quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Barulho d'água (Marcardor de páginas)

Marcador de páginas
 
A aranha de pernas longas e bunda grande assusta mais pela aparência do que pela ferocidade. É tão inofensiva que nem sequer se mexe na teia. As moscas voam para lá, e para cá, para lá e para cá, até incomodam a gente da mesma forma que atazanam o gado. Em vão vacas, bois e bezerros balançam o rabo tentando espantá-las ou golpeá-las, e de vez em quando ainda levam umas ferroadas; cada ferroada, pode ser um novo berne. Nem fome o estranho octópode parece sentir: outro inseto caiu na aparentemente frágil mandala há dias e ainda está lá, paralisado, pois que morto.
  
Daqui da varanda, sentado sobre o mesmo banco de madeira pintada de azul-acinzentado no  qual desde menino me amoldo para leituras, divagações, e alguns pecadinhos, miro sempre a estrada. Conto os caminhões, os carros de passeio, alguma alma que de vez em quando peregrina. Como trem não corre por aquelas paragens e mineiro não perde embarque, ônibus que pela rodovia sobe, ou desce, é sinônimo de relógio. Se forem nove horas, ou se já bateu o meio-dia, o povo descobre pelo vaivém deles. Pontuais, regulam compromissos como o momento de tomar banho para ir à escola, avisam ao boia-fria se já é tempo de pousar a enxada, desembrulhar a mucuta e levá-la ao fogo improvisado para o almoço sob a mangueira. O pescador também fica com um olho na linha, outro na pista para não perder a hora de voltar ao rancho para a fritada de traíra ou de lambari. Um que segue para Rio Pomba está sempre cadenciado com o carrilhão da sala: treze e três quartos quando soa a badalada, o veículo cruza à frente do sítio, infalível.
 
Já desbravada metade do livro, ao relincho de um cavalo, responde a ciriema. Depois, de novo, eclode o silêncio de perfurar tímpanos. O ouvido sai a galgar e encontra o chuá da bica, água que desce das grotas serena, fresca e límpida, sem carregar a nódoa do bambu pela qual escorre. Mais uns passos abaixo, o pino do carneiro d’água em sua incansável lida de bater, bater, bater, bater, bater, e bater. Ou será a marreta do Osmar fincando mais um mourão de cerca, bem fundo para que nenhum bicho o leve no peito?
 
O sol desce em silêncio, solene, morro abaixo, deixando sombra em seu rastro. Já os grilos começam a cricrilar e a fumaça que sai pela chaminé a expelir os odores vespertinos que perfumarão a mesa em mais um jantar.
  
A leitura quase no fim, sobre o umbral da janela titia deixara um copo de leite, uma caneca esmaltada de café quentinho, um pedaço de broa recém-saída do forno, e um Capri. Lancho com displicência e ganho um bigodinho branco de espuma. Quando vou acender o cigarro, mainha materializa-se do nada. Não gosta de me ver fumando, ralha para que eu use meu lenço para limpar a boca e me arrolha por seu estar lendo sem meus óculos, os quais nem ao menos saberia onde estavam naquelas alturas. Mal ela virou as costas, a prima entrou em cena. Ladina, lambeu a marquinha do leite, e com a língua, roçou-me os lábios. Senti o hálito lascivo e quente vindo do interior daquele vulcão. Estremeço, cai-me das mãos o livro. Rápida, ela me furtou o marcador de páginas e se foi provocante, em seu curto vestido vermelho; com uma das alças caídas deixou-me ver parte dos seios, um pouco sem querer, muito mais de propósito. Terei de recuperá-lo, caso queira, bem mais tarde, para lá, bem para além do paiol.
 
O movimento na estrada agora parece entrar em longas pausas. A família toda se espreme na sala para ver a novela do casal mais querido do Brasil; depois, virá o carteado e as modas de viola. Mas tenho contas a acertar e saio ao terreiro iluminado pela lua cheia, seguido pelo velho e quase cego gato angorá. A trilha está clara e para facilitar ainda mais a caminhada milhares de estrelas cintilam. Precisarei transpor a cerca de arame farpado refeita com a ajuda de meu pai depois que a última chuvarada levou tudo, contornar o chiqueiro, adentrar uma picada e seguir beirando o regato.
 
Não levo arma, nem faca, só uma canção que assovio. Não preciso temer bote de cascavel, lobisomem que se desembrenhe de repente, ou mula-sem-cabeça que resfolegue atrás de mim; até ouço os cascos dela batendo contra as pedras, mas carrego comigo o terço que vovó Sianinha me deu de presente, e a imagem de São Jorge no bolso da camisa, amuletos que sempre me valeram e que me acompanham como meus pés vão comigo, inseparáveis de mim. O gato é mesmo companheiro, ainda não desistiu de me seguir. Para trás vai ficando o cheiro das goiabas do pomar que, amanhã, ainda bem cedinho, irei visitar...

Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
http://www.poesiafeitaemcasa.blogspot.com e http://www.karumi.nafoto.net, outros trabalhos que assino. A cópia e reprodução dos elementos aqui contidos sem a devida autorização, por escrito, e sem estarem negociados direitos autorais e outras questões comerciais, sujeitarão o infrator a entendimentos com a lei.

Marcelino Lima



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