domingo, 30 de dezembro de 2007

Barulho d´água (Poesia cotidiana em forma de bilhete)

Poesia cotidiana em forma de bilhete
"Mamãe":
Fui levar a Princesa para tosar o pelo dela. Os dois gatinhos preto e brancos que estavam doentes, infelizmente, também morreram, mas a Paninho já está de alta. Ela voltou a comer e bebeu bastante água. Retorno lá pelas 11h30, depois de uma caminhada pelo Tamboré. Fala para o Jorginho esperar por mim caso ele queira jogar Outlaws. Vou levar o celular, liguem se precisar!

Barulho d´água (O menino e a lua)

O menino e a lua (Binóculos)
O
menino ganhou um binóculo da mãe. Ainda na loja, ansioso, pedia que sem demora recebesse o par de lunetas, mas não o estreou na hora. Esperou até chegar em casa, onde entrou apressado, subindo a passos largos a escada que leva ao quarto. Debruçado à janela, buscou-a no céu: a lua estava cheia, do jeito que ele mais gosta. Então, ajustou as lentes para trazê-la mais perto, trouxe-a tão próxima dos olhos que roçou uma das mãos no vazio como se pudesse afagar a superfície da bola cinzamarelada. Passou muito tempo fitando-a, enluarado, dizendo à musa coisas bonitas de se ouvir, fez promessas de todos as noites contemplá-la, de construir, quando homem, uma escada bem grande, de virar estrela depois de morrer só para brilhar ao lado dela...

Barulho d´água (A tarefa)

A tarefa
Um frasco de Veja multiuso.
Uma flanela.
Um pano seco.
Uma tarefa: tirar o pó dos livros.
Enquanto a faina durar,
de cada um deles,
ler um capítulo.
Uma crônica.
Um conto.
Um poema:
Eta sábado belo, meu Deus!

Barulho d´água (Cargueiro II/Pedras)

Cargueiro II
Bochecas infladas, risos presos, pai e filho dentro da banheira, em silêncio, concentrados, caras de quem está esperando trem. De repente, um estrondo, gargalhadas: pela quantidade de bolhas que veio à tona, passou um cargueiro lá por baixo...
Pedras (para Manoel de Barros)
Meu filho me perguntou: --Pai, quem tem olho de pedra enxerga? Respondi não sei, mas expliquei: qualquer pedra vê o que está além do próprio nariz, embora pareça que elas nem olhos tenham, e sentem tudo, tudinho. É por esta razão que sempre devemos pedir desculpas se tropeçarmos nalguma por ai.

Barulho d´água (Mais três de gatos)

Mais três de gatos
1) Sorte
O desatento gato malhado resolveu bordejar fora do quintal justamente no dia em que interditaram a avenida principal para o desfile na cidade e o trânsito das ruas ao redor da casa perdera a calma de sempre. Se o atento motorista não tivesse bom senso e não costumasse brecar para animais, hoje o felino teria apenas seis vidas.
2)Telhado
Um pássaro, ousado para a situação, pousou no telhado a centímetros de onde estavam três gatos. Alheia ao perigo, talvez de gozação, a ave ciscou, ciscou, dançou o Quebra Nozes, pegou algo pelo bico, tornou a ciscar e a voltear mais um punhado de vezes, e só depois de um bom tempo, sossegadamente, bateu asas e voou. Os bichanos, mandriões, nem bocejaram. Fazia calor e eles só estavam interessados em toscanejar ao sol.
3) Manhã chuvosa
Manhã chuvosa, indolente como violino, só não me deixa mais madraço porque é de quinta-feira. Mas entre um bocejo e outro, a cada movimento do temporizador limpando a arenga-de-mulher no pára-brisas, a caminho de mais um fechamento de edição, como invejo o gato ainda enrolado nas cobertas, aproveitando-se do calor da cama e do meu travesseiro.

sábado, 29 de dezembro de 2007

Barulho d´água (A mãe no meio)

A mãe no meio
Pelas vésperas do Natal, um rapaz, usando camiseta do Timão, depositava carta numa caixa dos Correios, à entrada de um movimentado shopping, quando de um gaiato que por lá passava veio, gratuitamente, a seguinte provocação: “Ai, mano, escreveu para o Papai Noel pedindo para que ele traga o Corinthians de volta à Primeira Divisão?” O corintiano não mexeu um lábio, mas o olhar com o qual fulminou o piadista disse tudo, o engraçadinho, que também se calou, deve ter virado o ano se penitenciando, pensando arrependido bem que mamãe poderia ter passado as festas sem essa, permanecido na santa paz sem ser assim rebaixada...

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Barulho d´água (A batida)

A batida
Um grande helicóptero pilotado por um policial, durante a madrugada da véspera de Natal, sobrevoou o conjunto habitacional, subindo e descendo, de quase do solo aos andares mais altos, entre os prédios, janela por janela. Carregava uma poderosa metralhadora giratória, mais um holofote capaz de iluminar, sozinho, o Maracanã. A aeronave metia medo pelo tamanho, parecia mais um transatlântico, mas como navios não flutuam no ar ao menos que sejam o Holandês Voador, talvez seja melhor compará-lo a um avião mais robusto, não um B´52, um Hércules, embora fosse mesmo um helicóptero, um monstruoso helicóptero. Dá para imaginar o ronco do motor, o ensurdecedor barulho que a tudo fazia tremer, terremoto que aliado ao ruflar das hélices, não deixou nem sequer uma árvore imóvel, sem quase ser arrancada com raiz e tudo? Ah, e aqueles trapos que os donos dos apartamentos costumam pendurar para secar junto aos parapeitos, sabe onde foram parar? Uma a uma, à medida que se aproximava delas, as janelas iam se abrindo, atendendo ao imperativo comando do piloto – dava para sentir o clima de terror no ar, ai de quem se fizesse de tonto, que não colocasse a cara a vista para ser identificada, os mais prudentes mãos cruzadas sobre a cabeça, braços ao alto, quando não em trajes menores, nus, alguns clamando por clemência. Era neste instante em que vinha o facho da poderosa lâmpada bem no meio da fuça. A claridade era tanta que cegava, mas paradoxalmente permitia ver crânios pintados por toda a fuselagem, tudo que havia a bordo e que o sujeito, de cenho franzido, olhos ameaçadores, sinistro, não era o Papai Noel vindo entregar um presentinho. O porte da metralhadora enregelava a espinha, pelos buracos no cilindro por onde cuspiria os projéteis , pelo calibre que sugeriam, olha que deveriam ser apenas menores que ogivas. Era minha vez de levar a geral. Apesar de temeroso, resoluto levantei a cortina atrás da qual até então eu espiava toda a “batida” apenas entreabrindo as persianas. Então, o gambé jogou a lâmpada e viu que ao meu lado estava meu guri, assustado, mas fascinado. Tamborilou sobre a arma como quem contava até dez, brincava mentalmente de “bem-me-quer, mal-me-quer”, como quem decidia uma dúvida e qual decisão tomar, mas alívio: tirou a mão do gatilho. Depois, apagou o farol e todas as luzes do helicóptero simultaneamente. Antes de sumir como se houvesse sido tragado por um buraco negro, a mim bateu continência. O profundo silêncio que se seguiu fez com que eu acordasse. A lua cheia, emoldurada na janela, sobre o telhado do vizinho, acariciava o sereno rosto da minha amada dormindo, a gatinha aos pés dela; inundando meus aposentos de amarelada e intensa claridade (dava para ver o pó no chão e os pernilongos dando rasantes), já começava o movimento de descida do firmamento para trás do morro...

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Barulho d´água (Alfajor)

Alfajor
É curioso, mas somente hoje percebi: ainda passo
todos os dias defronte à doceria,
porém há tempos não compro alfajor
para você. Será que caimos na rotina?


Igrejinha (Paisagem II)
Igrejinha cor de rosa
rara construçao já acabada
entre tantas casas de paredes nuas
tristemente cinzalaranjadas

Barulho d´água (Na mosca)

Na mosca
Ágil e leve, a aranha mirou o alvo sobre a barra de metal do porta-toalhas. Então, rápida e fulminante, por um fio invisível, atirou-se do teto e acertou... bem na mosca!

Barulho d´água (Desacertos de um...)

Crônica dos desacertos de um grande amor

Eu assobio o refrão “bola de meia, bola de gude”, ela reclama: quer ouvir a música e exige silêncio. Eu acelero e tento uma ultrapassagem, ela resmunga e fala: se quer morrer, traste, morra sozinho! Para que ela não perceba, arrisco de canto de olho dar uma espiadinha na gostosa que invade meu campo visual, lá, na calçada oposta. Ela, arisca, ui, belisca-me e, agitando os braços, imita o bater de asas de uma galinha. Ato contínuo, luz do farol no vermelho, eu tento uma carícia, busco beijá-la. Ela refuga, e alega: minha mão pesa e minha barba espeta, arrê!

Já em casa, ligo o chuveiro depois da novela das oito (que eu odeio, todas, mas acompanho por razões sociológicas), convido-a para um banho. Ela avisa: quer descansar “só um pouquinho” antes, e pega no sono. Então, após passar pomada no músculo do braço direito (é por causa do beliscão, viu?), busco consolo no futebol. Ai parece mágico: sempre na hora do gol ela acorda, e pede, choramingando, que eu coce as costas dela, emenda queixando-se de que estaria frio e cobra que eu a abrace (...)

Pequenos desacertos de um grande amor, feito como todos de algumas contradições e sutilezas, além da observação de cuidados cotidianos como não deixar copos sujos na pia, ou a bituca que fede no cinzeiro, ou os jornais espalhados pela sala, ou a toalha molhada no tapete do quarto -- pecadilhos que, saibam, eu jamais cometo. Ou...

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Barulho d´água (Alma agreste)

Alma agreste

E eu que possuo alma agreste

Seduzido por teu sorriso de menina, mulher,

De novo experimento as duvidas e os medos,

Todos os temores que eu já tive:

Tu me habitas, mas não estás comigo

E neste desvario posso sentir a tua maciez

A textura de tua tez aveludada

(“tuas mãos doces, plenas de carinho”)

O frescor de tua língua grossa

O aconchego do vale entre as tuas coxas!

Ai quem me dera me fosse possível ter aprisionado teu afeto,

Liberar outra vez teu húmus em meus poros –

Esta bendita chuva que jorra na medida exata

E descalcina a seara na qual ardo!

Barulho d´água (O grito)

O grito

O rosto desesperado e estampado no jornal

deixou um grito parado no ar,

dilacerado, cortante, dolorido,

esbofeteando nossa cotidiana covardia:

de jardim, o bairro não tem nada,

de Ângela, só nome.

Naquele lugar pior que Cali,

onde nem político vai,

o que mais se reivindica não é asfalto,

não é ônibus, nem pronto-socorro --

Embora tudo isto falte, prioridade é continuar vivo,

é não morrer de bala bem endereçada ou perdida mesmo,

de tédio ou de medo,

não ficar jogado na sarjeta como se fosse esgoto.

O Jardim Ângela não é carioca,

não está nos mapas do JN e dos investimentos sociais,

mas está no das estatísticas e no da vergonha,

não deve ter orgulho nenhum de pautar reportagens,

e muito menos por estar nesta poesia.

Barulho d´água (Tempo de manacás)

Tempo de manacás



Era época de manacás, de novidades, e na Rua Carmem, as flores enchiam os galhos. Também era bonito o espetáculo dos piscas-piscas iluminando a barroca, vistos lá longe, da janela. Parece-me que havia musica no ar, não tenho certeza. Em mim, tocavam as três etapas do Concerto Grosso Opus 3/8. O clima era de festa: era tempo de celebrar o nascimento de Jesus-menino, com a Estrela de Belém brilhando bem em cima de casa!



(Era mesmo tempo de fatos novos, pois lá estava a Lusa na final do Brasileiro, ora pois, pois...)



Como demorava a espera: o pouco que faltava parecia eterno, e, ansioso, eu revirava a mente em busca de cantigas de ninar: “Quando o sol banhar o dia/arvoredo sombrear...”



Hoje, na penumbra da sala, a luz dos automóveis transpassando pelas capelinhas nos toca quando ambos já estamos com os colarinhos molhados pela troca de calor – nosso primeiro gesto de cumplicidade, como um violino e seu arco; na ponta dos dedos, há a viscosidade dos teus dourados cabelos também suados: “Estrada de terra, beira de riacho...”



(Percebo: teus suspiros estão mais espaçados e serenos.)



Cumpri a missão, penso: você, agora, dorme, estou saciado, sinto minha vida correndo pela espinha, e, novamente, sinfonias, agora, também no ar: será o allegro moderato do Concerto a cinque de Albinoni, ou o presto do concerto in g maggiore per achi e cembalo, de Vivaldi?



Homenagem ao meu filho, Jorge Henrique, que em 21 de dezembro chegará aos 11 anos

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Barulho d´água (Horas mortas)

Horas mortas

Nas horas mortas em que tudo some, sinto-me consumido e nem mesmo me interessaria em colher flores se um jardim tivesse. Nestas horas mortas rezo para que minha Rosa me evite, pois um homem em mim não encontraria. Nas horas mórbidas desanimado mais pareço amante abandonado após pedir o divórcio, carro sem motor enferrujando no tempo, zumbi: amordaçado pela abulia, nem sequer tenho dó do cão que me olha esfomeado. Posso lembrar uma murcha embalagem de picolé vazia, jogada ao chão, desolada e ensimesmada. Ou uma ponta de cigarro amassada, sem marca e sem alma. Não sinto os nervos nos meus mortos momentos. Como um poema desconexo, sou, enfim, uma pátria pálida. Uma bandeira sem matizes e em andrajos, carnaval descolorado de tamborins emudecidos. E computador desconfigurado aos quais nem mesmo um par de maviosos azuis olhos é capaz de dar ritmo, ou reprogramar. Decretem morte às horas mortas: desexilem-me de mim!

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Barulho de água (O louco do bairro)

O louco do bairro




O louco do meu bairro costuma ser visto sentado numa privada deixada por um relapso qualquer da vizinhança na calçada de uma das esquinas. A bacia, para ele, é o trono, do qual despacha desanexando terras do reino que governa, anistiando condenados à forca que usurparam riquezas do território, isentando pagamentos de impostos devidos à Coroa e decretando feriados para celebrar o casamento de cada uma das suas setecentenas de filhas. Educado, sempre que deixa o vaso, dá descarga -- afinal, quem é rei deve dar exemplo. Também gosta de percorrer a cidade dirigindo um ônibus que tem apenas o volante. Jamais trafega pela contramão, não avança sinal vermelho, sinaliza devidamente todas as manobras, espera os idosos descerem e ainda pára fora do ponto para passageiros embarcarem. Dia destes lançou moda ao desfilar com um tênis vermelho, de amarrar, no pé direito, outro azul, fechado, no esquerdo. Usava uma calça supostamente rota, amarrada à cintura com uma pedaço de corda verde, e uma camisa esporte estrategicamente rasgada, look mais casual, impossível. É quando chove que toma banho, para eliminar a sujeira que carrega e as moscas que o seguem, esfrega no corpo a lama vermelha das enxurradas -- para ele perfume sofisticadíssimo, francês. Nos dias ensolarados, gosta de virar pássaros, plana acima dos boeings, furando nuvens e mimetizando-se entre as faixas do arco-íris. Desde o começo da Primavera está convicto: transformou-se em bem-te-vi. E como, dizem, Deus protege os doidos, os bêbados e os inconseqüentes, para a namorada chocar os ovos da familia que em breve terá armou o ninho no topo de um transformador de alta voltagem...

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Barulho d´água (Como Deus relaxa)

Como Deus relaxa
Deus, caso exista, relaxa das putarias as quais nós O submetemos ouvindo Albinoni, com direito a palhinhas de Vivaldi, Handel e Bach, de vez em quando. E o que é melhor: ao vivo, com os próprios, em osso e espírito, executando as composições, nada de CD´s, muito menos de covers. Agora, quando está mais a fim de balançar geral e descarregar o estresse, advinhe quem é que Ele chama, atendendo sugestões de um antigo coronel? Para não perder o hábito, o boa alma costuma dar umas vaciladas, deixar o Todo Poderoso na mão. Mas, se não dá mancada, até quem está condenado a arder para sempre nos tachos do Capeta dança como se estivesse em Bogodó ou num baile funk.
Inferno
Esperar por três minutos por um semáforo abrir, ao volante, é uma eternidade. Dependendo do local, do dia e da hora, no inferno.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Barulho d´água (Tem gato na bolsa!)

Tem gato na bolsa!

Ônibus lotado, gente que saiu para o batente bem antes de o dia raiar voltando para casa com o sol já no Japão, cansada por mais um dia de labuta. Um gato começa a miar. Espanto: um bichano dentro do busão? Os miados param, mas, segundos depois, recomeçam. Algumas gargalhadas, ah, mas esta é boa, gente: quem tem a cara-de-pau de trazer animal a bordo de ônibus? Passageiros trocam olhares recriminadores, o cobrador se encasqueta, empina o corpo vasculhando por debaixo dos bancos, dando uma de autoridade e resmungando em tom de bronca “é contra as normas da empresa e da lei transportar animais em coletivos!”. Os miados param, passam-se poucos segundos, mas xi! recomeçam outra vez, duas, três, quatro, cinco vezes, até o rapaz, sentado ao lado da moça cochilando à janela, delicadamente, tentar acordá-la: “Moça, moça, psiu, desculpe-me ai, mas acorde, oh, olha, é o gato, o gato ai dentro da tua bolsa, está miando muito, ouviu? o bichinho parece que tá no maior sufoco, querendo fazer algo da natureza dele, é melhor você dar uma espiadinha, né?” Sobressaltada, meio confusa, então, ela desperta. Notando que virara o centro das atenções e alvo de balançares de cabeça, começa a abrir a bolsa. As piadinhas e as recriminações param, dão dar lugar ao suspense à medida que o zíper vai correndo, todo mundo em silêncio, intrigado, querendo ver a cara e a cor dos pelos do bichano, o que ela fará com o felino (“e se a bolsa estiver suja?”, pensa um passageiro, já levando uma das mãos às narinas). Do interior da bolsa, no entanto, sai apenas um celular. “Alô?!”, fala a moça, após teclar alguns números e alguns segundos transcorridos. “Oi, olá, meu amor, tudo bem? Estou no ônibus a caminho de casa, desculpe-me, tirei um cochilo e não ouvi quando você chamou!”

domingo, 9 de dezembro de 2007

Barulho d´água (Um lugar)

Um lugar
A mim já bastaria o mato,
fazendo ao redor para a casinha.
Os canteiros, o gosto de framboesa,
tudo o mais que houvesse por perto,
apenas tornariam o sonho mais aprazível.

Poema-diálogo baseado em Motivo, de Cecília Meirelles, e em Canteiros, que Fagner gravou em música, também inspirado na obra da poetisa.

Barulho d´água (Aguaceiro)

Aguaceiro
O céu estava claro, estrelas começavam a luzir por todos os lados, a lua despontava, brilhante, quando, de repente, desabou um toró daqueles. Ô Deus nos acuda, pegou todo mundo de calças curtas, sô! Aeroportos foram fechados, aviões que estavam no ar pousaram onde deu, quem não perdeu as últimas pipas que ainda estavam no ar levou para casa papel, linha e taquara ensopados. A decisão do campeonato, prevista para dali a algumas horas, ficou proutro dia, com já quase 20 mil torcedores nas arquibancadas, um formigueiro humano ainda marchando para o estádio. O trânsito, para variar... Isto sem mencionar os demais transtornos, alguns de proporções caóticas. E adivinhe se o túnel do Anhangabau não virou um marzão só, no qual até o Titanic poderia se arriscar a dar um rolê sem correr o risco de naufragar? Quando as autoridades decidiram convocar a imprensa para anunciar que seria decretado “estado de calamidade pública”, o chuveirão se aquietou por conta própria. Como havia começado, parou, mais nenhuma gota. Nem o mais renomado homem do tempo soube explicar o que se sucedera. Pois é, mas a culpa foi de uma estrelinha, sim, de uma estrelinha, que choramingava enquanto procurava, sem encontrá-lo, pelo pó que sempre passa nas faces para poder brilhar e ser vista pelas crianças. Estava no bolso da pontinha esquerda, onde ela mesma o colocara antes da choradeira que quase fez a terra virar mar...

Barulho d´água (Bambino)

Bambino
No berçário, chorou ao me ver: identificou-se comigo de cara. A primeira fralda suja, ma chè onore, coube a mim trocá-la!O primo som que balbuciou foi pa, é vero! A primeira palavra? Ora, caspita: padre, logoco! Ainda no colo, batia as palminhas quando escutava Funiculí Funiculá. Deu o primeiro passo segurando em minhas mãos. O primeiro tombo de biciclete não podia ter sido com outro. A primeira ida dele ao mato foi io que presenciei. Como bom figlio e nipote de oriundi adora lasanha e pizza marguerita. Me acompanha todo ano à festa de Nossa Senhora Acchiropita, não perde sequer um capítulo de Terra Nostra, e até já passeou comigo pela nostra cara terra. É. Ele é um bambino que me deixaria super orgoglioso não fosse por um detalhe: o maledetto, santo Dio, Madonna mia, é curintiano!

Barulho d´água (A fantasia de cada dia)

A fantasia de cada dia
Ano novo, piada velha... O que esperar de um tempo arbitrariamente limitado e que já nasce sendo responsabilizado pelas alegrias ou tristezas dos homens?
-- Que 88 te traga muita saúde, meu chapa! Que você compre seu carro novo...
-- Que droga de ano, este! Nada do que fiz, até agora, deu certo...
Como será 88 sem a poesia de Drummond? Será que um outro Carlos vai ser ungido “gauche” por um anjo torto? Quem tornará o Brasil risível agora que a graúna voou para sempre? Surgirão outros? Teremos diretas? Corinthians campeão? Homens sérios que pensem nos destinos de quem dirigem?
Mas, enfim, é Ano Novo... E se os Estados Unidos invadirem a Nicarágua? E se a guerra de El Salvador matar mais 1 milhão? E se os palestinos continuarem sem terra? E se a UDR vencer sua guerra contra a reforma agrária? E se os aiatolás resolverem explodir o Golfo Pérsico? E se os Estados Unidos e a União Soviética se fizerem ainda mais convenientes? E se a ONU der a benção?
Os fogos, contudo, anunciam a esperança geral... E se a PM matar mais Adãos ou Pixotes? E se a Aids escapar de vez dos grupos de riscos? E se a classe média atarantada continuar descarregando seus ódios em negros, homossexuais, índios, idosos, menores abandonados e outros que, por serem diferentes, parecem ameaçá-la? E se a inflação atingir 800? E se a música acabar? E se você continuar me faltando?
O mundo não deixará de seguir seu curso, a camada de ozônio não se reestruturará e nem a Terra deixara de girar em torno do Sol só porque é 1988. Na certa, viveremos mais 365 dias em que muitos, por falta de uma palavra amiga, apertarão o gatilho contra a própria têmpora... Mas é preciso ter esperança. Melhor ainda: é preciso ter fantasia. Ela é a única força capaz de nos distinguir daqueles que já não amam, não perdoam, não sonham...
Então, que 1988, já tão devedor para os homens, agüente firme todos os solavancos que nós causarmos. Se a paz não surgir de fato, que pelo menos cada um liberte a criança/fantasia que hiberna em seu interior. Pode ser que, um dia, um garoto grite a manchete de um mundo novo nua rua qualquer...

Barulho d´água (Teimosia)

Teimosia

que bom ter nada para fazer

ficar sentado ao sol lendo poesia

vendo jorginho correr no campo de peladas

admirar o caderno de jéssica –

que bela letrinha tem esta danada!

ou ver o timinho de osasco treinar

enquanto o limão se oferece no pé

o relógio porém logo apita

e já é hora de se aprontar

dar tchau para os bem-te-vis

fazer o nó da gravata

tomar mais um gole de café

a benção mãe até loguin’amor

entrar no carro

como sempre o trânsito é lento

hoje não tenho trocado menino

vá você pra ver se é bom barbeiro

abrir gavetas ligar o pc e como sempre

todo dia das dez às dezoito

trabalhar trampar ralar

mas não faz mal não sanguibom

encare tudo numa boa

e amanhã mesmo que chova

sente-se de novo ao sol

e se possível de quebra

componha algum haikai

Barulho d´água (Gesus ou Jenésio?)

Gesus ou Jenésio?
Dia desses, na feira-livre lá do bairro, à medida que ia pendurando no varal sobre as pilhas individuais de alimentos o cartaz com os preços daquele dia, um dos funcionários da barraca ia dizendo o nome de cada um deles, enfatizando sempre as letras que poderiam gerar dúvidas e outras características, como por exemplo, “jiló, com jóta!”, conforme exclamou. O item seguinte foi o chuchu, “com dois cêágas”, e assim sucessivamente, passando pela vagem, “com gê, de gato”, cenoura, “com cê de coelho, que é quem mais gosta delas”, e quiabo, “com quê e muita baba”. Fiquei prestando atenção no jeito bem-humorado do rapaz, achando um barato como ele recorria à criatividade para mencionar, corretamente, o nome de cada tipo de alimento à venda cuja grafia pudesse – e costuma -- gerar algum tipo de confusão devido às semelhanças entre sons de letras diferentes. Percebi que depois do quiabo viria outra delícia do dia-a-dia que também faz as pessoas trocarem Gesus por Jenésio. Fiquei esperando para conferir como ele iria se pronunciar, se acaso também não tropeçaria, como pode ocorrer com quem não tem tanta intimidade com a língua, o que não parecia ser o caso dele. “Barriga preta, que lá em casa, para emagrecer, vira até chá, com cêága!" falou. “O quê, como assim?” protestei no ato, zombeteiro: “Vai me dizer que desta vez você não sabe se é com gê ou com jóta que se pronuncia o nome desta comida ai, hein?" O camarada não perdeu a pose. Demonstrando que sabia, estava só sacaneando, emendou, sem deixar a peteca cair: “Sei sim, senhor, qual a letra aparece no meio do verdadeiro nome da barriga preta aqui, que por sinal, fica uma delícia servida à milanesa, mas milanesa com ésse de suflê, e não zê de zoeira como estou fazendo, mas que muita dona de casa que passa por aqui pensa que é!" . "Tá certo, tudo bem, nesta você me pegou, parabéns, colega, fazer feira assim é bem mais divertido", devolvi, já saindo. "Sempre às ordens, e precisando de algo, é só me procurar, sou o Genésio", completou, estendendo-me a mão. "Mas como meu nome sempre dá muita confusão, pode me tratar pelo sobrenome mesmo, viu, anota ai, este não tem como ninguém errar: é Jesus!"

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Barulho d´água (Anjo da guarda)

Anjo da guarda
O Olaria do Nino via Novo Osasco descia a Primitiva Vianco rasgando. Desatenta, a tia que estava na calçada pôs o primeiro pé no asfalto. Quando ia baixar o segundo, a mão firme do mascate vendedor de discos piratas puxou-a de volta pelo ombro. O vento provocado pelo deslocamento do busão quase derrubou ambos. Dona Judite, pálida, balbuciou um raquítico "obrigado, Deus lhe pague!" O homem sorriu e disse apenas "não há de quê!" De noite, em casa, ela ainda tremia ao se lembrar: por pouco não deixou de assoprar as velas do bolo que filhos e netos preparam para ela naquele dia em comemoração aos 65 anos de vida, ela que desde pequena achava que histórias de anjos da guarda seriam conversa para boi dormir.

Barulho d´água (O gato Arco-íris)


O gato Arco-íris
Amarelo não entrou. Violeta também ficou fora. Mas o gato que o guri pintou no dia da volta às aulas, além de sorridente, é bem colorido. Tem até uma pincelada de cinza metalizado.E faz jus ao nome: Arco-Íris.

Barulho d´água (O segredo)





O segredo

O menino não só acredita em dragões: cria um, debaixo da cama! Bem tratado, Espada está cada vez mais roliço. Também, pudera: até iogurte de chocolate entra no cardápio do bicho! Mas em casa ninguém sabe que Espada existe, embora seja um sufoco para escondê-lo cada vez que a mãe do garoto varre o quarto. O segredo é compartilhado apenas com Roxinho, bichano de olhos avioletados que não gosta muito da criatura, da qual já levou alguns tapas e algumas baforadas mais quentes, descontadas com unhadas e mordidas no rabo pontiagudo do adversário com quem vive às turras, como gato e dragão. O pai do guri é quem anda com a pulga atrás da orelha, desconfiando de algo desde que passou o filho pela pediatra -- recorrera à doutora intrigado com o fato de as guloseimas evaporarem da geladeira, mas o guri continuar sequinho, um fiapo, quase um filé de bacon. Exames de fezes e de urina (que ela pedira por desencargo de consciência, apenas) nada indicaram, estava tudo nos trinques. A médica, por sinal, antes mesmo de receber os resultados do laboratório, havia notado o quanto, além de saudável, o pequeno paciente irradiava felicidade, soltando vida pelas ventas, nadando de braçadas na fantasia. Experiente, acabou sacando sobre Espada trocando idéias a sós com o piá, razão pela qual resolveu prescrever a receita, inédita, entregue ao pai assim que este pode retornar ao consultório. De forma caprichada, longe de parecer aqueles estranhos sinais que a turma dos aventais brancos chama de letra, não indicou vitaminas, fortificantes, nada, nada disso. Pediu somente que o menino pudesse continuar a ser criança, brincando muito e realizando tudo o que imaginasse. Mesmo que fosse preciso reforçar o estoque de iogurtes, trocar algum móvel ou objeto da casa que aparecessem chamuscados, ou levar Roxinho para o veterinário curar uma queimadurinha à toa...

Barulho d´água (Agonia)

Agonia
Telefonou para a esposa comunicando que, naquela noite, chegaria mais cedo em casa. Mas, arrependeu-se logo, comentando com o amigo de trabalho: “Minha mulher não pode ver um tempo livre na minha rotina que logo me escala”. E explicou o motivo de tanta contrariação: “Supermercado! ‘Comprar umas coisinhas que faltam em casa, benhê’”, falou, imitando-a. A lista mandaria pelo e-mail. Antes de deixar o batente, abriu a caixa de mensagem, batata, estava lá: um pacote de arroz, outro de açúcar, pó de café, margarina, leite, manteiga, três páginas de coisinhas! Calculou que até pegar tudo deixaria o supermercado entre 19h30 e 20 horas, bem na hora na qual as caixas estariam trocando de turno. Haveria filas com tempo de espera maior do que o normal até que cada funcionária estivesse pronta a assumir o posto da anterior. Respirou, relaxou, nada de mais ruim poderia acontecer com ele depois de tomar uma canseira destas! Com sorte, chegaria a tempo de tomar banho, de jantar e de sentar-se confortavelmente defronte à televisão para ver jogar mais uma vez o time do coração, latinha devidamente gelada nas mãos, petiscos sobre o braço do sofá, o gato Gamarra ao ombro. Carrinho cheio, mais rápido do que esperava, safou-se da obrigação. Já no estacionamento, notou que ventava. Uma brisa agradável, noite de meia-estação. Pensou em tomar uma cerveja na praça de alimentação, mas desencanou, queria era livrar-se do terno no qual se enfiara às seis da manhã. Fechava o portamalas quando sentiu a ponta cutucando-o às costas e ouviu a voz serena, contudo, imperativa: “Entre no carro, em silêncio, assuma a direção, faça tudo o que eu mandar!”. Tentou virar-se e falar algo. Cercado por três, bom carneiro, obedeceu, sem berrar.
Dentro do automóvel, o homem que o abordou mandava, do banco de trás, onde se sentara com um dos outros. Os terceiro seguia à frente, no banco do carona, de arma em punho, mas não engatilhada. Ao perceber que o motorista estava aflito, suava frio, o manda-chuva falou: Fique tranqüilo, nada de mal irá acontecer a você. Dentro de pouco mais de duas horas o libertaremos perto do supermercado, sem nada levarmos. É só relaxar, fazer o que a gente pedir, tudo acabara bem. Precisaremos do teu carro, mas você mesmo o trará de volta”. Engoliu seco, que puta sacanagem seria aquela? Quis falar, o do banco do carona pôs o indicador sobre os lábios e avisou, apontando para ele o ferro, “toca para onde ele mandar”. Já rodava há meia hora, recebeu ordem de parar. “Agora, presta atenção. Você será levado em outro carro, encapuçado, deitado no banco de trás, até chegarmos ao local onde tem um pessoal nosso te esperando para te ‘guardar’ até voltarmos. Mas relaxe: te dou minha palavra, nada de mal te acontecerá”.
Vinte minutos naquela agonia de nada ver até que o carro parou. Ouviu um portão pesado sendo aberto e o automóvel novamente seguir. Calculou por mais dois quilômetros por um caminho que, deduziu, seria a entrada de um sítio ou de uma chácara, pois chilreavam grilos. Quando o veículo parou, houve troca de cumprimentos entre quem chegava e quem o aguardava e teve a cabeça descoberta. Estava em uma luxuosa casa, no meio de um breu só, cercada de árvores que soltavam no ar forte perfume. Temeu nunca mais sair de lá. Tenso, acuado, angustiado, necessitava de ir ao banheiro. Um dos homens que o conduzia reafirmou que tudo ficaria bem e recomendou pela enésima vez que relaxasse, estavam instruídos para tratá-lo com cuidado. Introduziu-o, então, numa ampla sala, na qual era aguardado por um casal jovem. Cortês, educada, a moça pediu que se sentasse, enquanto o parceiro dela iria até a cozinha buscar comidas e bebidas. Esquecera-se do estômago. Ainda pouco à vontade, balbuciando, informou: precisava mais de toalete do que de matar a fome ou a sede. “Tudo bem, leve-o”, ela mandou, designando para a tarefa o rapaz que o trouxera do quintal para dentro. Notou a caminho do banheiro que nenhum dos três “vigias’’ portava armas, eram gentis como os outros que o capturaram. Entretanto, entrou mudo e saiu calado do banheiro (mantiveram aberta a porta), segurando o choro e rezando mentalmente para que aquele pesadelo realmente terminasse em breve, como prometeram.
De volta à sala, os namorados permaneciam impávidos. Viu o próprio celular, desligado, sobre a mesinha de centro. Havia também café, bolachas, frutas, pães, sucos, leite, frios, refrigerantes. “Se quiser, ligue para tua família, mas, demonstre naturalidade, nada ouse, pois, do contrário, mudaremos os planos”. Entendeu o recado, preferiu o silêncio. Passava telejornal na tevê, que ele assistiu mecanicamente. Os pombinhos, sem se importar com a presença dele, trocavam carícias. Dez minutos de intensas dúvidas, quase entrando em transe, ora imaginando o pior, ora vendo-se novamente no lar, beijando a esposa e os filhos. Sentiu uma ponta da fome, até então, anestesiada pelo cagaço. Olhou para a comida, queria laranjada, fez que iria pegar. Desistiu, engoliu seco, segurou a cabeça com as duas mãos, esfregou os olhos e depois desceu as palmas, escorregando-as pelas faces, gesto sem sentido repetido à exaustão, sentado perto de estranhos que sequer sabia se eram bandidos ou sabe-se-lá-de-qual-laia, presenciando longos e ardentes beijos, vez ou outra, obscenidades. Queriam torturá-lo? Mas, por qual razão, se em momento algum, desde ter sido apanhado, foram violentos? Ao contrário, esforçavam-se para se mostrar simpáticos! O que pretendiam, e quem seriam, então?
Vencido pela fraqueza e por uma dor que começava a latejar, queimando a barriga vazia, serviu-se de um copo de leite. Tomou-o devagar, esperando ser censurado pelo casal. Como nenhum dos dois se mexeu, e o da porta apenas assobiava, optou por duas bolachas, outro copo de leite. Quando ia comê-las, o telefone soou. O rapaz que o tirara do carro atendeu à chamada, entrou na sala fazendo sinal de positivo e deu um pulo para o alto a la Pelé, esmurrando o ar e gritando gol. Tudo sairá conforme o traçado, os demais já estavam a caminho. “Assim que eles chegarem, cumpriremos nossa palavra. Tome mais um café, dá tempo”, falou a moça, transbordando contentamento. Em pouco mais de meia hora, chegaram dois carros. O dele vinha na frente, guiado por um rapaz até então fora do grupo, sozinho. No segundo, o trio que o “raptara”. Antes de entrar neste veículo, novamente teve a cabeça coberta. O medo aumentou, fez doer os ossos. Protegido pelo capuz, chorou baixinho ao perceber que o carro partia: viraria presunto, onde seria desovado? Entretanto, conforme acontecera na ida, em certo ponto, ao lado do primeiro trio, reassumiu o volante do próprio automóvel, que logo atrás era conduzido desde que abandonaram a mansão. Perto do supermercado, novo pedido para que encostasse. Parou, os três desceram rápidos, mas o que dava as cartas deteve-se um instante. Encostou-se à janela do atordoado homem e pediu desculpas por tê-lo incomodado e o assustado. Depois, cordial, embora com um tom velado de ameaça, asseverou: Vá agora, está tudo em paz. Como nós nunca o vimos, você também não esteve conosco, certo?”. Sobre o banco de trás, o sujeito jogou o celular e um bolinho de notas de cem reais. Tremendo, mas seguro de que já estava a salvo, pegou o telefone pensando 190. “Lógico, toupeira, aparelho sem bateria!” Procurou dentro da carteira a oração do Justo Juízo Final, já quase se esfacelando. Mantinha o impresso junto aos documentos desde os quinze anos -- lembrança da mãe, que garantira: sempre que estivesse portando a tal reza, nada de mal aconteceria ao filho. “Enfim, agora que não tenho mais desculpas, darei aquele pulinho à Basílica!”, falou, olhando-se no retrovisor, aproveitando para enxugar uma lágrima furtiva. Sem ao menos procurar saber quanto de dinheiro havia no maço, ou cogitar hipóteses para a origem da grana, mais as razões pelas quais o teriam remunerado, jogou-o fora, no meio da rua mesmo, desejando que uma pobre alma encontrasse as notas. Dirigiu lentamente, soltando ufas e mastigando um misto de dúvidas e de raiva: quais eram mesmo os números da placa do carro onde o trio o levara? Ao aproximar-se de casa, viu a mulher. Ansiosa, amparada por vizinhos, de celular na mão, ela esperava-o junto ao portão.


quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Barulho d´água (Precaução)

Precaução
Pica-pau, de férias dos desenhos animados, anunciou que irá passá-las na Disneylândia. Por precaução, Pinóquio já se mandou para Patópolis.

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Barulho d´água (Troféu)

TroféuPassou fácil pela segurança da obra -- mole para quem escala três metros de muro, sobe em árvore de fruta em dois tempos, vai em um estalar de dedos do Oiapoqui ao Chuí. Do topo do futuro prédio de dez andares, rindo sozinho e como quem exibe à torcida o troféu de campeão, colocou no ar a pipa taiada que vinha de longe perseguindo e ficara presa aos ferros de uma coluna inacabada.

Barulho d´água (No tempo dos quintais)

No tempo dos quintais

Brinquedo era sabugo. Ou toco. Assustador era morcego no abacateiro e, perigoso, cair no poço. Dependendo do bairro, ser picado por cobra. Longe era ir de bicicleta. De ônibus, ave-maria! Inocência era colocar passarim morto na forquilha mais alta do pessegueiro: Deus sempre vinha buscá-lo. Ou comer a “gelatina” da mesma árvore, depois da chuva, para jamais ficar velho. Autoridade era o pai. E que festa quando ele nos levava à feira ou ao armazém! Felicidade era chupar uma laranja, ainda sentado na barraca. Tomar uma Grapette ("Quem bebe, repete!"), geladinha, só tua. Ou voltar para casa com os bolsos cheios de bala Paulistinha, Juquinha ou "sonrisal" ! Medo só se sentia quando São Pedro resolvia lavar o céu e arrastava móveis, provocando curtos-circuitos do diabo, oh, Santa Bárbara e São Jerônimo, valei-nos os terços e os ramos bentos! Ou quando os mais velhos liam à luz de lamparinas ou de lampiões histórias de assombração de gelar a barriga. E por falar em coisas do além, morrer era apenas virar uma estrela, ter a mesma sorte de nossos avós. E viver um tempo sem relógios. Sem muros. Com toda a liberdade e extensão possível dos quintais. Apesar dos poços, os quintais eram o mundo. E com muitas vantagens, eles viviam coalhados de maria-pretinha, de amora, de gabiroba...

Barulho d´água (Na marca da cal)

Na marca da cal

Temporada após temporada, o Real Lisboa, outrora um dos melhores do país, vinha definhando, envergonhando os membros da colônia estrangeira que torciam pelas cores de tão gloriosa camisa. Depois de rebaixado no campeonato nacional, mergulhado em crise financeira devido às sucessivas más gestões, sem crédito e tampouco credibilidade na praça e com dificuldades para obter patrocínio até da mais singela padaria, o simpático clube cujo patrono era Luís de Camões se preparou como deu para o certame estadual, cortando, por exemplo, a tradicional pré-temporada numa estância serrana. A drástica medida não foi a única, nem bastou para segurar a derradeira das estrelas do time. Insatisfeito com o pagamento há meses atrasado, recusando-se à política de redução de salários imposta pela diretoria, Celso Ramos pegara o boné quando a nau naufragou e estava disposto, inclusive, a largar a vida dentro das canchas caso um empresário não o tivesse encaixado no maior rival -- ganhando o dobro, e em dia. O pior é que, devido à pindaíba, nenhum reforço de renome pode ser contratado. A comissão técnica, sem saída, viu-se obrigada a fazer o tradicional omelete sem ovos, montar um catado mesclando garotos da base com ex-jogadores em atividade, que há tempos deveriam ter já pendurado as chuteiras, mais obscuros boleiros de agremiações de expressão beirando zero.
Grito de campeão preso há quase dez anos, a torcida colecionava, portanto, motivos suficientes para desconfiar, temer por novo fiasco. E a bola nem precisou rolar por muito tempo para as previsões mais catastróficas irem uma a uma se concretizando. Logo na primeira rodada, o Real Lisboa levou tremendo “sacode”, e do caçula do campeonato! A verdade é que todo o time era uma perebeira só, mas Cristiano Reinaldo (ou CR) conseguia ser ainda pior e foi pego para Cristo. Lateral-direito abaixo da média, CR cometia proezas como errar passe a dois metros de distância do companheiro. Lento na marcação, de baixa estatura, durante o prélio de estreia tomou canetas, pedaladas, elásticos e até carretilha do ponta-esquerda adversário -- um atrevido crioulinho que acabou apontado como revelação do campeonato, rapidinho vestiu a amarelinha e virou alvo da cobiça das mais bem estruturadas agremiações europeias.
Estava dramática a situação! Nunca antes se vira tantos pernas-de-pau juntos e nada engrenava naquele arremedo de time de futebol que, somente na quinta partida, quando a defesa já era a mais vazada, conseguiu quebrar o lacre e farfalhar nas redes inimigas. O golaço contra do beque inimigo até poderia ter sido eleito o mais bonito do domingo! Ainda assim, necas dos primeiros três pontos, pois o pega ficou mesmo no 1x1. Este empate, se não poderia ser considerado refresco, ao menos serviu para unir o grupo em torno do “Professor”, cuja cabeça já estava a prêmio. Comissão técnica e jogadores, então, selaram um pacto, ensaiaram bem aquele discurso ao estilo de todos os boleiros: se fosse preciso, comeriam grama, colocariam os corações nas pontas das chuteiras para evitar novo descenso.
E todos, de fato, procuraram ir além das frases feitas e das próprias limitações. O Real Lisboa melhorou um tiquinho nos demais jogos, chegou a levantar fumaça ao faturar nove pontos seguidos, empenhou-se muito até a rodada final. Mas ainda assim chegou lá já com a corda apertando no pescoço, precisando de uma improvável combinação de resultados que excluía o empate na partida vital, da qual era o mandante. A cartolagem convocou os lisboetas a apoiar o time, reduziu preço dos ingressos, sorteou brindes. Uma famosa cantora – regiamente paga pela Federação -- rebolou a bunda num show meia-boca antes de o apito inicial soar, e durante o intervalo. As poucas testemunhas masculinas que atenderam ao apelo da diretoria, insensíveis, babaram aos protestos das mulheres que gritavam contra o que viam e classificavam como “rapariga sem-vergonha”, ao passo em que tentavam tapar os olhos dos piás. Um vira-lata sarnento, que ninguém soube como adentrou no estádio, pôs se a perseguir um gato gorducho que estava de bobeira pelas arquibancadas, lambendo os beiços por uma pomba. No encalço do bichano, o cachorro derrubou a caixa de isopor de um sorveteiro e quase levou o próprio a nocaute.
 
Cara a cara com o mito
 
Foram os últimos deleites antes do sofrimento dos torcedores, que enfrentariam um duro teste para descobrir se tinham coração forte. Vencendo por 1x0, o Real Lisboa cozinhava o galo já desde os 35’ da etapa inicial tentando manter o placar salvador; nas outras partidas todas as nossas senhoras invocadas pelos torcedores estavam de plantão: tomava bolas nas três traves e nas forquilhas, tirava a bola em cima da linha, escapava do empate com o gol escancarado. O ponteiro começava a dar a penúltima volta no relógio, o milagre estava prestes a se consumar quando o centroavante do Grêmio Batoré recebeu passe açucarado na área e deu um “come” no goleiro Casijas. Quando iria tocar para o balaio, levou um gancho de mão no pé de apoio. O árbitro, bem colocado, não pipocou: apontou a marca da cal e ainda fez valer a regra, mandando o faltoso para o chuveiro.
A expulsão obrigaria o treinador a colocar em campo o reserva da posição, se desgraça pouca não fosse bobagem! As três substituições já haviam sido queimadas para reforçar a retranca, e, sem saída, o treinador pediu ao capitão Oziel para achar entre os colegas quem encararia a fria de tentar defender a cobrança da penalidade. A maioria, claro, tirou da reta. CR topou, pôs as luvas e, humildemente, posicionou-se sobre a risca da morte para tentar a façanha de evitar o gol de empate. Os torcedores que estavam por perto da meta, mais pelo inaudito da situação do que pela fé que botavam no maior pereba do clube, correram para trás do gol, queriam ver o mais de perto possível a caveira daquele condenado. “Como este gajo conseguirá pegar pênalti, minha Nossa Senhora de Fátima, se nem é capaz de cobrar lateral?”, gritou um torcedor. Outro, em resposta, bêbado, devolveu:O CR defende! E vou entrar no campo depois para dar um beijo na boca dele!”
 O zagueiro Júlio Jurema, que já contava mais de cinquenta gols batendo pênalti, sem jamais ter errado um ao longo da carreira, eficiência que já o mitificava, foi incumbido da cobrança. O quarto-zagueiro batoréense era dono de um petardo desferido pelo pé esquerdo que de tão potente já chegara a rasgar redes e nem sequer distância costumava tomar para os tiros. Ignorando patéticos apelos dos adversários para que fingisse errar o chute, avesso à chuva de chinelos, de sapatos e copos descartáveis com conteúdos suspeitos que desabavam sobre si, JJ disparou o míssil em direção ao canto direito, batendo à meia altura uma bola que tinha tudo para ser indefensável. Tinha, pois num voo espetacular, o improvisado arqueiro desviou a pelota a escanteio. Coberto pelos companheiros que correram para abraçá-lo, Cristiano Reinaldo, ainda no solo, estendeu-se na grama, de braços abertos a olhar para o céu, curtindo a alegria e agradecendo a Deus. Desconfiado, o manguaceiro mirou a garrafa antes de atirá-la longe. Só deu fé que não estava sendo enganado pela bebedeira ao ser cobrado o córner. Abraçando o cão invasor, vibrou mais uma vez quando a zaga isolou novamente o perigo, mandando a redonda para as arquibancadas, de novo pela linha de fundo. A brazuca, única que os gandulas ainda não tinham feito evaporar, caiu perto dele e, enfim, a torcida resolveu colaborar, retendo-a o quanto pode. Sua Senhoria ainda fez teatrinho batendo os dedos no relógio, mas não bancou a besta. Esgotados os quatro minutos que ordenara de acréscimos, apontou o centro do gramado. Fim da epopeia, o Real Lisboa assim manteve honrosamente a vaga na elite. 
CR ajoelhou-se e fez, pela enésima vez, meio zonzo, o sinal da cruz. Ouvia gritarem o nome dele de todos os setores, mas sentia-se tão em câmera lenta que custou a se por de pé. Quase meia hora depois, quando enfim chegou ao vestiário, estava só de cueca -- e olha que, por pouco, não ficou tal e qual Adão, pois o pau-d'água insistiu em levá-la também como troféu e só a muito custo foi removido por policiais -- não sem lascar um tremendo beijo na boca do ídolo. Eleito pela imprensa o melhor em campo, CR faturou desde celulares com banda larga badaladíssimos a estojos de cosméticos. De quebra, pela primeira vez na vida, esteve em vários programas de televisão exibidos naquela noite. Numa das mesas redondas soube ao vivo, por intermédio do presidente do Real Lisboa, que teria o contrato revisto já no dia seguinte, e passaria a receber o dobro, além de uma placa de prata. Feliz com a situação, o vilão que virara herói ainda teve espírito para soltar uma anedota no ar, brincar com o dirigente com quem falava pelo telefone: só não toparia a renovação se outro clube propusesse levá-lo para debaixo dos três paus.
 
 

Barulho d´água (O fim)

O fim
Amou pela última vez nem sabe quando. A traição da mina não sai da cabeça dele, literalmente. Perdeu o melhor amigo baleado numa emboscada. O intrujo dançou na mão da "Cinza", não dá mais para fazer aquelas lanças. Para piorar, a grana do bico na obra continua promessa (“Será que estão me enrolando?”). O derradeiro cigarro do maço virou bituca, se der o trocado no paratodos não o terá para o de comer. Ou para aquele trago (“ou pra marola...”). A noite está chegando (“Esta garrafa só tem meia dose!? Será que estão me roubando?). A barriga ronca repetidamente, e o seu Zé da quitanda anda esperto, não aceita pendurar mais nada. A noite está chegando. Dico Ratão já mandou o recado (“Ou paga ou morre, tá jurado, corno!"). Os home tão dando direto geral no bairro (“Será que aquele filho da puta me caguetou?") O calor juntando moscas, lixo amontoado nos cantos. O NP sobre a mesa manchetando crime passional (“Sem vergonha, mereceu os pipocos na cara, puta, mulher à toa!"). O coração perguntando: com quem estará Suzana? A noite já caiu, é tarde, no copo a dose, agora, é imaginária. Um zumbido corta a rua (“Sirene? Talvez, será?”), estampidos rompem de novo a solidão até então só burlada pelo chilrear de um grilo ("Nova vingança, talvez... será que estão me chifrando? Hum, e se deram meu barraco?") Passos apertados e apressados nas imediações. Cães latindo, nervosos. Tremedeira. Delírio. Olhos fechados, um corpo ( “ahhhh,, Suzanaaaaa, huummm, não, não vou pagar aquele rato, que ele se foda!, Teresa, hum, hum, hã, hã, Suzanan, Suzanan, ai, ai, filho da puta, eu é que vou te dar baixa, Suzanan, ai, ai, Suzanan, ah, hã, hã, aaaaaaahhhh, ai, ai, ai, ai, portuga sovina, enfia no rabo tua ... Suzana, ai,ai tesão, quitanda de merda, gostosa, gostosa, cachorra, potra, aaaah, hummm, babacas, aaaahhh...) Um leve choque, breve arrebatamento, alívio... Vazio... Violentas batidas na porta, taquicardia... A garrafa vazia. O maço de cigarros vazio. A carteira vazia. A alma vazia, mas em enlevo, no tambor, só uma bala. Novo estampido. A arma, agora, também vazia...

Barulho d´água (O menino magricela)

O menino magricela
Era uma vez um menino magro, ou melhor, um fiapo, bem magrinho. Era tão mirrado o coitado que, dependendo da ventania, precisava segurar-se em algo, num poste, numa cerca, no que fosse possível para não ser levado para longe como uma simples folha de papel. Chamava-se José Paulo, mas ninguém o conhecia, ou o tratava pelo nome. Quando queriam se dirigir a ele, por zombaria ou por costume, só o chamavam de Menino Magricela, apelido que ele ganhou cedo, dado pelo próprio pai, que num misto de carinho e de espanto, vivia dizendo «que bonitinho é meu menino magricelo». E de fato, além de frágil, o menino era bonito, parecia criança de televisão. Razões pelas quais, quando entrou para a escola, passou a ser o alvo da chacota de outros moleques -- que tiravam muito sarro dele, inventando outros apelidos, como «pau de virar tripa», «saco de ossos» e «pipa sem vareta» -- e ainda o centro das atenções das meninas --que suspiravam só de vê-lo passar. Nem mesmo os professores, inclusive quando faziam a chamada, pronunciavam José Paulo. «Menino Magricela?», perguntavam. «Presente, tia», respondia o garoto, automaticamente. De tanto escutar o apelido, já se acostumara. Aceitou, igualmente, sem nenhum complexo, a magreza. E de tal forma que passou a não dar mais bola nem para as piadas, nem para as alcunhas engraçadas que nele colocavam. Já os gracejos femininos e as propostas que recebia das garotas, embora o deixassem bastante feliz, também intimidavam-no um pouquinho -- o que as obrigava a tomar as iniciativas, afastando às vezes o arredio galanzinho.
Num certo dia, a caminho de casa, após a aula, soprou um vento muito forte e pegou o Menino Magricela desprevenido. Sem ter onde se segurar, ia sendo arrastado para não se sabe onde quando, no meio do caminho, chocou-se com nada mais nada menos que Maria Belinha, a mais cobiçada garota da escola. Gamada no guri como as colegas, Belinha quase desmaiou de felicidade ao ver que ele, literalmente, caíra no colo dela. «Puxa vida, desculpe-me por este encontrão, foi o vento que me carregou», disse Magricela, vermelho de vergonha. «Ora, que é isso, você não teve culpa não, sei que o vento trouxe você até a mim, quero dizer, até aqui, então, tá desculpado!», respondeu Belinha, emendando sem perder tempo «Mas, veja só como você teve sorte, né? Você poderia ter caído lá no meio da rua, em cima de um homem bravo, ou num espinheiro, mas que sooooorte, desabou logo em cima de mim! E olha: nem fiquei assustada, não, até acho que... hum, gostei!". «Gostou, como assim?», perguntou espantado o moleque, antes, de, no entanto, concordar «É, tá bom, de qualquer forma você tem razão. Já entrei em muita fria por causa do vento. Uma vez, cai em cima de uma tábua com um prego na ponta. Noutra, num quintal onde tinha um cachorro bravo. Até dentro do lago eu já fui jogado, ainda bem que sei nadar... Bom, mas já que você me desculpou, me dá licença, preciso ir», disse, já saindo, sem notar que os olhos de Belinha brilhavam.
A garota, no entanto, não queria perder a chance de ficar um pouco mais com o Menino Magricela. Agarrando-o pela mão, afirmou que ainda era cedo para ele ir embora e convidou-o para tomarem um sorvete num carrinho que ela conhecia, pertinho dali. Magricela, meio sem jeito, agradeceu, mas informou que não poderia ir, desculpando-se por não ter dinheiro. Belinha, porém, lembrou-o, esperta: ela convidou, portanto, pagaria pelos sorvetes. Percebendo que ficara sem jeito de negar, José Paulo cedeu, não sem alertar que precisavam ser rápidos, pois a mãe dele poderia ficar preocupada caso o garoto demorasse a voltar para casa. Prontamente, Belinha arriscou e se deu bem com uma piada: «Ah, então é só você falar para ela que o vento te levou para bem longe, bobo, por isso você se atrasou!»
Minutos depois, os dois estavam ao lado do sorveteiro. Depois que cada um chupou seu picolé, Belinha pagou e ambos voltaram a caminhar. Sentindo-se intimidado com a tentativa dela pegá-lo pela mão, Magricela tentou apertar o passo. Belinha percebeu: chegara a hora, seria agora ou nunca, sabia que não podia falhar. Com voz doce e trejeitosa, pediu para o amado segurar as pontas mais um pouco, pois tinha um pedido a fazer. Magricela corou no ato. Pressentindo que teria pela frente, solicitou, um pouco gaguejante, que Belinha falasse o que queria logo, estava ficando ainda mais tarde em relação à hora na qual deveria voltar da escola e, além do mais, poderia não ficar bem caso alguém os visse ali, juntinhos. «Então você está com medo de que nos vejam juntos, é? Será que você tem medo que digam que nós estamos, assim, namorando?» José Paulo ficou ainda mais enrubescido, esbugalhou os olhos e, com as pernas bambas, tentou explicar que não era bem aquilo. A confusão do garoto só deu mais munição para Belinha. Percebendo-o nas mãos, falou sem cerimônia: adoraria se pensassem que ambos estivessem namorando, o que deixou o garoto mais envergonhado. “O que se passa contigo, meu magrelinho, qual a razão de tanto medo de mim, hein, ser magro por acaso deixa você encabulado? » «Não, não é isso não... é que eu, bem... é que eu nunca namorei antes!»; «Ora, e daí, para tudo tem uma primeira vez, e eu também ainda não namorei ninguém, a gente vai aprender juntinho! », falou Maria Belinha, sentindo o coração aos pulos. «Mas você nem me conhece direito, será que não é melhor a gente conversar um pouco antes, sei lá, pedir pros nossos pais...»; «Que nada, não precisa, é só você dizer que topa e pronto, ou melhor, é só você me dar um beijo bem aqui, na minha boca, que o namoro começa!», continuou a garota, esticando os lábios em direção ao Menino Magricela, já de olhos cerrados. Sentindo-se flechado pelo cupido, experimentando lá no fundo uma estranha, mas agradável sensação de calor, José Paulo também fechou os olhos e decidiu beijar Belinha. Ambos tremiam de emoção, mal respiravam. Os lábios estendidos quase já se iam tocando quando soprou outra ventania. Como uma pipa taiada, o Menino Magricela, de novo, foi arrastado para longe. Belinha tentou alcançá-lo, mas sem pernas para acompanhar a lufada, desconsolada, sentou-se no chão, onde, com cara de tacho, ficou imaginando se o beijo do Magricela era tão gostoso como o sorvete de baunilha.

Barulho d´água (Saia-justa)

Saia-justa
(O filho, quebrando o silêncio na sala, deixando de lado o carrinho:)
-- Pai, o que é noite furada?
(O pai lendo o jornal, sem tirar os olhos da notícia, vago:)
-- É uma noite sem estrelas, meu filho...
(Um hiato sem palavras, nem ruídos, silêncio de novo, por alguns segundos:)
-- É?
(O filho de pé, olhando profundamente para o cara, a meia distância:)
-- É!
(Novo intervalo sem palavras, nem mosca se ouvia, mas logo voltam as perguntas:)
-- E o que é noite profunda?
(O pai começando a se sentir na parede, até já meio estorvado, contudo, ainda desdenhoso:)
-- É uma noite que demora muito para amanhecer, ôô, guri, cada pergunta!
(O menino saindo do canto dele, aproximando-se da cadeira, entre surpreso e insatisfeito, com dóceis olhos de soldado de pelotão de fuzilamento:)
-- Igual à noite que a gente dorme e não acorda mais, é, pai?
(O tal já com um olho na criança, o outro ainda no artigo, entortando a boca:)
-- Pode ser, pode ser...
(O bambino já escalando uma das pernas, implorando ser içado colo acima, ares preocupados:)
-- Pai, e... se um dia eu dormir uma noite profunda, o sol vai me acordar quando for amanhã, não vai?
(O pai meio desconcertado, confuso, nariz já ponta a ponta com o do filhote:)
-- Vai, sim, meu anjo, o sol nasce todos os dias...
(O fazedor de saias-justas com os braços enrodilhados ao pescoço do sujeito, cabeça afundada no peito dele, cravando ainda mais fundo:)
-- Mesmo quando a gente vira estrela, pai?
(O pai, antes tarde do que nunca, fechando o jornal, coçando a cabeçorra, antes de balbuciar "Minha Nossa Senhora!, respondendo, ainda sem pensar:)
-- Também. Eu acho...
(O porquê-o-céu-é-tão-alto? sentadinho no colo, perninhas a balançar no ar, na transversal em relação às do pai, corpinho levemente inclinado à frente, as duas mãozinhas partindo do queixo espalmadas no rostinho, olhar fixo no chão, cujo piso forma uma flor negra:)
-- E se eu virar estrela numa noite furada?
(Sem resposta. O pai apenas beija a nuca do moleque, acaricia os cabelos dele, solta um suspiro profundo, e sentindo-se gostosamente derrotado, pensa, mas não exclama. "Danadinho, esta me pegou!")

Barulho d´água (Diga depressa)

Diga depressa
Diga depressa sem mais isso, sem menos aquilo:
qual é a diferença entre jacaré e crocodilo?
Com quantos paus de faz uma canoa,
como se chama o masculino da taboa?
O sobrenome da laranja todos sabem,
mas, onde fica mesmo... Tolizerdaben?
Rapidinho, sem deixar a bola cair,
faça de cabeça uma conta de dividir
na qual o resultado seja quarenta,
e o divisor, o dobro, oitenta.
Metro começa pelo centímetro
quem souber diga: o que é acetímetro?
(uma dica: vinho, mas nem precisava,
para quem sabe o adjetivo pátrio de Bradvilavskava).
Qual era geológica antecede o Quaternário?
De quanto em quanto tempo sai um hebdomadário?
Por fim, se é côncavo o lado fundo da colher
acabe o poema com rima que não seja mulher...

Barulho d´água (Troféu leitoa)

Troféu leitoa
 

 
Manhã ensolarada de domingo. Ao redor, nos barrancos, nas sacadas das casas por perto do campo do Morro do Pela-Porco, desde que os passarinhos começaram a anunciar a alvorada, não cabe mais ninguém. O Atlético do Morro enfrentará o Vai de Bico FFC (Futebol, Folia e Cachaça) em mais uma edição do tradicional clássico festivo do bairro disputado há mais de vinte anos, sempre às vésperas do Natal. A rivalidade entre ambos é histórica, mas quando os dois times se encontram neste clima proporcionam espetáculo cuja marca registrada é o flar-play; ambos já fizeram oito vezes a final do torneio municipal, registrando embates memoráveis que terminaram com quatro voltas olímpicas para cada lado. Nesta ocasião tão especial, puxadas por mascotes, as equipes gostam de juntas entrarem para o gramado, jogadores de mãos dadas. Os capitães distribuem flores para as torcedoras adversárias, depois em torno do grande círculo, jogadores, técnicos e trio de arbitragem puxam orações, pedindo a Deus que abençoe a partida e que, ao final, o melhor time saia com a vitória.
Ao vencedor, destina-se sarada leitoa, cobiçado troféu que repousa como majestosa taça sobre uma mesa paralela a uma das laterais. Ali, fica devidamente guardada por representantes de cada equipe, coberta por uma tela de pano para afastar moscas, recurso embora inútil contra os vira-latas que enxameiam e rodeiam o bicho, olhando-o a lamber os beiços.  A fêmea de suíno leva uma maça na boca e é decorada com outras frutas e iguarias, apresentada prontinha para assar. Enquanto rola a bola, “Nego Tião” vai acendendo o forno no quintal onde fica o barracão no qual a festa continuará regada a chope, caipirinha, pagode, paqueras, troca de presentes entre amigos-secretos e pratos que fazem a fartura da Vila das Flores até a noite cair, ou o último bêbado ficar convencido de que, agora, acabou de vez meu chapa, vaza que só no ano que vem!
O jogo é mesmo o acontecimento mais importante e aguardado do pedaço. É a única ocasião em que se veem todos os moradores juntos. Quem já se mudou ou trabalha longe sempre reaparece ou consegue folga. Dois meses antes já começam os trabalhos envolvendo toda a comunidade, e a campanha de divulgação. Palpites são lançados em meio à confecção de bandeiras e de bandeirinhas, as ruas próximas ao campo são limpas, todo mundo dá um trampo legal, sua a camisa para que tudo saia de acordo. Por costumar atrair centenas de pessoas, inclusive a imprensa, muito sapo de fora aparece para coachar, tenta tirar uma casquinha e aparecer sorridente na foto. Vacinados, os organizadores não vacilam. Ajudados somente pelos vizinhos, os quais se cotizam para comprar o que for necessário, sabem como dispensar patrocinadores e bajulações. Nem mesmo gambés são solicitados para dar uma geral e cuidar da segurança: o ambiente é respeitável, bem família, cordial, alegre. E ninguém bota faixa ou cartaz, distribui santinho ou faz discurso baba-ovo pedindo voto. Pretende-se um evento que transcorra sem conotações de nenhuma natureza, visa-se somente ao fortalecimento dos laços de fraternidade e de amizade, ninguém tem colher de chá ou espaço para dar recado. Mas, como quem é esperto não perde bonde...
Casamentos começaram ali, políticos conseguiram cadeiras, boleiros se deram bem tirando proveito do fato de olheiros de muitos times profissionais e jornalistas especializados pintarem para presenciar o duelo entre alvinegros e alviverdes -- o “Clássico da Paz”, como ficou conhecido depois da reportagem de doze páginas e belas imagens feita pela conceituada Escore há alguns anos. Entre os craques nascidos no Pela Porco, três já vestiram a amarelinha e mais uma legião reforça times europeus. Graças à matéria a fama chegou inclusive para duas biscas de um conjunto bem medíocre, responsável pelo agito nas redondezas e no dia da festa. Ambas assinaram contrato com uma publicação do meio erótico por um cachê astronômico. Inicialmente posaram abraçadas, apenas com as camisas do AM e do Vai de Bico. Completamente peladas terminaram o ensaio, e nem é preciso contar: todos os exemplares se evaporaram em menos de duas horas! A editora precisou preparar duas novas tiragens e na semana do jogo ainda soltou uma fornada extra. Uma das moças virou estrela de show de televisão e musa de um playboy carioca da gema que, por ter jurado entender de apito, recebeu a honra de arbitrar o clássico, chegando minutos antes do pontapé inicial a bordo de um reluzente conversível, trazendo a bordo a beldade e a mãe dele – socialite arroz de festa, que, dizem as más línguas, teria até sido amante de um ex-presidente da República. A outra dançarina também se arriscou na telinha, deu-se bem à beça e irá contracenar na próxima novela do horário nobre fazendo par romântico com um dos galãs mais cobiçados do mundo artístico – várias cornetas, no entanto, também espalham que o moço não gostaria nem um pouco da fruta. A aguardada presença de ambas na condição de madrinhas dos times, ainda mais após prometeram autografar exemplares da revista, fez aumentar o costumeiro público, e, de tabela, as expectativas em torno da partida.
Bola rolando. De um lado, o Atlético defendia invencibilidade de 35 jogos. Derrotado nos dois anos anteriores, agora reforçado por quatro vira-casacas (o zagueiro central Malega, o lateral-esquerdo Jonas, o volante Penélope, mais o centroavante Bodinho), o Vai de Bico prometia dar o troco. Rigorosamente equilibrado e disputado com extrema lealdade, o prélio prosseguia em branco quando, aos 38 da etapa final, ocorreu uma falta à entrada da área alviverde, pela meia-esquerda. A torcida alvinegra, em coro, pediu ao ponta-esquerda Meia-Sola, temido pelo chute sempre potente e certeiro, para executar a cobrança. Formada a barreira, Meia-Sola deu apenas um passo para trás. Ao ouvir o apito, soltou, então, o tradicional petardo. De tão violento, o tiro desferido fez a pelota chacoalhar o travessão do Vai de Bico, tomar a direção contrária e viajar, viajar, viajar, viajar até se aninhar na rede da meta do próprio Meia Sola! Cabeção, goleiro do AM, tentou evitar o incrível gol contra e deter a bola que mais parecia um meteorito dando, em vão, um cinematográfico pulo. O bandeirinha correu no ato para o meio do campo, mas o árbitro não validou o tento: para surpresa e irritação geral, alegou impedimento de Bodinho.
Foi então que, deixando a pose de lado, a madrinha do Vai de Bico classificou como ladrão e filho de uma que ronca e fuça Sua Senhoria. A outra miss, bem ao lado desta, não gostou.  Em defesa do namorado, esquentou uma das orelhas da ofensora. A mãe do rapaz também estava na tribuna de honra, igualmente tomou as dores do filho e deu um cola no outro ouvido da esquentadinha, depois de chamá-la de baranga. Aceso o pavio, a bomba explodiu. O pau comeu dentro e fora de campo, ninguém ficou sem se atracar com alguém. Em meio ao forfé, a mesa na qual a leitoa repousava levou uma bicuda, tudo subiu, depois foi ao chão. O sururu já durava alguns minutos quando Nego Tião surgiu ofegante, deu um teco para o ar. Por alguns instantes os ânimos serenaram, mas o jogo não teve sequência: ao perceberem o sumiço da porca, todos mutuamente voltaram a se acusar. Sopapos, voadores e outros golpes recomeçaram, cadeiras voaram, outros tiros espocaram, até repórter levou bordoada. Ao perceber que não teria o que fazer, Nego Tião guardou o cano na cinta, chutou a maça para o mato e resolveu vazar, contrariado e chorando. Atrás dos vestiários avistou uma matilha de cães, além de um gato estropiado, entre os quais estava o fiel Demolidor. Atendendo ao assobio do dono, o cachorro passou a segui-lo, abanando o rabo e saltitante, apresentando nos olhos o brilho de quem acabara de fazer um banquete.
 

 

Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
http://www.poesiafeitaemcasa.blogspot.com e http://www.karumi.nafoto.net, outros trabalhos que assino. A cópia e reprodução dos elementos aqui contidos sem a devida autorização, por escrito, e sem estarem negociados direitos autorais e outras questões comerciais, sujeitarão o infrator a entendimentos com a lei.

Marcelino Lima



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