sexta-feira, 19 de abril de 2013

Barulho d'água (Luas)

Luas

A sorte me brinda,
possuo duas camisas --
posso ir ver a lua.
 
 
Quando a lua é citada no poema haicai escrito pelos mestres japoneses, na maioria dos casos, eles referem-se à lua cheia (mais precisamente a primeira lua cheia do outono), fase dela que encanta e inspira tanto quem a observa que muitos autores, não só os românticos, a reverenciam como se fosse divindade, ou musa. Os poemas muitas vezes são, portanto, demonstrações de amor, fascínio puro pelo satélite da Terra.
Neste busquei imprimir outra característica de autores como Kobaiashy Issa: a humanidade, revelada pela humildade e pela consciência de que o homem NÃO é o centro do universo. Aqui o observador sente-se feliz pelo simples fato de possuir duas camisas e poder sair de casa para contemplar a lua melhor vestido, sem ter de comparecer ao encontro usando, provavelmente, a mesma da labuta diária.
A lua, por sinal, desperta tanta admiração em poetas de uma maneira geral que o chinês Li Po, rezam os estudiosos de sua obra, teria morrido afogado... após saltar em um lago, onde a vira refletida, no afã de abraçá-la! Li Po estaria embriagado por vinho, posto que o destilado seria outra de suas paixões. Tenho uma série de poemas em formato haicai dedicados à lua, inclusive este que lembra o suposto gesto de Li Po (Bêbado de vinho,/grita à lâmpada do poste--/amo-te, lua cheia!). Arrisco, portanto, na arte dos três versos, e, de tabela, fica público minha quedinha pela lua. Mas de uns cálices e copos, entretanto, passo longe. Ademais, nem sequer sei nadar.
Aquele poema do qual mais gosto, e virá após os dois pontos, é, porém, meramente uma composição, um exercício para brincar com as palavras e com as imagens. Não ilustra um fato real, um fenômeno que observei; posto que trata-se de algo imaginado, e não vivenciado, é um texto que poderia ser classificado como "não-haicai" por contrariar normas clássicas, aqueles mandamentos mais tradicionais das escolas seculares do Japão e que têm muitos e bons seguidores entre nossos contemporâneos:
 
Com meia no céu/mais a meia da lagoa/uma lua cheia.   
 
 
Abaixo, outros textos em formato haicai de minha autoria com o tema lua, exceto os dois últimos, cujos autores eu desconheço. O penúltimo é, na verdade, uma frase grafitada em um muro, cuja foto pode ser conferida na fanpage P.U.T.A.
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No céu que cabe/no vão de minha janela/a lua cheia
Voando lá perto/ o avião por um segundo/inteiro na lua*
Lua cheia/ o vizinho fuma à janela/seu canário canta
Brincando de clicar,/meu filho dispara flashes--/A lua no visor.
Noite na rua/último ônibus perdido/distraído com a lua
Bolinha de gude--/Até o som das estecadas/a lua me faz ouvir.
A primeira lua--/Esquecidos no varal,/doze pregadores. 
A caminho de Minas/esticadinha nas pernas/para ver a lua 
Meninos de rua/o último a dormir/apaga a lua**
Cidadezinha qualquer/Seis lâmpadas na rua/sete com a lua**
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* Poema classificado em nono lugar no I Concurso de Haicai de Outono, cujo tema era Lua, promovido pelo
 jornal Nippo-Brasil, em 1.999.

domingo, 14 de abril de 2013

Barulho d'água (O casal)

O casal
 
Cair da tarde, praça semideserta. Um casal de jovens namorados, entrando na puberdade, matando aulas, troca tapinhas e risinhos. Ah, mas que delícia é a vida: se é que já não rodopiou, demora nada, o mundo estará rodopiando, rodopiando, atrás ou debaixo dum pé de qualquer coisa...
 
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Publicado, em forma de poema, na página 58 da Antologia de Poesias, Contos e Crônicas Scortecci, 16a. Bienal Internacional do Livro de São Paulo - 2000, com o pseudônimo Henrimar

Barulho d'água (Descoberta)



Descoberta
 
Observo o peixe em incansável singrado, centenas de vezes, do fundo à tona da linha de superfície do aquário, sempre tão fluído e tão plácido quanto à água com a qual convive. Vez por outra ele estaciona e um ponto ao acaso, e, junto ao vidro, dando uma pausa no vaivém, também me manja. Até que, passados alguns instantes desta troca de olhares, percebo empatia mútua, em suas pupilas há um quê qualquer que faz dele mais do que um bicho -- um delicado ser que, voltando segundos antes desta descoberta, sequer era de estimação, apenas ocupava há meses e quase despercebido um pote em um canto da sala.
Intrigo-me, não sei ao certo e me pergunto a fundo, embora eu já desconfie: qual seria este sentimento?
Aceito esta impressão e considero-a como válida. Apago o cigarro, a luz, vou me deitar: a noite desta terça-feira de maio açoita as venezianas com seu vento frio. O peixe de brilhantes escamas azuis com tons púrpura fica lá, em seu aquático mundo, insone, sereno. Rumo à cama acompanha-me forte sensação: sobre a cantoneira da sala, vivendo feliz, há um velho-novo amigo dentro do recipiente que removerei, cuidadosamente, para o centro da mesa, ao qual, a partir de amanhã, terei de passar a desejar bom-dia...
 

Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
http://www.poesiafeitaemcasa.blogspot.com e http://www.karumi.nafoto.net, outros trabalhos que assino. A cópia e reprodução dos elementos aqui contidos sem a devida autorização, por escrito, e sem estarem negociados direitos autorais e outras questões comerciais, sujeitarão o infrator a entendimentos com a lei.

Marcelino Lima



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