigas de ninar: “Quando o sol banhar o dia/arvoredo sombrear...”
Hoje, na penumbra da sala, a luz dos automóveis transpassando pelas capelinhas nos toca quando ambos já estamos com os colarinhos molhados pela troca de calor – nosso primeiro gesto de cumplicidade, como um violino e seu arco; na ponta dos dedos, há a viscosidade dos teus dourados cabelos também suados: “Estrada de terra, beira de riacho...”
(Percebo: teus suspiros estão mais espaçados e serenos.)
Cumpri a missão, penso: você, agora, dorme, estou saciado, sinto minha vida correndo pela espinha, e, novamente, sinfonias, agora, também no ar: será o allegro moderato do Concerto a cinque de Albinoni, ou o presto do concerto in g maggiore per achi e cembalo, de Vivaldi?
Homenagem ao meu filho, Jorge Henrique, que em 21 de dezembro chegará aos 11 anos
segunda-feira, 17 de dezembro de 2007
Barulho d´água (Horas mortas)
Horas mortas
quinta-feira, 13 de dezembro de 2007
Barulho de água (O louco do bairro)

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007
Barulho d´água (Como Deus relaxa)
segunda-feira, 10 de dezembro de 2007
Barulho d´água (Tem gato na bolsa!)
Tem gato na bolsa!
Ônibus lotado, gente que saiu para o batente bem antes de o dia raiar voltando para casa com o sol já no Japão, cansada por mais um dia de labuta. Um gato começa a miar. Espanto: um bichano dentro do busão? Os miados param, mas, segundos depois, recomeçam. Algumas gargalhadas, ah, mas esta é boa, gente: quem tem a cara-de-pau de trazer animal a bordo de ônibus? Passageiros trocam olhares recriminadores, o cobrador se encasqueta, empina o corpo vasculhando por debaixo dos bancos, dando uma de autoridade e resmungando em tom de bronca “é contra as normas da empresa e da lei transportar animais em coletivos!”. Os miados param, passam-se poucos segundos, mas xi! recomeçam outra vez, duas, três, quatro, cinco vezes, até o rapaz, sentado ao lado da moça cochilando à janela, delicadamente, tentar acordá-la: “Moça, moça, psiu, desculpe-me ai, mas acorde, oh, olha, é o gato, o gato ai dentro da tua bolsa, está miando muito, ouviu? o bichinho parece que tá no maior sufoco, querendo fazer algo da natureza dele, é melhor você dar uma espiadinha, né?” Sobressaltada, meio confusa, então, ela desperta. Notando que virara o centro das atenções e alvo de balançares de cabeça, começa a abrir a bolsa. As piadinhas e as recriminações param, dão dar lugar ao suspense à medida que o zíper vai correndo, todo mundo em silêncio, intrigado, querendo ver a cara e a cor dos pelos do bichano, o que ela fará com o felino (“e se a bolsa estiver suja?”, pensa um passageiro, já levando uma das mãos às narinas). Do interior da bolsa, no entanto, sai apenas um celular. “Alô?!”, fala a moça, após teclar alguns números e alguns segundos transcorridos. “Oi, olá, meu amor, tudo bem? Estou no ônibus a caminho de casa, desculpe-me, tirei um cochilo e não ouvi quando você chamou!”
domingo, 9 de dezembro de 2007
Barulho d´água (Um lugar)
fazendo ao redor para a casinha.
Os canteiros, o gosto de framboesa,
tudo o mais que houvesse por perto,
apenas tornariam o sonho mais aprazível.
Poema-diálogo baseado em Motivo, de Cecília Meirelles, e em Canteiros, que Fagner gravou em música, também inspirado na obra da poetisa.
Barulho d´água (Aguaceiro)
O céu estava claro, estrelas começavam a luzir por todos os lados, a lua despontava, brilhante, quando, de repente, desabou um toró daqueles. Ô Deus nos acuda, pegou todo mundo de calças curtas, sô! Aeroportos foram fechados, aviões que estavam no ar pousaram onde deu, quem não perdeu as últimas pipas que ainda estavam no ar levou para casa papel, linha e taquara ensopa

Barulho d´água (Bambino)
No berçário, chorou ao me ver: identificou-se comigo de cara. A primeira fralda suja, ma chè onore, coube a mim trocá-la!O primo som que balbuciou foi pa, é vero! A primeira palavra? Ora, caspita: padre, logoco! Ainda no colo, batia as palminhas quando escutava Funiculí Funiculá. Deu o primeiro passo segurando em minhas mãos. O primeiro tombo de biciclete não podia ter sido com outro. A primeira ida dele ao mato foi io que presenciei. Como bom figlio e nipote de oriundi adora lasanha e pizza marguerita. Me acompanha todo ano à festa de Nossa Senhora Acchiropita, não perde sequer um capítulo de Terra Nostra, e até já passeou comigo pela nostra cara terra. É. Ele é um bambino que me deixaria super orgoglioso não fosse por um detalhe: o maledetto, santo Dio, Madonna mia, é curintiano!
Barulho d´água (A fantasia de cada dia)
Barulho d´água (Teimosia)
Teimosia
que bom ter nada para fazer
ficar sentado ao sol lendo poesia
vendo jorginho correr no campo de peladas
admirar o caderno de jéssica –
que bela letrinha tem esta danada!
ou ver o timinho de osasco treinar
enquanto o limão se oferece no pé
o relógio porém logo apita
e já é hora de se aprontar
dar tchau para os bem-te-vis
fazer o nó da gravata
tomar mais um gole de café
a benção mãe até loguin’amor
entrar no carro
como sempre o trânsito é lento
hoje não tenho trocado menino
vá você pra ver se é bom barbeiro
abrir gavetas ligar o pc e como sempre
todo dia das dez às dezoito
trabalhar trampar ralar
mas não faz mal não sanguibom
encare tudo numa boa
e amanhã mesmo que chova
sente-se de novo ao sol
e se possível de quebra
componha algum haikai
Barulho d´água (Gesus ou Jenésio?)
Dia desses, na feira-livre lá do bairro, à medida que ia pendurando no varal sobre as pilhas individuais de alimentos o cartaz com os preços daquele dia, um dos funcionários da barraca ia dizendo o nome de cada um deles, enfatizando sempre as letras que poderiam gerar dúvidas e outras características, como por exemplo, “jiló, com jóta!”, conforme exclamou. O item seguinte foi o chuchu, “com dois cêágas”, e assim sucessivamente, passando pela vagem, “com gê, de gato”, cenoura, “com cê de coelho, que é quem mais gosta delas”, e quiabo, “com quê e muita baba”. Fiquei prestando atenção no jeito bem-humorado do rapaz, achando um barato como ele recorria à criatividade para mencionar, corretamente, o nome de cada tipo de alimento à venda cuja grafia pudesse – e costuma -- gerar algum tipo de confusão devido às semelhanças entre sons de letras diferentes. Percebi que depois do quiabo viria outra delícia do dia-a-dia que também faz as pessoas trocarem Gesus por Jenésio. Fiquei esperando para conferir como ele iria se pronunciar, se acaso também não tropeçaria, como pode ocorrer com quem não tem tanta intimidade com a língua, o que não parecia ser o caso dele. “Barriga preta, que lá em casa, para emagrecer, vira até chá, com cêága!" falou. “O quê, como assim?” protestei no ato, zombeteiro: “Vai me dizer que desta vez você não sabe se é com gê ou com jóta que se pronuncia o nome desta comida ai, hein?" O camarada não perdeu a pose. Demonstrando que sabia, estava só sacaneando, emendou, sem deixar a peteca cair: “Sei sim, senhor, qual a letra aparece no meio do verdadeiro nome da barriga preta aqui, que por sinal, fica uma delícia servida à milanesa, mas milanesa com ésse de suflê, e não zê de zoeira como estou fazendo, mas que muita dona de casa que passa por aqui pensa que é!" . "Tá certo, tudo bem, nesta você me pegou, parabéns, colega, fazer feira assim é bem mais divertido", devolvi, já saindo. "Sempre às ordens, e precisando de algo, é só me procurar, sou o Genésio", completou, estendendo-me a mão. "Mas como meu nome sempre dá muita confusão, pode me tratar pelo sobrenome mesmo, viu, anota ai, este não tem como ninguém errar: é Jesus!"
sexta-feira, 7 de dezembro de 2007
Barulho d´água (Anjo da guarda)
Barulho d´água (O gato Arco-íris)
Barulho d´água (O segredo)

Barulho d´água (Agonia)
quinta-feira, 6 de dezembro de 2007
Barulho d´água (Precaução)
sexta-feira, 30 de novembro de 2007
Barulho d´água (Troféu)

Barulho d´água (No tempo dos quintais)


Barulho d´água (Na marca da cal)
Barulho d´água (O fim)
Barulho d´água (O menino magricela)
Era uma vez um menino magro, ou melhor, um fiapo, bem magrinho. Era tão mirrado o coitado que, dependendo da ventania, precisava segurar-se em algo, num poste, numa cerca, no que fosse possível para não ser levado para longe como uma simples folha de papel. Chamava-se José Paulo, mas ninguém o conhecia, ou o tratava pelo nome. Quando queriam se dirigir a ele, por zombaria ou por costume, só o chamavam de Menino Magricela, apelido que ele ganhou cedo, dado pelo próprio pai, que num misto de carinho e de espanto, vivia dizendo «que bonitinho é meu menino magricelo». E de fato, além de frágil, o menino era bonito, parecia criança de televisão. Razões pelas quais, quando entrou para a escola, passou a ser o alvo da chacota de outros moleques -- que tiravam muito sarro dele, inventando outros apelidos, como «pau de virar tripa», «saco de ossos» e «pipa sem vareta» -- e ainda o centro das atenções das meninas --que suspiravam só de vê-lo passar. Nem mesmo os professores, inclusive quando faziam a chamada, pronunciavam José Paulo. «Menino Magricela?», perguntavam. «Presente, tia», respondia o garoto, automaticamente. De tanto escutar o apelido, já se acostumara. Aceitou, igualmente, sem nenhum complexo, a magreza. E de tal forma que passou a não dar mais bola nem para as piadas, nem para as alcunhas engraçadas que nele colocavam. Já os gracejos femininos e as propostas que recebia das garotas, embora o deixassem bastante feliz, também intimidavam-no um pouquinho -- o que as obrigava a tomar as iniciativas, afastando às vezes o arredio galanzinho.
Num certo dia, a caminho de casa, após a aula, soprou um vento muito forte e pegou o Menino Magricela desprevenido. Sem ter onde se segurar, ia sendo arrastado para não se sabe onde quando, no meio do caminho, chocou-se com nada mais nada menos que Maria Belinha, a mais cobiçada garota da escola. Gamada no guri como as colegas, Belinha quase desmaiou de felicidade ao ver que ele, literalmente, caíra no colo dela. «Puxa vida, desculpe-me por este encontrão, foi o vento que me carregou», disse Magricela, vermelho de vergonha. «Ora, que é isso, você não teve culpa não, sei que o vento trouxe você até a mim, quero dizer, até aqui, então, tá desculpado!», respondeu Belinha, emendando sem perder tempo «Mas, veja só como você teve sorte, né? Você poderia ter caído lá no meio da rua, em cima de um homem bravo, ou num espinheiro, mas que sooooorte, desabou logo em cima de mim! E olha: nem fiquei assustada, não, até acho que... hum, gostei!". «Gostou, como assim?», perguntou espantado o moleque, antes, de, no entanto, concordar «É, tá bom, de qualquer forma você tem razão. Já entrei em muita fria por causa do vento. Uma vez, cai em cima de uma tábua com um prego na ponta. Noutra, num quintal onde tinha um cachorro bravo. Até dentro do lago eu já fui jogado, ainda bem que sei nadar... Bom, mas já que você me desculpou, me dá licença, preciso ir», disse, já saindo, sem notar que os olhos de Belinha brilhavam.
A garota, no entanto, não queria perder a chance de ficar um pouco mais com o Menino Magricela. Agarrando-o pela mão, afirmou que ainda era cedo para ele ir embora e convidou-o para tomarem um sorvete num carrinho que ela conhecia, pertinho dali. Magricela, meio sem jeito, agradeceu, mas informou que não poderia ir, desculpando-se por não ter dinheiro. Belinha, porém, lembrou-o, esperta: ela convidou, portanto, pagaria pelos sorvetes. Percebendo que ficara sem jeito de negar, José Paulo cedeu, não sem alertar que precisavam ser rápidos, pois a mãe dele poderia ficar preocupada caso o garoto demorasse a voltar para casa. Prontamente, Belinha arriscou e se deu bem com uma piada: «Ah, então é só você falar para ela que o vento te levou para bem longe, bobo, por isso você se atrasou!»
Minutos depois, os dois estavam ao lado do sorveteiro. Depois que cada um chupou seu picolé, Belinha pagou e ambos voltaram a caminhar. Sentindo-se intimidado com a tentativa dela pegá-lo pela mão, Magricela tentou apertar o passo. Belinha percebeu: chegara a hora, seria agora ou nunca, sabia que não podia falhar. Com voz doce e trejeitosa, pediu para o amado segurar as pontas mais um pouco, pois tinha um pedido a fazer. Magricela corou no ato. Pressentindo que teria pela frente, solicitou, um pouco gaguejante, que Belinha falasse o que queria logo, estava ficando ainda mais tarde em relação à hora na qual deveria voltar da escola e, além do mais, poderia não ficar bem caso alguém os visse ali, juntinhos. «Então você está com medo de que nos vejam juntos, é? Será que você tem medo que digam que nós estamos, assim, namorando?» José Paulo ficou ainda mais enrubescido, esbugalhou os olhos e, com as pernas bambas, tentou explicar que não era bem aquilo. A confusão do garoto só deu mais munição para Belinha. Percebendo-o nas mãos, falou sem cerimônia: adoraria se pensassem que ambos estivessem namorando, o que deixou o garoto mais envergonhado. “O que se passa contigo, meu magrelinho, qual a razão de tanto medo de mim, hein, ser magro por acaso deixa você encabulado? » «Não, não é isso não... é que eu, bem... é que eu nunca namorei antes!»; «Ora, e daí, para tudo tem uma primeira vez, e eu também ainda não namorei ninguém, a gente vai aprender juntinho! », falou Maria Belinha, sentindo o coração aos pulos. «Mas você nem me conhece direito, será que não é melhor a gente conversar um pouco antes, sei lá, pedir pros nossos pais...»; «Que nada, não precisa, é só você dizer que topa e pronto, ou melhor, é só você me dar um beijo bem aqui, na minha boca, que o namoro começa!», continuou a garota, esticando os lábios em direção ao Menino Magricela, já de olhos cerrados. Sentindo-se flechado pelo cupido, experimentando lá no fundo uma estranha, mas agradável sensação de calor, José Paulo também fechou os olhos e decidiu beijar Belinha. Ambos tremiam de emoção, mal respiravam. Os lábios estendidos quase já se iam tocando quando soprou outra ventania. Como uma pipa taiada, o Menino Magricela, de novo, foi arrastado para longe. Belinha tentou alcançá-lo, mas sem pernas para acompanhar a lufada, desconsolada, sentou-se no chão, onde, com cara de tacho, ficou imaginando se o beijo do Magricela era tão gostoso como o sorvete de baunilha.
Barulho d´água (Saia-justa)
-- Pai, o que é noite furada?
(O pai lendo o jornal, sem tirar os olhos da notícia, vago:)
-- É uma noite sem estrelas, meu filho...
(Um hiato sem palavras, nem ruídos, silêncio de novo, por alguns segundos:)
-- É?
(O filho de pé, olhando profundamente para o cara, a meia distância:)
-- É!
(Novo intervalo sem palavras, nem mosca se ouvia, mas logo voltam as perguntas:)
-- E o que é noite profunda?
(O pai começando a se sentir na parede, até já meio estorvado, contudo, ainda desdenhoso:)
-- É uma noite que demora muito para amanhecer, ôô, guri, cada pergunta!
(O menino saindo do canto dele, aproximando-se da cadeira, entre surpreso e insatisfeito, com dóceis olhos de soldado de pelotão de fuzilamento:)
-- Igual à noite que a gente dorme e não acorda mais, é, pai?
(O tal já com um olho na criança, o outro ainda no artigo, entortando a boca:)
-- Pode ser, pode ser...
(O bambino já escalando uma das pernas, implorando ser içado colo acima, ares preocupados:)
-- Pai, e... se um dia eu dormir uma noite profunda, o sol vai me acordar quando for amanhã, não vai?
(O pai meio desconcertado, confuso, nariz já ponta a ponta com o do filhote:)
-- Vai, sim, meu anjo, o sol nasce todos os dias...
(O fazedor de saias-justas com os braços enrodilhados ao pescoço do sujeito, cabeça afundada no peito dele, cravando ainda mais fundo:)
-- Mesmo quando a gente vira estrela, pai?
(O pai, antes tarde do que nunca, fechando o jornal, coçando a cabeçorra, antes de balbuciar "Minha Nossa Senhora!, respondendo, ainda sem pensar:)
-- Também. Eu acho...
(O porquê-o-céu-é-tão-alto? sentadinho no colo, perninhas a balançar no ar, na transversal em relação às do pai, corpinho levemente inclinado à frente, as duas mãozinhas partindo do queixo espalmadas no rostinho, olhar fixo no chão, cujo piso forma uma flor negra:)
-- E se eu virar estrela numa noite furada?
(Sem resposta. O pai apenas beija a nuca do moleque, acaricia os cabelos dele, solta um suspiro profundo, e sentindo-se gostosamente derrotado, pensa, mas não exclama. "Danadinho, esta me pegou!")
Barulho d´água (Diga depressa)
Diga depressa sem mais isso, sem menos aquilo:
qual é a diferença entre jacaré e crocodilo?
Com quantos paus de faz uma canoa,
O sobrenome da laranja todos sabem,
mas, onde fica mesmo... Tolizerdaben?
Rapidinho, sem deixar a bola cair,
faça de cabeça uma conta de dividir
na qual o resultado seja quarenta,
e o divisor, o dobro, oitenta.
Metro começa pelo centímetro
quem souber diga: o que é acetímetro?
(uma dica: vinho, mas nem precisava,
para quem sabe o adjetivo pátrio de Bradvilavskava).
Qual era geológica antecede o Quaternário?
De quanto em quanto tempo sai um hebdomadário?
Por fim, se é côncavo o lado fundo da colher
Barulho d´água (Troféu leitoa)
Três ou mais linhas de prosa... e de poesia
O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.
Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também http://www.poesiafeitaemcasa.blogspot.com e http://www.karumi.nafoto.net, outros trabalhos que assino. A cópia e reprodução dos elementos aqui contidos sem a devida autorização, por escrito, e sem estarem negociados direitos autorais e outras questões comerciais, sujeitarão o infrator a entendimentos com a lei.
Marcelino Lima
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