sábado, 17 de novembro de 2007

Barulho d´água (Sem discussão)

Sem discussão
planejava sacar primeiro,
despejar chuva e trovoadas,
mas você, jeitinho sorrateiro,
deu-me aquele beijo na nuca,
abriu-se o sol, ficamos inteiros...

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Barulho d´água (Paquera)

Poente de outono.
quase encoberto pelas buzinas,
o gorjeio do sábia.


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Paquera
Ia começar a ler uma nova página quando o percebi aproximando-se pelo jardim do parque. Vinha se achegando de mansinho, e, embora houvesse certa lentidão a cada passo que dava, notei naquele jeito, que num primeiro julgamento pensei ser desconfiado, apenas o modo de ele se locomover, não uma forma cautelosa de ficar mano a mano com um estranho como convém numa cidade grande e violenta. Parei a leitura, fitei-o. Olhos nos olhos menos de dois metros um do outro. Deteve-se à frente da metade de um coco verde, lixo deixado ali por um transeunte desleixado -- o mais incrível: com uma lixeira ao alcance da mão.
Houve entre nós sintonia imediata. É claro, ele estava mais interessado em matar a fome. Mas sentiu poder vir para a refeição sem medo, percebera ao escolher o lugar e o prato para se refestelar que não seria de maneira alguma incomodado pelo cara sentado no banco de madeira pintada de verde. Transmitia esta confiança e uma ponta espontânea de admiração cada vez que, após tirar um naco da fruta, pose meio imperial, levantando a cabeça, voltava a me mirar por alguns segundos, peito estufado, sem piscar, antes de voltar a se servir. Como não queria mesmo que ele se assustasse calculava também meus gestos, procurando manter-me imóvel, sem fazer o menor ruído, focado só nele. A “paquera” durou algo em torno de um minuto. Já satisfeito, agora dando três desengonçados pulinhos, alcançou a base do tronco de uma das árvores, dali voou para o galho mais baixo, depois para o intermediário, para o terceiro mais elevado na seqüência e, assim por diante, até desaparecer entre as folhas e alçar ao céu azul daquela já quase metade de sexta-feira de outono. O pássaro com quem tive o prazer de dividir um instante poético e permitiu que eu encontrasse um pouco da poesia que há escondida em cada cantinho desta conturbada metrópole era um (ou seria uma?) sabiá-laranjeira. Neste momento, despedindo-se do sol que aos poucos vai caindo atrás do morro, aposto que gorjeia por ai e inspira alguém a escrever um haicai...


Barulho d´água (Pegando leve)

Pegando leve
Travou-se a discussão e se deu o fato à calçada, à mesa de um boteco de interior sórdido, numa tórrida noite de começo de verão, luzes de Natal que enfeitavam casas e árvores já começando a piscar. Um deles, com ares de Rui Barbosa misturado com São Francisco de Assis, defendia curiosa tese: não se mata baratas a marteladas como tinha feito o amigo de copo, antes de dirigir-se ao bar. “Uma chinelada, vá lá, pode ser, não é tão cruel. Mas, colega, uma martelada não te parece demais?”. “Qual é a diferença? O certo seria ter piedade do bicho e apenas espantá-lo, pois, martelada ou chinelada, dá na mesma: matas o coitado e ponto! E olha que, a martelo, dás ainda à barata chance maior de fuga, já que nem sempre é pam! e, pimba! Precisas de ter boa pontaria, já que ela corre frenética, desesperada, prevendo seu fim, dificultando o golpe certeiro. A chinelada, tudo bem: a pancada é rápida, mais fácil. No entanto, nem sempre mata no primeiro golpe, o que pode exigir um segundo, de misericórdia, aumentando a dose de crueldade”, respondeu o outro, entre goles de cerveja. “Pode ser, pode ser. Mas, mesmo em se tratando de um inseto escroto, o qual, sobretudo neste calor infernal, infesta todo canto, surge do nada, considere comigo, o melhor é pegar leve. Talvez tenhas razão: nem matar, mas deixar viver, fazer a barata correr até entrar no esgoto, e, ali, junto à colônia e aos ratos, deixar que se acabe. Por outro lado, quem agüenta a ojeriza de só olhar para uma barata e não ceder ao impulso de querer esmagá-la com um bom pisão? Nem martelada, nem chinelada, um pisão, embora nesta maneira como estamos a considerar também não deixaria de ser maldoso”, retomou o primeiro. Replicando depois de limpar o bigodinho branco, o outro sugeriu: “Olha, pensando bem, deixemos esta história para lá! Vamos tomar a nossa sem espichar este papo que, te confesso, está me dando nojo, uma ponta de arrependimento. Desde que o mundo é mundo este ser rastejante existe e há quem diga que será capaz até mesmo de sobreviver à hecatombe nuclear. Sempre houve, sempre haverá baratas. Até a literatura já fez dela musa ou personagem de romances tal a atenção que despertam mesmo sendo repugnantes. Do Kafka à Clarice Lispector, ninguém fica indiferente. Então, o que fazer? É certo de que não dá para exterminá-las, nem todos os martelos e todos os chinelos dariam jeito.” Neste exato momento, quando o primeiro preparava-se para por mais lenha na fogueira, eis que uma barata enorme, suja e cascorenta vem cruzando célere o salão, ziguezagueando de antenas em pé no rumo deles e provocando banzé entre os fregueses. Mecanicamente, ambos levantaram os pés uns cinco centímetros do solo. Pensavam em pisotear a intrusa, contudo, de repente, olharam-se e sorriram de leve. Compreendendo um ao outro, tornaram-se a se ajeitar nas cadeiras, ergueram os copos, e brindando de tal forma que até estalaram-nos, em uníssono propuseram: “À vida! Saúde, meu chapa!”, enquanto a barata sumia pelo ralo existente debaixo da mesa.

Barulho d´água (Batom a passarinho)

Batom a passarinho
"Atrás de cada curva,
há uma vida a pulsar,
há um sentimento a arder".
Tive sorte de encontrar essa poesia em minha agenda para oferecê-la a você. Creio, porém, que tive ainda mais sorte de ter te reencontrado e, contigo, ter relembrado o tempo em que fazíamos teatro da vida. Confesso que o reencontro, embalado por cervej­as e planos futuros, atiçou meu coração de poeta, nesses tempos de solidão inseparável/insuperável.
A brincadeira era antiga e você a percebeu. Mas fiquei ainda mais apaixonado quando o seu dedo, molhado em seu batom, roçou os meus lábios, tocou-me língua e alma. Um gesto gratuito, ainda que fosse um ato de malícia à minha maliciosa intenção de provar o cosmético num duradouro beijo. Neste instante, desejei que aquela noite fosse eterna. E que, no brilho do seu olhar, minha intenção esti­vesse sendo traduzida por um sim.
Não pude deixar de perceber também as linhas suaves de seu corpo feminino. Em determinados instantes, quando nossas palavras ficaram mais próximas da fonte, imaginei como seria a sua reação ao meu toque. Talvez ela fosse menos desastrada e denunciadora do que a minha quando fiz questão de não controlar minha vibração assim que você examinou o meu brinco. É, eu não poderia disfarçar. Era o meu pedido para que esticássemos a noite.
O que eu jamais poderia imaginar, porém, era que a noite terminasse daquela forma. Zonzo de bebida, mal conseguia ajustar meu relógio no alarme de um em um minuto, para que você se deliciasse com a música. O clima agora era perfeito! Dois seres querendo vencer a solidão (ou seria falta de companhia?), duas almas enlevecidas de cerveja, dois corpos próximos do abraço, um homem e uma mulher que haviam confessado carências numa mesa de bar... Estava tudo de acordo, duas meias-noites, inclusive. Bastava liberar os desejos contidos/reprimidos... e entregar-se duas horas depois à espontaneidade de estar comendo frango a passarinho, às duas horas da madrugada, à três, numa praça qualquer desta cidade sem amor. O frango não estava nos (meus) planos, o amigo que nos deu a carona, muito menos. Mas eu queria repartir algo contigo e, por isso, me sentia bem. Fui para minha casa/cama lembrando-me daquelas cenas, busc­ando nos lábios engordurados o último sabor de seu batom. E, desde então, estou na expectativa de voltar a comer frango a passarinho com você. Só que, natu­ralmente, e, naturalmente, a sós, com direito a champanha, tim-tim...

Barulho d´água (Córregos vermelhos)

Córregos vermelhos
Noite chuvosa--
lanternas de freios
produzem nas ruas
córregos paralelos
de luzes vermelhas.

Barulho d´água (Passa Quatro)

Passa Quatro

O casario colonial tem o peso de séculos, confere à cidade um ar de sofreguidão. Talvez por isso moradores, carros e bichos caminhem com urgência nenhuma, numa lentidão sem fim que parece determinar o ritmo do vento, reger os ponteiros do relógio da Matriz...
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Onze horas/leiteira ainda na janela/é sábado, uai!*
*Haicai para lembrar um antigo costume dos que moram em Passa Quatro (MG), onde o leite é entregue todos os dias, junto com os pães, em leiteiras ou outras formas de vasilhas que os moradores deixam no parapeito das janelas...
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Parabólica
Antena parabólica amarela: ponto de referência para encontrar o sítio, deixa o galã bem mais bonito, e, ainda, de quebra, quebra o galho nos dias em que o sol vacila...
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Ciúmes
Se você não estivesse aqui, contemplando-o comigo, o mar também estaria encantador. Só não arrebentando de tanto ciúmes...

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Barulho d´água (A bolha)

A bolha
Entre os mortos contou-se um tubarão, que, apesar de ainda molecão, já era bastante folgado, metido a valente, adorava criar pânico no fundo do mar. A mortandade, uma das maiores já verificadas naquelas bandas do oceano, foi grande, mas, nem tanto pelo cheiro -- o qual, aliás, nem quase foi sentido. O deslocamento da enorme bolha de ar exalada da baleia é que fez a maior parte dos peixes e de outros seres marinhos irem para as cucuias. Sobreviventes, ao descreveram para as câmeras e microfones da TV Netuno o horror que se seguiu ao fenômeno, deram graças a Deus pelo fato de o cetáceo ter soltado apenas aquele . “Um segundo ou terceiro tornaria a desgraça ainda maior, devastaria tudo num raio de centenas de milhas náuticas”, afirmou a única anêmona remanescente de uma família inteira. A praia e os banhistas mais próximos estavam bem distantes do epicentro da mini-hecatombe, ainda assim, alguns estragos resultaram da marola que se formou tão logo a bolha estourou na superfície. Barracas de petiscos e de bebidas ficaram alagadas, castelos de areia viraram paçoca, discos de frescobol, bolas, esteiras, toalhas, rádios, guardas-sóis, frascos de bronzeador, sacolas e bolsas, cestas de comida, entre outros objetos, sumiram levados pelo refluxo. O comercial de uma sandália que estava sendo gravado na hora precisou ser transferido para outro dia e local. Salvas-vidas fizeram alguns atendimentos, entre eles o resgate heróico (veja hoje à noite no Jornal Nacional) do totó e da velhota que levara o bicho para tomar banho salgado, mas o caso mais grave -- o do bonitão que bateu e rachou a jaca no guidão do jetiesqui -- sequer mobilizou o pessoal da remoção: os sete pontos foram costurados à bordo da unidade móvel de socorro, estacionada nas imediações. Em função do pequeno susto – teve gente que pensou numa nova tsunami --, não se comentou o outro lado do incidente, mas houve, inclusive, quem achou tudo o maior barato -- literalmente, tirou uma onda do episódio. Ou melhor, pegou a onda, e, com manobras radicais, graças à Mobi Dick, surfou como nunca havia experimentado antes...

Barulho d´água (Paletó e gravata)

Paletó e gravata
E esta agora: dois reais a mais para poder tirar foto com terno e gravata! Havia juntado, com muito custo, seis paus para poder tirar retrato e enviar uma cópia para a família distante, junto com uma cartinha, letra bem caprichada, dizendo tudo vai bem comigo aqui na cidade grande e até emprego bom em firma importante já arrumei, com salário que dá até para guardar uns troquinhos e, de vez em quando, despachar algum para ajudar nas despesas de casa, e, ufa, quem sabe? voltar, mas precisava da fotografia para ajudar a fazer a história colar. Bonito na foto, com roupa chique no 3X4, dificilmente alguém duvidaria dele. Economizou em pinga, em cigarro, deixou de dar umas bocadas. Imaginava a patroa beijando e apertando a foto contra o peito, suspirando agradecimentos ao Padim que ouvira as preces dela, mas, na real, via-se diante do coreano que dizia nón, nón! à promessa de que pagaria a diferença amanhã. Coçou a cachola matutando onde e como poderia descolar o resto; nesta hora sentiu fundo a falta do amigo da praça, pego por engano pela polícia, que Deus o tenha, Miruca, o colega se apertaria para não deixá-lo na mão.
Desanimado deu meia volta, saiu do estúdio. Já na calçada oposta virou-se de novo, mirou o paletó, peça rota, ensebada e carcomida pelos anos e pelo uso comum, mas para ele a exata diferença entre a felicidade da família e a tortura da dúvida. Apertando a meia dúzia de beija flores na mão, seguiu adiante. Resolveu esticar até a igreja onde pedira ajuda pela primeira vez ao desembarcar na Capital, com fome de quatro dias, uma pequena trouxa com pertences pessoais, doido por banho. Quem sabe o padre não ajudaria de novo? A capela era distante, chegaria mais rápido se fosse de trem, acontece que o bilhete levaria parte da grana reservada para a fotografia e ai os pulos teriam de ser maiores. O ronco do pandu fez sentir a fraqueza das pernas, ainda assim acionou a coragem para escalar o muro e alcançar a estação. Devido à tremedeira quase não superou o obstáculo, ousadia que custou alguns arranhões nos braços e nas canelas. Olhou para todos os lados para ter certeza de não haver nenhum segurança rondando, não poderia ser pego, ou apanharia feito gato morto até miar. Quando e aproximava para galgar-se à plataforma descobriu volumoso pacote debaixo da laje. Agachou-se, e já presumindo o que conteria, dirigiu-se até o saco. Abriu-o. Lá dentro, acondicionado em sacolas menores, descobriu balas, doces, chocolates, bolachas e outras guloseimas apreendidas pelos agentes de algum garoto que tentava vende-las nos vagões. Era o bilhete premiado caído do céu, o baú onde repousava um tesouro. Já dentro da composição desafiou outra vez o medo e encarou o trampo. De estômago forrado por um pacote de bolachas que almoçara, sorria à besta enquanto apregoava as mercadorias. Somado ao contentamento da esposa ao vê-lo na estica, via, também, a cara da menorzinha, a raspa de tacho Rosinha, recebendo das mãos do carteiro uma colorida caixa de bombons
.

Barulho d´água (Sabiá-laranjeira)

Sabiá-laranjeira
Numa certa manhã, meu pai armou numa das hortas do sítio do Barro Branco uma arapuca que ele mesmo fizera. Aquela era sua última oportunidade: dali a poucas horas voltaríamos para casa, em Osasco, mas, antes, ele pretendia capturar um dos muitos sabiás-laranjeira que ciscavam pelo chão, bicando frutas entre os gorjeares. Os sabiás, de vistosos peitos alaranjados, surgiam em bandos, eram bonitos de se ver, enchiam os olhos. Papai, entretanto, teve de se contentar com uma ave não menos deslumbrante: um pássaro-preto, de penas tão enegrecidas que quase se azulmarinhavam, canto melodioso. Um tanto contrafeito trouxe-o para São Paulo, Deus sabe como, dentro de um apertado alçapão, escondido entre pacotes de roupas, de comida e de outras tralhas, tudo acondicionado no bagageiro revestido de nylon vermelho do ônibus. Fabiano, o motorista da Cometa, antes de partir, desconfiou de que havia algo estranho entre aqueles “trens” ao conferir nossas passagens. Contudo, como tinha horário a cumprir e muita estrada para comer, tratou de logo assumir o volante do “Dinossauro” e partir. Seriam mais de quinhentos quilômetros entre as rodoviárias de Juiz de Fora, ainda instalada na avenida Getúlio Vargas, e a de São Paulo, defronte a estação Júlio Prestes. Em curvas, não só nas de Matias Barbosa, lugarejo das Geraes onde existe uma pedra enorme, a pacotaiada dançava para lá e para cá, ameaçando desabar no nosso colo. Ou, pior, na cabeça de alguém. Tentava imaginar o pampeiro que causaria um assustado pássaro-preto voejando entre os bancos até encontrar a liberdade por uma janela aberta. Tudo, entretanto, correu bem, embora nosso clandestino companheiro de viagem soltasse alguns pios de vez em quando, ora agudos, ora suaves, denunciando-nos e provocando duros olhares de reprovação que os passageiros atiravam em nossa direção. Oito horas e três paradas depois, fazendo jus ao apelido, a Terra da Garoa, enfim. Faltavam, agora, apenas o subúrbio (sempre lotado) até a estação do Quilômetro Dezoito e a “Gomes da Costa” (kombis que circulavam não menos apinhadas e, que o povo, de cáustica imaginação, apropriadamente comparava a uma lata de sardinhas) que nos deixaria defronte à Padaria Senhor do Calvário, na vila Yolanda. Chegando em casa, são e salvo, um bocado tonto apenas, o melro, como papai chamava o tisnado, ganhou uma bela gaiola, toda construída com varetas de bambu pelo hábil carpinteiro-artesão que meu velho era. A casa número 22 da rua Padre Paulo Xerdel passou a ser despertada por inesquecíveis sinfonias matinais. Seu Geraldo olhava e escutava admirado, coçava a cabeça do pássaro-preto demonstrando afeição sempre que o alimentava, na palma da mão. Porém, vincada no semblante, mantinha uma ponta de contrariedade, pois queria mesmo era o outro passarinho. Nestas horas, eu me encolhia, ressabiado, arrependido, mortificado em meu segredo. Papai teria trazido para casa o desejado sabiá-laranjeira não fosse a infantil curiosidade de um moleque que somente queria saber qual tipo de bicho estava na armadilha quando ela desarmou pela primeira vez.

Barulho d´água (A primeira vez)

A primeira vez
Assisti pela primeira vez televisão em cores sentado sobre malas, aguardando as Casas Pernambucanas anunciarem a partida do ônibus com destino a Juiz de Fora. Meus olhos depararam-se com a maravilha num daqueles monitores colocados em pontos estratégicos da antiga rodoviária Júlio Prestes, provocando-me um conjunto de arrepios que só perderam em intensidade para os que experimentaria algum tempo depois ao descobrir o quanto é bom ter meninas brincando com a gente de esconde-esconde. Rolava um vídeo-tape de Santos e Portuguesa. Pelé ainda jogava pelo Peixe, vestindo como os companheiros um uniforme que refulgia de tão branco, aproximando o manto santista do celeste tom da camisa do Zecão, o arqueiro da Lusa. De tão nítidas, as imagens davam-me a impressão de que o jogo estaria acontecendo ao vivo, era como se eu estivesse em carne e osso presente nas arquibancadas do Pacaembu vendo a bola passear por um impecável tapete verde. Duro foi embarcar. Quando a hora chegou, faltou pouco para meu pai me arrastar pela mão e me levar a bordo - esforço inútil, pois nem sentado desviei o magnetizado olhar da tela, a qual segui observando pela janela de uma poltrona que sequer era a minha. Ainda deu tempo de ver um gol do Enéas, com o ônibus já em movimento. Viajávamos sempre à noite, ocasiões nas quais eu procurava me manter acordado até ver a Basílica. A enorme igreja, um dos pontos da paisagem que sempre me fascinou, naqueles tempos já estava com o contorno iluminado, mas naquele dia, passou batida. E não dormi um segundo sequer. Cheguei a recolher os toldos, é verdade. Mas foi só para ficar repassando na mente durante 520 quilômetros tudo o que eu vira antes de partir...

Barulho d´água (Condor)

Condor

A camisa do mais obeso já tinha, debaixo de cada axila, uma rodela empapada, e talvez por ser ele quem tocasse o bumbo, o esforço das batidas ajudasse a aumentar a sua transpiração, a qual também já escorria em filetes pelo rosto ameríndio, formando colares em torno do pescoço dele. Não que os demais músicos não sentissem o calor, ainda mais vestidos com aqueles coletes de lã tricolores alusivos à bandeira pátria, sol a pino sem direito a nenhuma nuvem no céu capaz de encobri-lo ao menos pelo breve instante de um sopro, ou brisa a farfalhar as palmeiras. Aliás, impossível a qualquer um resistir a tão elevada temperatura, deleite apenas para marreteiros de água de coco -- os quais, não se sabe de onde, em dias assim, reproduzem-se aos montes, ocupando todo degrau e metro quadrado de calçada que restar livre, acotovelando-se com outros vendedores de tudo o que se pode imaginar, de pilhas para aparelhos eletroeletrônicos a panetones de grife oferecidos a preços bem abaixo do mais barato dos mercados. Até a música soava arfante, embora ainda assim alegre e vibrante, com uma nota de panfletária; algo naqueles acordes parecia resgatar a força de um povo acostumado a lutar pela sobrevivência desde a época da colonização espanhola -- antes, em defesa dos metais de Potosí e outras riquezas usurpadas, hoje por algum trocado depositado no chapéu de alpaca que espera pela contribuição, sobre a calçada, ou como pagamento por um cedê, com muito, mas com muito esforço, audível.
São quase 14 horas pelo horário de verão, nada de um ventinho para refrescar, todo mundo parece estar concentrado no Centro, volta do ou vai para o almoço esbaforido, a banda avisou que seria a última e preparou-se para tocar a saideira -- até por que, mais a tardezinha, o mundo poderia desabar, trazendo inundação na certa. O gordinho esfregou a palma da mão direita da testa para o queixo, limpando o suor, o rapaz do meio dedilhou o charango, a flauta do ponta-esquerda entrou no concerto e “Noite Feliz” com suave sotaque andino, aos poucos, passou a ecoar pelo Anhangabaú, subindo até o viaduto e, de lá, esparramando-se tanto para os lados do Municipal e da República, quanto para as bandas do Pátio do Colégio e da Praça 14 Bis. O surrado chapéu, aos poucos, já transbordava. Pousado numa luminária, um condor aproveitou para matar as saudades das Cordilheiras.

Barulho d´água (Goretti)

Goretti
Goretti, ainda entrando na puberdade, já é um Deus nos acuda. Tipo que se atropelasse um marmanjo ele nem reclamaria se não anotassem as placas. As amigas mais saidinhas e segundas torpedeiam: mas o que você está esperando, ainda, pra ir pras baladas? Ela, mirando o chão, evasiva, tipo sei não, acho que inda não é hora. Tá ligada: por onde anda olhos cafajestes palmeando-a, eretos, junta-se uma legião de babões, uns grudes. No chuveiro, durante a muda de roupas, percebe não ser para menos tal pegação. Nota curvas, saliências, reentrâncias, volumes, formas capazes de ser fogo no estopim, provocar perdições – e, ainda, as pintas, as pintas es-tra-te-gi-ca-men-te postas pela Natureza, como a do canto esquerdo do lábio superior, ah, Senhor da Glória, até o autor confessa! Também já sente lá dentro bolirem umas químicas, a mesma força que a faz (acredita ser inconscientemente) puxar para cima o jeans até vincar a cona, deixar aberto o botão sobre o umbigo (vai driblar o medo da dor loguin e meter ali um piercing), ajustar as alças do sutiã, jogar os cabelos para trás quando caminha pelas ruas, durante o intervalo da escola. Intui um vulcão: algo está para irromper. Mas que venha no tempo certo. Quando acontecer, ai, bem: quem pode amarrar trovão? Cavalo desembestado pára sozinho. E só onde quer.

Barulho d´água (Incidente no shopping)

Incidente no shopping
Enfiou o nariz na vidraça. Quebrou, literalmente, a cara. E a vitrine, também. Ai, ainda derramou sobre o terno italiano que estreara naquele dia todo o conteúdo do copo descartável com café que levava para a amiga no escritório, super quente. Embasbacado com a morena que vira passar por pelo corredor, em sentido oposto. Voltou a cabeça para segui-la, manteve o rumo em frente sem prestar atenção para aonde ia e ai: crás! Constrangido, pequenos cortes no rosto, buscou um lenço para se recompor. Cochichos ao pé do ouvido, risos. Todo mundo mirando ele, a beldade, inclusive -- o estrondo da batida atraiu quase toda a segurança do shopping, gente gritou “Deus nos acuda, desabou, de novo!” Lembrou-se do ditado popular: mulheres há de fechar o comércio. Naquele caso, pelo menos para a loja a qual causou o involuntário prejuízo, verdade verdadeira, oh se era
....

Barulho d´água (Anil, Belinha e Sapeca)

Anil, Belinha e Sapeca
Anil nem bem havia saído da forma começou a miar com insistência, reclamando por um bom naco de peixe. Por volta do meio dia, após dormir toda a manhã dentro do cesto de roupas para serem passadas, escalou o muro na tentativa de almoçar um pardal. Já com a bolacha de nata pelo meio do espaço, após novas sonecas, subiu no telhado. Chamou-a a noite inteira, numa sinfonia estridente. Como a namorada não deu os bigodes, Anil amanheceu troncho, achando que estava pela última vida. Com dó do bichano, o menino pegou novamente a forma, o rolinho de madeira, bastões de massinhas de modelagem, fez surgir uma linda gatinha, assemelhada com uma bola de algodão. Meses depois, vieram os filhotes. Papai era azul, Belinha mergulhada em tacho de leite, os bichinhos nasceram com tonalidades entre o cinza daquela lã que a vovó escolhe para tecer uma blusa para o netinho e azulados da cor do céu em manhãs de maio. Sapeca, o mais esperto da turma, puxou o padrão onçado, com manchas bem celestes, da mesma cor os olhos afogueteados. De vez em quando leva um carreirão da Princesa, derruba os vasos de plantinhas da garagem, quebra travessas ou xícaras, ai, deixa a dona da casa feito leoa! Mas, como é a alegria de todos, nunca faltam para ele afagos, elogios e um travesseiro bem macio para o merecido descanso após tantas travessuras...

Barulho d´água (Noite estrelada/Cotia-Km 30/Garrincha e a moça)

Noite estrelada
Ao abaixar-se para apanhar a mercadoria na prateleira de uma loja de departamentos, deixou escapar pelo cós do jeans uma das luas estampadas na calcinha. O resto da noite não foi visto, mas, principalmente, as estrelas brilharam nos olhos do único espectador que flagrou o lance...
Cotia- km 30
O Cotia-KM 30 subia a Inocêncio Seráfico tão lenta, mas tão lentamente, que o vira-lata se deu ao luxo de parar, ficar lá, coçando-se inteiro, sem pressa, no meio do asfalto. Aguardando no verde, o semáforo também não perdeu a chance: deu um longo, arrastado bocejo...
Garrincha e a moça
Colho, em meio à multidão, um par de pernas de estranha geometria. Na região das batatas, arqueadas para dentro, na das coxas, para fora. Apesar da aparente desconexão, uma poesia. Rimas perfeitas sobre fuselagem talhada a cinzel. Neruda talvez dissesse se tratar de uma Guernica -- pintura com certa dose de sofrimento de se ver, mas de beleza tão singular que até o mais exigente dos anatomistas diria ah, como Deus escreve certo por pernas tortas! Se por acaso a moça bate bola, arrisco, é melhor que Garrincha, ou ele voltou de saias. Aliás, diante dela, talvez ele não passaria de Mané, ou, se tanto, um joão
!

Barulho d´água (Azar)

Azar
Telmires Plácido não dava pelota pra milonga de que passar sob escadas traz zica, dá azar. Até o dia em que, como sempre zen, ao caminhar, cruzou por debaixo duma e, quase já um passo à frente, viu despencar lá do mais elevado degrau o abençoado que trocava uma das lâmpadas de néon da fachada do Bingo 56...
Poesia cotidiana em forma de bilhete
Mamãe: fui levar a Princesa para tosar o pelo dela. Os dois gatinhos preto e branco que estavam doentes, infelizmente, também morreram, mas a Paninho já está de alta. Ela voltou a comer e bebeu bastante água. Retorno lá pelas 11h30, depois de uma caminhada pelo Tamboré. Fala para o Jorginho esperar por mim caso ele queira jogar Outlaws.
Vou levar o celular. Ligue se precisar! Um beijo, amo todos vocês!
Poema de amor no gesso
Repetidas vezes trocaram olhares dentro da clínica. Minutos depois, quando saía do estacionamento, a diva estava parada na calçada à espera de ônibus, táxi, um boa alma que a levasse. Pelo jeito angustiado, temia o toró que se armava, a botinha de gesso no pé esquerdo, até a altura da canela, ainda fresca. Pensou em oferecer a carona, titubeou, o semáforo abriu, engatou primeira, foi-se embora, olhando-a ainda por uns instantes pelo retrovisor. Não demorou muito, os primeiros pingos caíram, os céus desabaram: tarde demais para uma manobra de retorno. A chuva já amainara quando em casa suspirou fundo antes de engolir um gole de café frio: lamentava a chance que teve e chutou na arquibancada para, quem sabe, gravar naquela tala, ao lado do próprio telefone, o nome dele assinando um poema de amor...
Pezinho (Ou historinha contada a um repórter de jornal)
Quando P. deitou-se com S., naquele escuro canto da praça, queria apenas olhar nos olhos dela e neles se inspirar para quem sabe? rabiscar uns versinhos bem dez. Meio sem jeito,
mas deslumbrado, mesclando no mesmo rosto traços do menino que ainda é com a vivacidade de quem vive na rua, e o faz parecer bem mais velho, Pezinho, ele explica, não estava
previsto nas rimas...
Opala branco
Desgovernado, sem breque, o caminhão desembestou ladeira abaixo. Pela velocidade com a qual desceu, milagre ninguém ter sofrido sequer um arranhão, nem mesmo o motorista, mão na buzina até a porrada que, enfim, fez travar as rodas do bruto. Mas foi o fim do Opala 70 branco, relíquia de “seo” Olavo, tudo original e impecável, limpinho, lataria e partes cromadas sempre irrepreensivelmente polidas, vidros sem nenhuma impressão digital, adesivo de Nossa Senhora grudado no pára-brisa dianteiro, “Brasil, ame ou deixe-o” no traseiro...

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Barulho d´água (Mercado Municipal)

Mercado Municipal
O silêncio subitamente tomou conta do Mercado Municipal. Ninguém combinara, não houve acordos neste sentido, muito menos simulação ou treino, mas com uma perfeição de orquestra filarmônica bem afinadinha, como se tudo estivesse organizado, de repente nada mais era dito, nem um som ouvido. Nem uma mosca parecia zunir. E olha que era dia de peixe fresco, quando a muvuca aumenta e, em consequência, o burburinho sobe na escala dos decibéis a ponto de ouvidos e porcelanas quase se trincarem. Talvez apurando bem a audição até pudesse ter sido possível captar o estalar dos grampos de aço se desprendendo voluntariamente das emendas das caixas de frutas, o croc-croc de uma larva mastigando uma folha de alface, o sussurrar dos sacos de feijão, o assovio malicioso de um cravo para uma rosa e outros barulhinhos e ruídos sequer suspeitados, mas que ocorrem ali, em universos menores e particulares, todo santo dia.
O hiato, entretanto, durou apenas alguns segundos. Antes mesmo que alguém que estivesse a contar chegasse a cinco, o tonitruar das centenas de vozes misturado ao trança-trança pelos corredores reeclodiu, inundando o tempo e o espaço entre os boxes como sempre, enchendo de novo o ambiente de zoada. A luz do sol, naquele instante, vazava os vitrais e projetava belos afrescos num dos lados do Mercado. No ar, ao invés da repentina quietude, ficaram aromas como o de um pastel de banana com canela sendo frito.

Barulho d´água (Guache)

Guache
Quando ainda estava no céu, prestes a descobrir o que seria na Terra, um anjo travesso anunciou: "Vais ser guache na vida, mano!" Fiquei arara! Esperava ser árvore, flor, gente, tudo, menos...tinta! Diabos, pensei com meus botões. Poderia tentar reclamar, mas, como a tais decisões não cabe recurso, desencanei. Segui para a porta que o anjo apontou, e, quando vi, descia por um túnel de nuvens. Tempos depois, após quase secar numa empoeirada prateleira de papelaria, parei nas mãos de um menino. Quem me tirou do sufoco e me entregou ao guri foi um rapaz careca, brinco na orelha esquerda, lenço estampado com crânios preso à cabeça - para um pirata faltavam só o tapa-olho e o louro ao ombro. O pequeno deveria estar esperando por mim, pois escancarou um sorriso e estalou na face do pai um beijo interminável. Então, com jeito, destampou-me. Arrepie-me ao sentir a pontinha do fura-bolos dele tocar levemente meu conteúdo, para, em seguida, numa folha em branco, traçar o contorno do Sol. Logo, outros tubinhos iguais a mim de diferentes tons apareceram e entraram na festa. Neste instante, lembrei-me do quanto eu ficara "p" na fila do Paraíso. Agora, feliz, dava graças a Deus! Ao lado de outros trens de pintura guardados numa caixinha, aguardo ansioso por mais um momento de inspiração do piá. O sulfite que ajudei a tingir virou uma bela paisagem, sobre a qual há uma rubrica em vermelho: "Parabéns!". O homem que me comprou no armarinho e ajudou-me a descobrir o quanto é bom ser guache emoldurou a obra e, sempre que a olha pendurada na parede, ambos sorrimos.

Barulho d´água (Tatuagens)

Tatuagens
O maior orgulho de dona Clotilde, tudo em cima, os seios, ainda durinhos, róseos, aos 69 anos. Há tempos planejava tatuar num deles, talvez no esquerdo, que considerava o mais atraente, uma águia em vôo, para desespero de “seo” Argentim. Vem tirando o sono do velho com a idéia surgida na academia -- uma colega da hidro, durante a nudez do banho, dera a sugestão. O professor, rapagão bronzeado, cujos olhos já sentira pousar diversas vezes nos Urais, o que diria? Para ensaiar, tatuou rosa quatro dedos acima do joelho direito. O companheiro, 45 anos de casamento, estrilou, ameaçou separação, até porrada. Perdera a compostura depois de idosa? Desesperado de tanto ouvir gracejos e piadinhas -- os amigos dos jogos, maldosos, jocosos -- seu Argentim, um dia, acabou dando na cara do Miguel, crápula e desdentado que não se percebe já broxa. O moço-professor ao contrário, fiu-fiu, elogios galanteadores, enquanto as outras senhoras, igualmente sexagenárias, mas oquéqui isto tem demais? Empolgada, sentia-se sexy, rejuvenescida, reacendera algo que julgava extinto, o broto que tantos suspiros e loucuras provocara nos tempos idos. Aumentou o número de aulas, encurtou roupas, uns vestidinhos, decotes, rendas. As netas, as filhas, nem sim, nem não, e os que censuravam não chegavam a aborrecer. A idéia da águia subia cada vez mais. Sim, sentia necessidade de vôos mais altos, porque motivo deveria manter prisioneira, comportada no desgastado papel de esposa toda aquela formosura? O professor, agora, não mais começava aula sem ela, pedia sempre para que ficasse na primeira fila, ah, se você pudesse ouvir os risinhos. E os olhares dos tios que também caiam n´água, e os comentários no vestiário masculino? Concluiu: estava na hora de voltar à oficina de tatuagens. Golpe duro de agüentar, o companheiro bateu asas antes. Ao lado do caixão, já pela hora do enterro, viu aproximando-se para os meus pêsames o desenhista da flor. Durante o solene abraço que recebia, cochichou sem cerimônias na orelha dele: depois do luto, basta me dizer a hora, vou lá. A águia quero pouco acima do bico esquerdo, e, agora, também uma labareda. Numa das coxas, perto da virilha, viu?

Barulho d´água (Águia)




Águia
Aos 65 anos, sentindo-se para lá de bem mais disposta após o inicio das aulas de hidroginástica, dentro da piscina sempre à primeira fila, bem perto do professor, nunca em toda a vida vira moço tão lindo. Em troca da promessa de bancar mimos que a neta mais nova pretendia, arrastou-a sábado bem cedinho. Aos shoppings, merecia um maiô novo, menos comportadinho, não estava morta, ainda tinha o que mostrar -- tem certeza, dona Maria, é com esta abertura toda? Está caro, sim, mas vale a pena, vou levar, aqueles óculos escuros também quero, ai ganho desconto? Entravam por um, saiam por outro ouvido indagações e críticas: para que tatuar uma maçã mordida, e bem ai, tia? Tia é a vovozinha, quanto mais dona, apenas Lú, para ficarmos íntimos. Seu Sebastião ensimesmando cada dia mais, depois de velha estas manias, fala com ela, Aninha, vê se tem cabimento exibir-se desta forma, já mangam de mim no carteado da praça, uns risinhos abafados, umas indiretas, ai que eu quase morro de vergonha, isto sem contar que vai consumindo todas as nossas economias! A filha bem que tentou -- quer ver como foi em vão: que fique Tião lá com os outros aposentados, bando de inúteis, desperdiçando o tempo entre um ás e um valete, eu quero vôos mais altos, menina. Mais banho de loja: repara, não ficou linda em mim esta saia? E esta blusa, não valoriza meus seios, meu bem? A vendedora apenas coça a cabeça, não tem como discordar. Azar do companheiro de 47 anos que já não acerta a mão, o parceiro recomenda ir devagar, fingir que não ouve as provocações, ela estica na piscina o mais que pode, só mais umas braçadas, cherry, enquanto isso, esvazia um pouco o vestiário, vaga o chuveiro que tem água mais quentinha, ando com tanto frio, você não acha que para fevereiro anda baixa demais a temperatura? Um garoto, ao mergulhar, esbarra nas nádegas dela -- ah, não, deixa disso, bobinho, não é preciso pedir desculpas, que nada, relaxa! Durante o chuveiro, massagem nos cabelos com xampu revitalizante, depois, creme antissinais no rosto e no corpo todo, perfume importado, os cílios bem pintados, lábios carneados, marcou com o tatuador vir apanha-la após a aula, mas quem chega ao estacionamento é Shirley, outra das filhas. Em casa o pai a ponto de se matar, que história é esta de nova tatuagem? Rápido, vamolá que eu temo pelo pior. Atende o apelo, mas não responde às perguntas. Durante o bate-boca ironiza, faz piadas, a angústia do velho parece animá-la, quero vôos mais altos, e você já nem se limpa direito das mijadas, me erra. Silêncio, apenas uma lágrima escorre, ele bate asas primeiro. Fulminado, o baque do corpo no piso até trinca o revestimento, atrai o mundo para o quarto. O velório cheio, irmãs, tias, cunhadas de preto. Lú discreta, apesar de trajar vestido de cor, à cabeceira do defunto, um dos amigos de baralho dele, ao pé do caixão, olhares furtivos à vista de todos, até a neta, antes dando a maior força, meneia a cabeça. Não a constrange os sinais de reprovação. Mais para o final da tarde, já perto dos três punhadinhos, as beatas tirando os terços das bolsas, sacristão de Bíblia nas mãos, um rapaz de rabo de cavalo se achega. De pé, a viúva recebe as condolências e, enquanto corre olhos pelo saguão até finalmente posá-los em duas outras brasas, cochicha ao ouvido do rapagão: assim que eu tirar o luto, uma águia bem bonita, nas minhas costas.  Nas coxas a gente vê na hora, tá bom
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Barulho d´água (Chácara)

Chacára
A velha senhora que acenava triste debruçada no batente da janela chorando a despedida e mostrando o peito de seios magros há muito ficou para trás da curva do moinho. Seguindo em frente foram se abrindo as porteiras para a grande estrada. Na bagagem trazia-se cana, queijos e doces, broas e sabão de cinzas, panos rotos, pedaços de camisas , sacos de farinha puídos, toscas toalhas para secar o rosto após o banho de gato à margem do regato ao pé do cemitério de poucas e brancas cruzes. A casa de pau a pique resistiu heróica, valente, como fora outrora a aposentada jardineira azul -- agora uma moldura no imaginário -- que tantos morros cortou, sobe e desce, sobe e desce quilômetros a fio engasgando com a vermelha poeira do sertão, simbolo de uma era já superada pelo asfalto e por parabólicas que trazem imagens longínquas, matando a hora do terço, o tempo de colher laranjas. O bambuzal, outro remanescente, permanece intacto, estala fazendo duo com o canto da siriema. Com um pouco de sorte, ainda pode-se pegar um bicho-de-pé. Mas é preciso ser rápido: o esquecimento é veloz como Pentium e as lembranças fugazes como sábia que pousa em mourão..

Barulho d´água (Trânsito parado/Cargueiro I)

Trânsito parado.
Que inveja da libélula,
voando, e em quinta.
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Cargueiro I
Atrasado, o cargueiro das dez apitou feroz na curva. Sacolejando seus quarenta e tantos vagões, grunhiu nos trilhos estalando os dormentes, fazendo tremer a pequena estação de madeira e quem estava na plataforma à espera do subúrbio para a Capital. Puxado por uma reluzente locomotiva amarela, o enorme comboio estava mesmo indócil. Mas passou tão lépido e breve que deixou a impressão de que seria mais leve,
de que não seria um brutamontes de ferro, apenas uma libélula.

Barulho d´água (Cidadezinha)

Cidadezinha
A igreja do santo padroeiro no centro da pequena praça, um prédio antigo, sede do Paço Municipal, mais dois ou três edifícios públicos misturados ao pequeno comércio, a escolinha lá no alto do morro, indo para o cemitério, poucas casinhas de portas altas, coloridas e de janelões, com uma simpática vovó numa delas, a mesma rua que entra, é a que sai. Distrito policial não tem. Clube, também não. Bancos, para quê? Um cavalo amarrado numa árvore ruminando o tempo, cães magrelos perambulando a esmo, Frajola toscanejando lá no telhado, crianças brincando de qualquer coisa. Um ônibus poeirento parado no ponto, partida as nove e volta as dezenove -- nunca pontuais, pois, pressa ali ninguém demonstra. Uma placa enferrujada indicando o rumo a tomar para a Capital, um cartaz no poste anunciando o baile no município vizinho, colado por cima do retrato risonho do, agora, governador do Estado. Esta cidade não existe. Mas pode apostar: é igual a tantos outros pacatos lugarejos perdidos por aí pelos quais todos um dia já passamos. E deixamos para trás nostálgicos, pensando em adotá-los para viver...

Barulho d´água (Delfino Cerqueira/Corvinas)

Delfino Cerqueira
Até o cavalo branco que anda às tontas pela vizinhança parou para ver a chegada da geladeira nova, entregue por um caminhão das Casas Bahia, quebrando a rotina das manhãs de sábado na pacata rua Delfino Cerqueira.
Corvinas
-- Corvina boa, corvina graúda, corvina fresca!
As corvinas do ”seo” Eurico eram realmente campeãs. Apresentavam aquela cor chumbo-azulada de peixe recém pescado, conservavam nas escamas o frescor da água do rio. E como sabia minha mãe acentuar o sabor daqueles cianídeos! Mãos milagrosas que não apenas caprichavam ao temperá-los ou ensopá-los, mas, tinham o dom de multiplicar, fazendo com que apenas um deles rendesse o necessário para, à satisfação, alimentar toda a família, deixando num ponto remoto da língua este imperecível gosto que sequer o tempo elimina...
Um grande coração
Fuzilaram-me quatro vezes ontem. Em todas, antes de dispararem, pediram para que não respirasse. Mas, valeu a pena ter sentido na pele a horrível sensação do paredão. As radiografias revelaram só boas noticias: os anos de tabagista não deixaram seqüelas, a escoliose é leve, quase imperceptível, e, apesar de eu ser um tiquinho ranzinza, possuo um grande coração...

Barulho d´água (Giovana)

Giovana
Aos cinco anos,
pendurada nos galhos,
Giovana só ri.
Goiaba de olhos verdes,
com tatuagem no braço.

15 de julho 2002

(Dedicado à menina Giovana, que brincava numa tarde quente de inverno no Parque da Garça, o Parque Georgina, no jardim das Flores, em Osasco, São Paulo)

Barulho d´água (O fantasma de olhos verdes)

O fantasma de olhos verdes*
O menino revelou-me, como quem guardasse segredo há tempos, que todas as noites recebe um fantasma de olhos verdes. E, com o espectro, faz origamis, brinca de jogo da memória, roda pião, atira aviaõzinhos de folha de caderno pela janela, entre outras atividades. Durante os encontros, recomenda ao amigo do além falar e rir baixinho para não acordar ninguém da casa -- sobretudo, o gato Bankô, que já anda desconfiado da ilustre visita todas as madrugadas no quarto do dono, e se põe a miar com os pelos eriçados quando ambos perambulam pela cozinha nas pontas dos pés, interessados nas guloseimas que tem na geladeira. Acreditei na história. Tenho visto aviãozinhos repousando nos telhados vizinhos, potes vazios de iogurte aqui e acolá, objetos e brinquedos mal arrumados, ou, fora do lugar ao amanhecer. Mas, recomendei ao garoto: examine-os bem, verifique se são mesmo verdes os olhos da tal alma penada, pois desconfio que sejam lentes de contato, já que, na minha infância, todos os caras evanescentes que eu conhecia tinham apenas meninas pretas -- isto quando as tinha, ao invés de buracos nas regiões oculares. Dias depois, contou-me que aceitou minha sugestão. Então, surpreendendo-o, o fantasma tirou os olhos e entregou um deles ao amiguinho, propondo com um largo sorriso: topas uma palma-esteca?

Inspirado em poema de Mário Quintana publicado no livro Sapato Furado.

Barulho d´água (Palito de fósforo)

Palito de fósforo
Ao passar pelo 13o.andar, como tudo ainda estava muito bem até aquela altura, renovaram-se minhas esperanças de que um milagre deteria minha queda livre, salvando-me de estourar no chão feito um tomate podre. O Homem-Aranha talvez surgisse do nada, dependurado por uma teia. Ou eu me lembraria a tempo de algum truque capaz de me virar em pássaro. Quem sabe alguém não estenderia bem na hora fatal uma rede ou uma cama de elástico, sei lá, aparecesse com uma tina d’água, iguais àquelas que a gente vê em comédias dos Três Patetas ou em desenhos animados? Lógico: havia também a possibilidade de ser um pesadelo. Entretanto, pelo sexto andar, o filme da minha vida começou a passar por minha cabeça, Ai, chapa, aceitei o fim. Como um condenado diante do pelotão de fuzilamento, resolvi fumar o último cigarro. Alcancei a caixa de fósforos no bolso da calça e risquei o palito. A chama logo se apagou, para meu espanto. Amaldiçoei o desgraçado do fabricante até a última geração dele, jurando a mim mesmo: caso não morresse a primeira coisa que faria seria processá-lo por praticar crime contra a economia popular, colocando no mercado um artigo de tão baixa qualidade.

Barulho d´água (Perseguição)

Perseguição
A mijada saiu vigorosa, jorrando quente, quase queimando a mão com a qual ele segurava o pau. Ah, que sensação, corpo estremecendo como quem está gozando, quase um orgasmo. Muito mais do que prazer, no fundo, sentia que se ia aliviando, afinal, despistara-os, escapara, finalmente. E, feliz por tê-lo conseguido, nem reparara na imundície daquele banheiro de quinta no qual afoitamente se enfurnara, buscando-o mais para se esconder do que para tirar a água do joelho. Lembrando-se do sufoco que passara, balançando para não deixar nenhuma gota pingar na cueca, o estômago resmungou. Só pensava em dar o fora dali o quanto antes, alcançar a Júlio Prestes, entrar no subúrbio e, enfim, ver se a caminho de casa, devidamente salvo. Mas não podia vacilar, os dois caras, é lógico, bem poderiam estar pela área, precisava dar um tempo naquele cubículo onde já começava a ficar nauseado. A prudência falou mais alto até o momento em que descobriu estar sem cigarros. Ai o vício, aliado à fome, venceu a cautela. Resolveu arriscar-se, era hora de sair da toca,
Dirigiu-se, antes, ao lavatório, onde não encontrou nem torneira, quanto mais água. O nojo aumentou, fora forçado pelas circunstâncias, mas culpou-se por não ter escolhido um lugar melhor para se enfiar. Após checar que a barra estava limpa, encostou-se ao balcão com um olho na rua outro na estufa onde boiavam algumas salsichas. Pediu uma no palito, pingado e um maço de Mourad ao homem de avental gorduroso, barba e unhas por aparar do lado de dentro. Ouvido colado no rádio, embora o volume estivesse ribombando por todo o recinto, o tal acompanhava um daqueles programas do mundo cão e nem te ligo. Somente no segundo pedido, com ar de poucos amigos, dignou-se a atender o freguês, a quem tornou a dar as costas tão logo o serviu, voltando à novela radiofônica que descrevia a infelicidade de um ladrão de correntinhas apanhado e quase linchando no Anhagabaú.
Engoliu o embutido quase sem o mastigar e o líquido apenas morno de gosto salobro que imitava café com leite de um gole só. Juntava as cinco moedas que poria na boca do caixa pensando em nem pedir troco ou saber se ficaria devendo na conta quando uma mão, tocando-o no ombro, por trás, deixou-o gelado. Por uma fração de segundos, que para ele deve ter durado mais, sentiu profundo terror, soube o que é para a mosca estar nos palpos da aranha. Assim que descobriu que fora o padrinho de casamento que o tocara, entretanto, o sinal se inverteu. De apavorado, passou a arrebatado de contentamento, quase caiu duro foi é de felicidade! Santa coincidência encontrar ali o compadre a quem não via há cinco anos, desde que, terminada a Copa da França (que ambos cobriram juntos), aquele deixou a Tribuna, contratado a peso de ouro para cuidar das sucursais interioranas da Gazeta. E, por ser abençoada, apesar de ainda ser muito cedo, propôs cerveja para comemorar o inesperado encontro.
Para por o papo em dia escolheram uma mesinha, nos fundos da lanchonete, num canto que consideraram mais limpinho. O amigo contou que madrugara no pedaço por ter sido uma das vítimas do passaralho na Gazeta, ali chegara porque precisava discutir o mais cedo possível com advogados do Sindicato números da rescisão que julgava a menor. Já o apadrinhado mentiu. Estava diante de um camarada confiável, dono de caráter irrepreensível, com o qual poderia desabafar sem medo (mencionando inclusive, a terrível perseguição que madrugada a dentro sofrera e os motivos dela até se refugiar naquele sujinho), mas, preferiu inventar. Alegou que fora escalado para o pescoção que preparava uma edição especial da Tribuna e, como perdera o último trem, achara melhor ficar navegando até dar um horário mais cristão, no qual pudesse voltar para casa sem correr riscos nem ter de ficar perambulando pela Boca. Ai que, a caminho da estação, sem cigarros, e com vontade de urinar, resolveu entrar na lanchonete.
Assim foram esvaziando copos e garrafas. A sede era grande, assuntos e fofocas não faltavam. Se quisessem poderiam tricotar todo o dia, e ainda mais um pouco, que nem sequer desenrolariam metade do novelo. Já ia bater dez horas, solicitaram a saideira, outro conhaque, mas, claro, já tinham acertado esticar a prosa. Almoçariam num bulevar da Paulista depois de passarem pelo Sindicato. Á tarde, antes do chopinho no Riviera, cineminha, ôpa, como não? Depois, jantar no Baião de Dois, filé a cubana, como nos velhos tempos depois dos fechamentos. Nesta batida, o primeiro nem mais se lembrava do sufoco e dos perseguidores, todo a conversa que punham em comum deixavam-nos cada vez mais leve, levavam ambos a gargalharem com a justa alegria que convém a dois velhos chapas que a correria separara. Conta rachada, com direito a gorjeta (que o tiozinho do avental escroto meteu no bolso sem conferir), enfim, saíram para o sol. Trôpegos, nem perceberam: duas sombras, saindo detrás de uma banca de esquina, puseram-se a subir a rua na mesma direção em que iam...

Barulho d´água (Rótulos)

Rótulos
Tiozinho inventou de colecionar rótulos. De água mineral, de caixa de fósforos ou de grampos, de xampu ou de iogurte, de bebidas, de tudo. Pegou a mania depois de tomar a água mineral francesa Perrier, que comprara, num impulso, durante a esticada ao hipermercado sendo inaugurado no bairro. Na coleção mantinha marcas chapadas, como a das badaladas sopas norte-americanas que fizeram a cabeça do rei da pop-art Andy Warhol, ou da cerveja alemã entornada nos quatro cantos do planeta, cuja marca está associada a concertos de rock. Normal para quem, quando pivete, e, já adolescente, juntava tampinhas de garrafas, maços de cigarros vazios, brasões de clubes e de seleções de futebol -- com os quais montava imbatíveis times de botão e papava todos os campeonatos que disputava, outro passatempo para o qual tivera compulsão, e que fez dele o alvo das garotas do colégio, que tão bem representou num torneio interescolar. Feitos de madeira revestidos de fórmica, os retângulos que serviam de goleiros para as equipes, por sinal, pareciam mini-outdoors. Ostentavam logotipos de empresas aéreas, de montadoras de automóveis, de fábricas de materiais esportivos, de distribuidoras de combustível. Todos os toquinhos das mais de setenta agremiações que possuiu exibiam no «uniforme» as logomarcas de uma editora paulista e a do mais famoso refrigerante do globo. Colecionar rótulos parecia, portanto, apenas uma continuação destes impulsos, um traço de personalidade que vinha de longe. Aos poucos, o passatempo, dizem, teria virado obsessão. Passou a pregar rótulos por todos os cantos, reproduzindo-os das mais variadas formas. Colava-os nos vidros das janelas de casa, nos do carro, na “magrela”, onde dessem visibilidade. Não demorou muito estavam costurados nas roupas que vestia até para ir comprar pão e à missa (era probo e chegou a ser sondado para assumir o núcleo de catequese da paróquia, mas achou-se sem preparo suficiente e se recusou), sem falar nos ternos de cumprir a agenda social. Parentes, amigos, estranhando, tentavam alertá-lo para o suposto ridículo da situação. E lógico: ouvia piadas nas ruas, onde estivesse, por onde passasse. O boa alma, nem aí, fingia que não era com ele. Acabou sendo convidado para dar entrevistas, tornou-se tema para teses acadêmicas no Brasil e até no exterior – laudas e mais laudas sobre comportamento, sobre estética, sobre os efeitos da comunicação de massa, o escambau. Parolagens e filosofagens mil também. Redigiram até um best-seller recordista de vendas! Na noite em que levou o programa do Jô a quase estourar os marcadores de audiência, envergava paletó, camisa e sapatos italianos -- todos rotulados, obviamente, com destaque para a gravata, de seda, confeccionada sob encomenda, em cujas estampas via-se o rótulo de uma colônia pós-banho. Explicou com naturalidade ao apresentador as razões pelas quais adotara aquele hábito. No melhor estilo Adorno, como um dos luminares da Frankfurt, asseverou que as pessoas sempre devotam mais atenção aos objetos e às coisas, e dão mais valor a estes, sobretudo, se forem importados, do que ao próximo. Arrancando suspiros da platéia, argumentou, também, que o suposto valor do homem, sobretudo na «sociedade moderna de consumo», sempre é atribuído pelo carro com o qual circula, pela roupa ou sabonete que prefere, pelo saldo na conta bancária, pelo restaurante que freqüenta, quase nunca pelo caráter -- o que nos tornaria, na verdade, mera extensão das coisas e dos rótulos, objetos para os quais só faltaria um código de barras. Parecia chover no molhado teorizando como se fosse bamba no assunto e não fez revirar na cova apenas o alemão. De pé, chegou a declamar o famoso poema de Drummond, sim, aquele do eu-etiqueta. Para aumentar o espanto de todos, anunciou durante o talk-show: reformaria a casa, em breve, decorando-a como se esta fosse um supermercado. Olhos brilhando como quem já vê o que planeja, explicou que alguns dos móveis teriam jeitão de gôndolas, a cama viraria uma espécie de prateleira. Risos. Balançares de cabeça em sinal de reprovação. Reações que, no fundo, sentenciavam o que um rapaz terminou por gritar da assistência, tão estridente e zombeteiro que o Gordo, até então comedido, arreganhou-se e gargalhou como nunca: «Este ai é zoró, tem jeito não, pirou de vez, oh, pobre coitado! Com o perdão de todos, não quero fazer troça agora, mas, Jô, chame ai os comerciais!».
Tocou o projeto anunciado na telinha, indiferente às críticas, às provocações. Pela época da inauguração do imóvel (fato que a imprensa cobriu e divulgou como quem exibe um ET encontrado na Rússia, saiu até na Times), esposa e rebentos já tinham vazado, deixando-o na mão, falando sozinho, pé na bunda, sem dó, nem piedade. Morreu alguns anos mais tarde, de desgosto, sem que nenhum médico atestasse o menor sinal de insanidade nele. Até bater as botas recebeu atenção apenas de um dos filhos – o caçula, que dedicava ao pai total consideração, visitando-o e custeando-o sempre que podia. A contragosto, mas, convencidos pelo rebento que o guardara, os poucos familiares e ex-amigos que deram caras no mortório aceitaram sepultá-lo num caixão repleto de rótulos, dentro do qual levou, para sempre o da Perrier, posto sobre o coração, debaixo das mãos cruzadas sobre o peito. Era o último desejo: levaria consigo para Deus ou para os vermes comerem o objeto que consubstanciava suas convicções. Foi difícil dobrar o administrador do cemitério, ah, como foi! Este, porém, mediante o sinal verde do alcaide, acabou por permitir que a lápide fosse toda decorada ao gosto do defunto, iniciando-se desta maneira um novo filão de exploração comercial e publicitária antes impensado por experts do ramo. O túmulo é hoje ponto de encontro e de adoração para curiosos e para seguidores de todas as espécies que vêm visitá-lo, alguns trajados como o mestre em vida. Os floristas instalados nas imediações tiram proveito, faturam cada vez mais, idem os vendedores de souvenires e de bugigangas. Uma empresa especializada em administração de museus já fez a primeira oferta pela casa onde morava: planeja transformá-la no pomposo Memorial dos Rótulos, das Logomarcas e das Embalagens, segurando em valores astronômicos os bens e a controvertida coleção do espólio do falecido. Há uma propositura na Câmara dos Vereadores sugerindo rebatizar uma das avenidas da cidade com o nome do seu, quer queiram ou não, mais ilustre filho. Exige 2/3 de votos favoráveis para virar lei, e aprovação em duas sessões. No entanto, a julgar pela bonomia do homenageado, a quem os edis até já conferiram um cartão de prata póstumo, passará sem bate-bocas, na base do senta-levanta mesmo, forma de apreciação ligeira que nem sequer exige declaração aberta de voto, bastando apenas erguer-se de leve da cadeira para que a matéria em pauta seja, normalmente, aceita por maioria absoluta
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Barulho d´água (Bankô)




BankôGato quando é bem criado não é, necessariamente, do tipo robusto. Pode até ser magrinho. Bankô, por exemplo, se bobear, acaba carregado pelo vento, feito pipa taiada. Sensível, tem incrível capacidade de ir direto ao ponto, escolher apenas o que é bom. Fã de Adoniran, adora Trem das Onze. Rock também mexe com ele, sobretudo se for Rita Lee ou Pink Floyd. Bichano eclético. Num canto da estante, deixado vazio de propósito, costuma tirar longas pestanas. Dia destes, cismou com um catatau azul de letras douradas. Atendi-o. Há tempos planejava reler Ana Karenina. Por cima dos meus ombros, página por página, ouviu tudo atentamente até o final. Como não soltou nenhum bocejo antes e quando fechei o livro, concluo ter amado a obra prima de Tolstoi tanto quanto curtira O Carteiro e o Poeta. Lógico, felino assim, dado a tantos refinos, ignora ratos, baratas, moscas. Sem essa de cadeia alimentar, lei do mais forte. Mas vira bicho quando assiste derrota do Timão, afinal, é fiel às cores da pelagem. Sai de casa rutilando os olhos, emitindo miados que mais parecem gritos de guerra. Volta dois ou três dias depois, estropiado, às vezes arrastando-se, mas invariavelmente vingado, expressando nos bigodes a alegria de quem acabou de destilar o mau humor descontando a zebra no couro do bichano de algum vizinho palmeirense ou sampaulino. Nestas horas também prova o quanto é danado, porque atrai para o telhado tantas fêmeas ronronando apaixonadas. Fingindo que não me vê, vai direto às pernas de minha mulher, esfrega-se nelas, e, então, cai, fazendo-se de morto. É batata! Içado ao colo sempre macio e perfumado, aninha-se o melhor que pode, sempre com a cabeça levemente pendendo para a fenda dos seios. Antes de apagar, olha-me malicioso, dá um suspiro. Entendo o recado, pisco com o esquerdo. Ele quer apenas se refazer da batalha, recuperar a agilidade. De noite irá ao encontro de uma das namoradas. A cama será toda nossa e nem precisaremos fechar a porta do quarto...
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PS: Bankô, gato que inspirou esta crônica, foi dar um bordejo em certa madrugada e contrariando o que sempre fazia, não mais voltou. Dizem que seria ele o gato atropelado a poucos metros de minha casa, mas dúvido: o bichano era hábil em driblar veículos. Deve mesmo é ter descolado uma gata daquelas e ... área!

Barulho d´água (um quadro negro...)

Um quadro negro

(ou um jeito diferente de encarar a escuridão)
Engana-se se você pensa que neste cenário há só escuridão. Olhe bem e veja em quantas coisas o olho pode tocar. Tem um fusca amarelo estacionado. Um par de botas namorando outro de sapatos num cantinho do quarto. Três estrelas capricham na emissão dos brilhos para ver qual dos fachos primeiro acaricia a lua cheia. Um elegante senhor faz palavras cruzadas, sentado num banco de praça. Como pode ser noite ou dia, sentiu o perfume da rosa? Viu o girassol? E o garoto, que há pouco deslizou de uma nuvem, soprando dente-de-leão? Reparou a rã saltando, ainda no ar, a meio caminho do mergulho no lago? E no goleiro encostado à trave, desolado pelo sétimo gol sofrido pelo time dele? Tem mais, é só procurar. O pardal cansou-se de zanzar e agora dá um tempo sobre a placa indicando o rumo para São Paulo. O ciclista passou voando, já dobra a esquina lá na frente, mas, fique atento: atrás dele vem o atleta treinando para a São Silvestre. Vestido de Papai Noel. Um avião fazendo um barulho danado decola ao sul. O vento carrega uma pipa taiada. Garis varrem as folhas caídas que o cara de cima derrubou. Guris, pilotando carriolas, apostam corrida. Na feira-livre não faltam cores, seja as das barracas de frutas e de verduras, ou as das sacolas de nylon das donas-de-casa. Os caquis, a propósito, de tão aquecidos pelo sol, loguin vão queimar as retinas. Para o gato, que sonha estar desfrutando um pires de leite, requentando no telhado da casinha branca, o tempo parece perfeito. O vira-lata simpático, como não alcançou o bichano, desconta a frustração no poste pintado pela Prefeitura de novo ontem. E os jornais desfraldam em todas as bancas manchetes alvissareiras. Está tudo ai, neste quadro, supostamente negro. Se por um acaso você não estiver enxergando nada recorra ao interruptor. Ele está à direita da porta, bem ao alcance da mão.

Barulho d´água (Sincronia)

Sincronia
O gato na cozinha.
Quando pinga a torneira da pia,
levemente, a orelha direita gira.
Quando da casa vizinha
o som do cánoro canário mira,
a esquerda é a que rodopia.

Barulho d´água (Vírgula)

Vírgula
A virgula ficou azeda comigo nesta manhã. Decidi fazer um poema sem empregá-la entre os versos. Expliquei direitinho que é uma questão de gosto. Estilo. Uma opção. Deixei-a falando sozinha. Ela retrucou:
-- O senhor não poderia abrir uma exceção, só uma?
-- Não será preciso: você acabou de entrar no texto! Meteu-se espertamente onde não era chamada!
-- Eu? Como assim? Nem sai do lugar...
-- Não se faça de tonta!
-- Certo, desculpe-me, juro, foi sem querer. Mas já que entrei, e agora estou me repetindo, será que o senhor não abriria aquela exceção anterior, não daria uma colher de chá para meu primo, o ponto e vírgula?

Barulho d´água (Tristeza)

Tristeza
 

A maior parte do tempo as duas irmãs do defunto, mais a viúva: sozinhas velando o morto, madrugada comendo o sono. De vez em quando, um vizinho, condolências rápidas. Um bêbado espiando da ponta do pé, lá da rua mesmo, sem entrar, querendo saber quem este ai que esticou as canelas: era bacana, ou pé-rapado? Um cão sarnento dormindo debaixo do esquife. Moscas nos crisântemos. O salão, luzes quase mais fracas que a chama das velas, de um amarelo mortiço. Parentes um pé lá, outro cá, já fui! Sobrinhos ou netos, se nem os dois filhos? E se os distantes não chegariam a tempo, para que pegar estrada ou trem?  
 
A mãe, já de volta do cemitério, molhada pela garoa fina que enregelava até a alma, mal agasalhada pelo xale preto. Entra no quarto, surpreende o moço a bulir gavetas. Quer saber cadê o "bobo" do falecido e, irritado, exclama ao ouvir a resposta entre soluços: "Não acredito minha mainhizinha! Você enterrou o relógio russo com ele se daria uma boa grana no antiquário?! Mas então diga ai, velha, seja franca, vai: o pai era mesmo durango ou deixou algum em seu nome, sei lá, uma conta secreta, abre o jogo, vai!" Para não perder a viagem carregou consigo três camisas, dois cintos, gravatas, um risca de giz que apesar da falta de um botão na frente e já meio puído vestia elegante, de bom corte, pares de sapatos maiores dois números — "mamãe daria tudo aos pobres, que desperdício, meu! E se caso não servissem, aos amigos menos remediados!". Do carro na garagem, bye bye, rádio gravador. E que pai mais besta de antiquado, nem um cd player instalara, "oh, miserê, cara!"
 
Ao telefone informa à "menina": missa de sétimo dia. "Ai mamacita, bem na hora e no dia da festa de aniversário do Xandão, meu melhor amigo da academia? Nem pensar, dona Inês, vai rolar a maior balada na Lagoa Preta, perco não. E tem mais, prestenção, please, mama: o papai mor-r-eu, viste, está mor-ti-nho da sil-va, já era! Vê se desamua, não fica em casa curtindo viuvez! Oh, um toque esperto: a senhora ainda está conservada, caia na vida! Tem tiozinho enxuto na pista, dando mole, uns até bem remediados e resolvidos, veja se consegue me entender, sempre tem um cara legal, ou sei lá, até mesmo... um boy! É, quem é que vai ligar se for garotão? Vai nessa, mãe, bola pra frente, vida que segue! Um beijo, fui!" Clique, pam, pam, pam, pam...
 
Dias passando, iguais. Piores momentos a solidão da noite, cada vez mais longa. Tevê amanhece ligada, lâmpada do banheiro torna acesa. Únicos consolos: foto na cabeceira, visita de algumas amigas, as duas cunhadas, gente de igrejas, piedosa. E a gata, batizada Apache pelo camarada Ribeiro em homenagem aos peles-vermelhas que vira num bang-bang; ele sempre torcera contra John Wayne e demais cowboys e pelos índios, mania de tomar partido pelos mais fracos que o levara a defender desde moço a ideologia da foice e do martelo, traço de caráter e humildade que de porra nenhuma serviram, até renderam mote de gozação quando, já desiludido da vida pública, puxaram o tapete dele na convenção. Contas feitas, votos a favor suficientes, tudo somado na ponta do lápis, calculado, recontado... e o desafeto, pelego safado, é quem sai candidato pelo Partidão; tanto altruísmo, incansável em lutas intermináveis e por pouco não faltaram mãos para pegar nas alças do caixão a caminho da tumba.
 
É, vida que segue. Só não contaram para Apache, que lá, pelos cantos, não entende aquele súbito vazio da casa incompleta. Miarosa, agora faz fora do tanquinho de areia, melancolindo-se cada vez mais, olhar tristonho e perdido afundado na poltroninha da varanda onde não mais encontra aconchego de colo, aquele carinho dos dedos longos cofiando-lhe o pelame. Há três dias nada de leite, nem sequer polenta reforçada por caldo de frango, um mimo que antes devorava, sobretudo quando preparado pelo dono, desperta a fome da bichana...
 

Barulho d´água (Perfume de mulher)


Perfume de mulher

O sol já fazia arder a cara quando o celular tocou, interrompendo o cochilo no banco da praça. Bem no horário. Do outro lado da linha, recado curto e grosso, seguir em frente por quatro quadras, dobrar a esquerda, onde encontraria uma banca de jornal. Dali, outra caminhada até encontrar um ipê florindo numa esquina. Naquela rua, à direita, cem metros adiante, um imóvel todo murado, um portão vermelho. Três batidas, conforme o combinado, abririam a portinhola. Através dela, a mão entregaria um envelope. Nenhum comentário, lance rápido. Pego o envelope, a portinhola blang, seco. Depois, seria com ele. Seguindo as instruções, chegou à banca. De canto de olho manchete sobre a vitória canarinho, Playboy com nova coelhinha, bateu saudades de Érika, onde andaria a lolita? Reparou no caminho: nenhum bom-dia, gente esquisita, nem ai com caras novas, teriam percebido que era forasteiro? O sorriso meio forçado do candidato a prefeito nos postes. Um gato mirrento, filhote ainda, cola nele por alguns metros, miarento, querendo assunto e colo. Não deu pelota. Melhor a discrição, o anonimato, chamar a atenção pelo impulso de acariciar um bichano poderia ser já era. O ipê estourava de amarelo, encantador, apesar de ainda faltar um mês para a primavera. Toc, toc, toc. Silêncio uns instantes. Abriu-se, enfim, o postigo. Como o acertado, nada de contato. Viu sequer a cor das unhas de quem entregou o envelope antes de a portinhola ser batida no nariz dele. Agora, agir... Digitado em Times New Roman, corpo 12, em detalhes, como deveria proceder. Feito o serviço, se feito exatamente como o descrito. não haveria erro, então, sem nenhum questionamento quanto a modos ou porquês, retorno imediato para a praça, esperaria por lá, atento, a passagem de uma motocicleta destoantemente indiscreta, pois amarela tal qual o ipê. O motoqueiro deixaria cair um segundo envelope.
Já com ele na mão, apalpou-o, percebendo pelo volume: nem precisaria conferir o conteúdo. Viu ainda a moto dobrar lá adiante. Misturado ao cheiro da máquina, um perfume recendendo no ar. Delicada fragrância, aroma que teve a nítida impressão: já sentira antes. O piloto deveria ser uma bela moça, poderia ser até quem estava pensando....

Barulho d´água (Sardinha)


Sardinha
Sardinha hesitava. Entre ir e ficar, trocava alguns passos, mas, logo, estacava, não arredava, orelhas em pé, olhos atentos, como se fosse capaz de saber o que se passava bem lá adiante do focinho. Possuía a sabedoria que todo cão vagabundo tem, calejado de tanto andar para baixo e para cima, malaco das ruas, das vielas de tantas personagens, gente, bichos, odores, partilhas e coisas estranhas aos freqüentadores de pet-shops, fifis de berço vacinadas até contra gripe, jamais sugadas por uma mísera pulga ou hospedeiro de carrapato, casinha, tigela de ração balanceada até a boca, água fresca, manta e roupinha sob medida para aquecer, um colchão para relaxar os ossos, encostar e dormir o dia inteiro. Nada, portanto, poderia meter medo em Sardinha, conhecedor do frio, da fome remediada com restos de feira e de botecos, daí, o nome, da sarna, da indiferença, de dentadas brigando por cadelas, alvo de pedradas, de bicudas nas costelas e onde mais pegasse, circunstante de assassinatos até à luz do sol, tiro de raspão na barriga, perna quebrada e, Deus sabe lá como, meu velho, curada depois de um atropelamento, carregado certa vez por enchente – perambulava pela zona Oeste, quando, enfim, conseguiu vazar da enxurrada, fatigado, já sem pulmões, estava na Norte.
Sabia barulhos, distinguia vultos, decifrava cheiros, ao pisar a vibração que sentia nas patas já anunciava o que poderia topar na curva seguinte. Mais alguns passos, parou de vez, recuou de fasto meio metro. Perscrutou outro tostão, e, como já soubesse o que mais adiante o estaria aguardando, chispou, não foi, xará, pois vira-latas até poderia ser, mas, toupeira, só se fosse gato, e daqueles de concurso de peruas e de bichanas que de malícia não tem nem para descer do colo. Horas depois repórteres do mundo enviavam imagens da tragédia. Checando e ciscando entre escombros, como quem procurasse vidas, Sardinha chamava a atenção de todos e após pontificar em praticamente todos os noticiários por semanas, inclusive no principal telejornal da BBC, acabou indo parar no Corpo de Bombeiros.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Barulho d´água (Guarda-chuva)

Guarda-chuva
Nonato Junqueira encontrou num banco da estação um guarda-chuva daqueles bem grandes e chiques, de nylon, padrão tipo saia de escocês, pois xadrez em vermelho e verde. E era mesmo um senhor guarda-chuva! Com ele “seo Nonô”, como é tratado no bairro periférico da distante cidade onde o trem pára pela última vez ,antes de iniciar a longa viagem de volta, estaria protegido contra as águas descarregadas por São Pedro, contra erupções vulcânicas, furacões como o Katrina, o que Deus mandasse. Mais do que isso: notou que o uso cotidiano do guarda-chuva fez com que mais pessoas passassem a reparar nele; de repente eis que o amigo passou a ser alguém, carne e osso não só dentro da própria comunidade, mas onde quer que fosse se estivesse com o guarda-chuva. Um simples guarda-chuva, esquecido ou deixado para trás, veja só, deu um lustro na existência de um modesto e pacato cidadão. Ele próprio começou a sentir-se outro. No começo tímido, logo curtia aquela onda toda, passando em pouco tempo a orgulhoso daquela condição surgida tão inesperadamente. A vaidade, é claro, veio por tabela. Não mais punha a cara nas ruas sem se barbear, engraxar o combalido sapato. Camisa amarrotada, nem pensar. Vigia numa fábrica da Capital, seguia para o trabalho alinhado o mais possível -- o guarda-chuva, lógico, sempre a mão, chova torridamente ou faça calor torrencial, sol de fritar borracha. De manhã, quando voltava, apesar das marcas das madrugadas mal dormidas, caprichava de novo no visual -- afinal, sempre notava um olhar diferente, não raro, feminino, e até libidinoso – e olha que ele mal sabia o que está palavra significa, mas os olhares, ah, bem que os entendia, e os entendia bem. Já há três dias o interesse da dona de um destes olhares mantinha-se, ficava mais direto, profundo, penetrante. Bastaria um oi e o resto seria só encaminhar, já pensava, animado. Batata! Bingo! Encontro marcado. Sábado à tarde engabelou a patroa sem dificuldade. Ela ainda o advertiu que talvez fosse melhor não sair, havia temporal armado praqueles lados onde falou que iria. Sorriu, irônico, afinal... o guarda-chuva! Na hora marcada, ela na calçada oposta, ele debaixo daquele verdadeiro toldo sentia-se a salvo, protegido do dilúvio, e com espaço de sobra para dois. Quando o semáforo fechou, deteve o passo a tempo: um motorista maluco, sem respeitar o sinal vermelho avançava, o carro em alta velocidade quase o atropelou, fez espirrar todo o conteúdo da enorme poça d'água que havia junto ao meio-fio e o deixou encharcado, da cabeça aos pés. Não desmarcou o encontro, manteve-se altivo, apesar de molhado até a alma. Só decidiu que voltaria a ser o Nonô de antes assim que voltasse para casa, nada mais de encontros furtivos, de novo atenção só para dona Maria. O guarda-chuva esqueceria no trem.

Barulho d´água (O anjinho e o poema)

1) Comigo me desavinha*
até pelo meio do caminho
cantar um sabiá


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2) Estrada do Tambory
ao vendedor de vassouras,
responde um bem-te-vi.







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O anjinho e o poema
Deixei cair, e se quebrou, um dos três anjos de porcelana que havia sobre o forno de microondas (lugar, que, aliás, depois julguei ser nada propício para tais personagens, os quais se ainda fossem diabinhos, vá lá, acredito, teriam mais a ver!). Ela ficou arara! Para acalmá-la, propus escrever uma poesia, mas a resposta dela deixou-me também em cacos: “Poema para mim, para quê? Versos não colam e nem servem para substituir anjos de porcelana estilhaçados", disse, antes de emendar, genialmente. "Além disso, não têm mãozinhas juntas espalmadas em oração, asinhas, e muito menos olhinhos, contritos e piedosos, voltados para o céu!”
Sapatos

De um par de sandálias, um de sapatos, e outro de chinelinhos, repousando lado a lado num canto do quarto emana toda a paz, transluz toda a alegria que a casa tem...
Vilarejo


Tinta já desbotada da cruz de madeira pintada de azul: prova de que o tempo também sabe onde fica a pequena vila ilhada entre morros, a menos de cem quilômetros da metrópole que ruge.




Carcaça
Jaz servindo de poleiro para galinhas, adornada por um ramo de quaresmeira, no terreno de um casebre à beira duma estrada de terra, onde enferruja com a mesma paciência e vagar que por lá passa o tempo, a carcaça de um Fusca...


Pipa
Fazendo grande algazarra, guris disputaram a pipa presa entre os galhos: as goiabas, já maduras, ficaram para os pássaros.



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* Inspirado em poema de José Régio

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Barulho d´água (Blusa no sofá/Microondas)


Uma blusa dela
esquecida no sofá --
dançamos por horas.


Microondas
O moço da televisão vive pedindo para que a gente escreva contando para ele qual é o nosso sonho que o programa pode até dar jeito. Mas as coisinhas assim do meu desejo, ah, duvido: eles não atendem, não. O que eu espero é ter cozinha com microondas, avental com figuras de galo, galinhas e a pintaiada ciscando pelo terreiro. Cristaleira de madeira envernizada, marrom bem forte, de quatro gavetas, três prateleiras no vão central, as portas de vidros retangulares, na sala do meio. Lustre que imitasse lampião para iluminar a de prosear e de ver o mundo. Cadeira de estofo confortável na varanda, na qual o gato pudesse pestanejar ao sol, ao cair da tarde, depois da farra com os passarinhos, e, aos domingos, eu pudesse descascar e chupar quantas mexericas quisesse. No reservado nem careceria banheira se o chuveiro assegurasse um banho relaxante e a temperatura que não maculasse a pele, torneiras no lavatório lapidadas à mão, em estilo ouro antigo. Ah, uma cômoda! Com espelho ovalado, em corpo inteiro, na mesma imbuia da cristaleira, com repartições suficientes para brincos, relógios, pulseiras e demais adereços, os produtos de maquiar. Um vaso de barro para crisântemos, ali, ali, outros menores, para pequenas flores, dispostos em cantoneiras e estruturas de armação de ferro, das mais bonitas. E se não fosse pedir demais um bom homem, que não resmungasse quando eu pedisse para ele apanhar meus chinelos, coçar minhas costas, subitamente, de madrugada, ao som de música barroca...

Barulho d´água (Delicadeza)

Velho no farol
vendendo buquês de rosa –
O sorriso é brinde.

Delicadeza
A caminho de casa, depois de um exaustivo dia de trabalho, ainda por cima tórrido, ela só queria chegar logo.Desejava um bom banho, só depois pensaria no que fazer com o resto do dia. Ar condicionado ligado, vidros fechados, rádio sintonizando notícias sobre o trânsito, sempre caótico naquele horário, ainda mais complicado por ser época de festas. Para não adiar o encontro com o chuveiro, se fosse necessário, buscaria uma rota alternativa. Perderia dez, quinze minutos, rodaria alguns quilômetros a mais, tudo bem, importante era chegar à casa, ah, com aquele calor! Zapeando ouviu a emissora recomendar que fosse evitada a avenida Estadual, justamente o corredor de ligação com a saída para atingir o bairro onde ela reside. Plano B, então. Neste caso, além do tempo a mais, um porém a deixava preocupada: passar bem perto da entrada de uma favela, e provavelmente, amargar um sinal vermelho num ponto considerado bastante crítico, motivo de várias recomendações das autoridades, para variar, jamais com uma viatura protegendo o pedaço. Perto do local, checou travas das portas, tirou a bolsa do banco do carona, escondeu-a sob o lugar onde estava sentada. Livrou-se do relógio, dos brincos, dos anéis, juntando-os com a frente do rádio no porta-luvas. Um cinqüenta metros antes do sinal, verde, até então, deu uma geral, não viu ninguém, nada suspeito ao redor, julgou estar com sorte e já ia dando graças a Deus quando... a luz mudou de cor!
Obrigada a parar, e, ainda por cima, primeira da fila, suspirou fundo, tamborilou os dedos ao volante, depois os apertou com as mãos fechadas e levemente suadas enquanto checava aos lados. Foi quando viu se aproximar do carro um jovem, roupas surradas, sujo, descalço. E vinha em direção à janela dela, cambeteando, parecendo bêbado, ou, sabe-se lá, drogado. Já se aproximando, o jovem notou: à direção havia uma moça, que, por sinal, parecia bem interessante. Ela percebeu a surpresa dele ao vê-la, pois ele chegou a inclusive demonstrar certo contentamento e esboçar um sorriso maroto. Então, pensou: ai, é hoje, o que vou fazer, meu Pai, ajude-me! O temor aumentou quando o sujeito encostou no vidro, levou a mão por trás da própria cintura, tirando de lá algo que trazia consigo. Encolhida, olhos cerrados, escorregou em direção aos pedais, não dava a mínima às batidas no vidro, apenas balbuciava rezas. A agonia era tanta que também não a despertava do pesadelo as buzinas insistindo para que seguisse logo em frente, já que o farol abrira. Não sabe quanto tempo depois teve coragem de descerrar os olhos e, instintivamente voltá-los para o rapaz. Neste instante, levou um baque, quase morreu... de vergonha! Todo delicado, indiferente aos xingamentos dos demais motoristas que já contornavam o carro dela empacado à frente, o camarada oferecia a ela uma rosa. E tinha no rosto uma expressão de quem avisa que só iria embora quando a gentileza fosse aceita e a flor pega...

Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
http://www.poesiafeitaemcasa.blogspot.com e http://www.karumi.nafoto.net, outros trabalhos que assino. A cópia e reprodução dos elementos aqui contidos sem a devida autorização, por escrito, e sem estarem negociados direitos autorais e outras questões comerciais, sujeitarão o infrator a entendimentos com a lei.

Marcelino Lima



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