quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Barulho de água (O louco do bairro)

O louco do bairro




O louco do meu bairro costuma ser visto sentado numa privada deixada por um relapso qualquer da vizinhança na calçada de uma das esquinas. A bacia, para ele, é o trono, do qual despacha desanexando terras do reino que governa, anistiando condenados à forca que usurparam riquezas do território, isentando pagamentos de impostos devidos à Coroa e decretando feriados para celebrar o casamento de cada uma das suas setecentenas de filhas. Educado, sempre que deixa o vaso, dá descarga -- afinal, quem é rei deve dar exemplo. Também gosta de percorrer a cidade dirigindo um ônibus que tem apenas o volante. Jamais trafega pela contramão, não avança sinal vermelho, sinaliza devidamente todas as manobras, espera os idosos descerem e ainda pára fora do ponto para passageiros embarcarem. Dia destes lançou moda ao desfilar com um tênis vermelho, de amarrar, no pé direito, outro azul, fechado, no esquerdo. Usava uma calça supostamente rota, amarrada à cintura com uma pedaço de corda verde, e uma camisa esporte estrategicamente rasgada, look mais casual, impossível. É quando chove que toma banho, para eliminar a sujeira que carrega e as moscas que o seguem, esfrega no corpo a lama vermelha das enxurradas -- para ele perfume sofisticadíssimo, francês. Nos dias ensolarados, gosta de virar pássaros, plana acima dos boeings, furando nuvens e mimetizando-se entre as faixas do arco-íris. Desde o começo da Primavera está convicto: transformou-se em bem-te-vi. E como, dizem, Deus protege os doidos, os bêbados e os inconseqüentes, para a namorada chocar os ovos da familia que em breve terá armou o ninho no topo de um transformador de alta voltagem...

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Barulho d´água (Como Deus relaxa)

Como Deus relaxa
Deus, caso exista, relaxa das putarias as quais nós O submetemos ouvindo Albinoni, com direito a palhinhas de Vivaldi, Handel e Bach, de vez em quando. E o que é melhor: ao vivo, com os próprios, em osso e espírito, executando as composições, nada de CD´s, muito menos de covers. Agora, quando está mais a fim de balançar geral e descarregar o estresse, advinhe quem é que Ele chama, atendendo sugestões de um antigo coronel? Para não perder o hábito, o boa alma costuma dar umas vaciladas, deixar o Todo Poderoso na mão. Mas, se não dá mancada, até quem está condenado a arder para sempre nos tachos do Capeta dança como se estivesse em Bogodó ou num baile funk.
Inferno
Esperar por três minutos por um semáforo abrir, ao volante, é uma eternidade. Dependendo do local, do dia e da hora, no inferno.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Barulho d´água (Tem gato na bolsa!)

Tem gato na bolsa!

Ônibus lotado, gente que saiu para o batente bem antes de o dia raiar voltando para casa com o sol já no Japão, cansada por mais um dia de labuta. Um gato começa a miar. Espanto: um bichano dentro do busão? Os miados param, mas, segundos depois, recomeçam. Algumas gargalhadas, ah, mas esta é boa, gente: quem tem a cara-de-pau de trazer animal a bordo de ônibus? Passageiros trocam olhares recriminadores, o cobrador se encasqueta, empina o corpo vasculhando por debaixo dos bancos, dando uma de autoridade e resmungando em tom de bronca “é contra as normas da empresa e da lei transportar animais em coletivos!”. Os miados param, passam-se poucos segundos, mas xi! recomeçam outra vez, duas, três, quatro, cinco vezes, até o rapaz, sentado ao lado da moça cochilando à janela, delicadamente, tentar acordá-la: “Moça, moça, psiu, desculpe-me ai, mas acorde, oh, olha, é o gato, o gato ai dentro da tua bolsa, está miando muito, ouviu? o bichinho parece que tá no maior sufoco, querendo fazer algo da natureza dele, é melhor você dar uma espiadinha, né?” Sobressaltada, meio confusa, então, ela desperta. Notando que virara o centro das atenções e alvo de balançares de cabeça, começa a abrir a bolsa. As piadinhas e as recriminações param, dão dar lugar ao suspense à medida que o zíper vai correndo, todo mundo em silêncio, intrigado, querendo ver a cara e a cor dos pelos do bichano, o que ela fará com o felino (“e se a bolsa estiver suja?”, pensa um passageiro, já levando uma das mãos às narinas). Do interior da bolsa, no entanto, sai apenas um celular. “Alô?!”, fala a moça, após teclar alguns números e alguns segundos transcorridos. “Oi, olá, meu amor, tudo bem? Estou no ônibus a caminho de casa, desculpe-me, tirei um cochilo e não ouvi quando você chamou!”

domingo, 9 de dezembro de 2007

Barulho d´água (Um lugar)

Um lugar
A mim já bastaria o mato,
fazendo ao redor para a casinha.
Os canteiros, o gosto de framboesa,
tudo o mais que houvesse por perto,
apenas tornariam o sonho mais aprazível.

Poema-diálogo baseado em Motivo, de Cecília Meirelles, e em Canteiros, que Fagner gravou em música, também inspirado na obra da poetisa.

Barulho d´água (Aguaceiro)

Aguaceiro
O céu estava claro, estrelas começavam a luzir por todos os lados, a lua despontava, brilhante, quando, de repente, desabou um toró daqueles. Ô Deus nos acuda, pegou todo mundo de calças curtas, sô! Aeroportos foram fechados, aviões que estavam no ar pousaram onde deu, quem não perdeu as últimas pipas que ainda estavam no ar levou para casa papel, linha e taquara ensopados. A decisão do campeonato, prevista para dali a algumas horas, ficou proutro dia, com já quase 20 mil torcedores nas arquibancadas, um formigueiro humano ainda marchando para o estádio. O trânsito, para variar... Isto sem mencionar os demais transtornos, alguns de proporções caóticas. E adivinhe se o túnel do Anhangabau não virou um marzão só, no qual até o Titanic poderia se arriscar a dar um rolê sem correr o risco de naufragar? Quando as autoridades decidiram convocar a imprensa para anunciar que seria decretado “estado de calamidade pública”, o chuveirão se aquietou por conta própria. Como havia começado, parou, mais nenhuma gota. Nem o mais renomado homem do tempo soube explicar o que se sucedera. Pois é, mas a culpa foi de uma estrelinha, sim, de uma estrelinha, que choramingava enquanto procurava, sem encontrá-lo, pelo pó que sempre passa nas faces para poder brilhar e ser vista pelas crianças. Estava no bolso da pontinha esquerda, onde ela mesma o colocara antes da choradeira que quase fez a terra virar mar...

Barulho d´água (Bambino)

Bambino
No berçário, chorou ao me ver: identificou-se comigo de cara. A primeira fralda suja, ma chè onore, coube a mim trocá-la!O primo som que balbuciou foi pa, é vero! A primeira palavra? Ora, caspita: padre, logoco! Ainda no colo, batia as palminhas quando escutava Funiculí Funiculá. Deu o primeiro passo segurando em minhas mãos. O primeiro tombo de biciclete não podia ter sido com outro. A primeira ida dele ao mato foi io que presenciei. Como bom figlio e nipote de oriundi adora lasanha e pizza marguerita. Me acompanha todo ano à festa de Nossa Senhora Acchiropita, não perde sequer um capítulo de Terra Nostra, e até já passeou comigo pela nostra cara terra. É. Ele é um bambino que me deixaria super orgoglioso não fosse por um detalhe: o maledetto, santo Dio, Madonna mia, é curintiano!

Barulho d´água (A fantasia de cada dia)

A fantasia de cada dia
Ano novo, piada velha... O que esperar de um tempo arbitrariamente limitado e que já nasce sendo responsabilizado pelas alegrias ou tristezas dos homens?
-- Que 88 te traga muita saúde, meu chapa! Que você compre seu carro novo...
-- Que droga de ano, este! Nada do que fiz, até agora, deu certo...
Como será 88 sem a poesia de Drummond? Será que um outro Carlos vai ser ungido “gauche” por um anjo torto? Quem tornará o Brasil risível agora que a graúna voou para sempre? Surgirão outros? Teremos diretas? Corinthians campeão? Homens sérios que pensem nos destinos de quem dirigem?
Mas, enfim, é Ano Novo... E se os Estados Unidos invadirem a Nicarágua? E se a guerra de El Salvador matar mais 1 milhão? E se os palestinos continuarem sem terra? E se a UDR vencer sua guerra contra a reforma agrária? E se os aiatolás resolverem explodir o Golfo Pérsico? E se os Estados Unidos e a União Soviética se fizerem ainda mais convenientes? E se a ONU der a benção?
Os fogos, contudo, anunciam a esperança geral... E se a PM matar mais Adãos ou Pixotes? E se a Aids escapar de vez dos grupos de riscos? E se a classe média atarantada continuar descarregando seus ódios em negros, homossexuais, índios, idosos, menores abandonados e outros que, por serem diferentes, parecem ameaçá-la? E se a inflação atingir 800? E se a música acabar? E se você continuar me faltando?
O mundo não deixará de seguir seu curso, a camada de ozônio não se reestruturará e nem a Terra deixara de girar em torno do Sol só porque é 1988. Na certa, viveremos mais 365 dias em que muitos, por falta de uma palavra amiga, apertarão o gatilho contra a própria têmpora... Mas é preciso ter esperança. Melhor ainda: é preciso ter fantasia. Ela é a única força capaz de nos distinguir daqueles que já não amam, não perdoam, não sonham...
Então, que 1988, já tão devedor para os homens, agüente firme todos os solavancos que nós causarmos. Se a paz não surgir de fato, que pelo menos cada um liberte a criança/fantasia que hiberna em seu interior. Pode ser que, um dia, um garoto grite a manchete de um mundo novo nua rua qualquer...

Barulho d´água (Teimosia)

Teimosia

que bom ter nada para fazer

ficar sentado ao sol lendo poesia

vendo jorginho correr no campo de peladas

admirar o caderno de jéssica –

que bela letrinha tem esta danada!

ou ver o timinho de osasco treinar

enquanto o limão se oferece no pé

o relógio porém logo apita

e já é hora de se aprontar

dar tchau para os bem-te-vis

fazer o nó da gravata

tomar mais um gole de café

a benção mãe até loguin’amor

entrar no carro

como sempre o trânsito é lento

hoje não tenho trocado menino

vá você pra ver se é bom barbeiro

abrir gavetas ligar o pc e como sempre

todo dia das dez às dezoito

trabalhar trampar ralar

mas não faz mal não sanguibom

encare tudo numa boa

e amanhã mesmo que chova

sente-se de novo ao sol

e se possível de quebra

componha algum haikai

Barulho d´água (Gesus ou Jenésio?)

Gesus ou Jenésio?
Dia desses, na feira-livre lá do bairro, à medida que ia pendurando no varal sobre as pilhas individuais de alimentos o cartaz com os preços daquele dia, um dos funcionários da barraca ia dizendo o nome de cada um deles, enfatizando sempre as letras que poderiam gerar dúvidas e outras características, como por exemplo, “jiló, com jóta!”, conforme exclamou. O item seguinte foi o chuchu, “com dois cêágas”, e assim sucessivamente, passando pela vagem, “com gê, de gato”, cenoura, “com cê de coelho, que é quem mais gosta delas”, e quiabo, “com quê e muita baba”. Fiquei prestando atenção no jeito bem-humorado do rapaz, achando um barato como ele recorria à criatividade para mencionar, corretamente, o nome de cada tipo de alimento à venda cuja grafia pudesse – e costuma -- gerar algum tipo de confusão devido às semelhanças entre sons de letras diferentes. Percebi que depois do quiabo viria outra delícia do dia-a-dia que também faz as pessoas trocarem Gesus por Jenésio. Fiquei esperando para conferir como ele iria se pronunciar, se acaso também não tropeçaria, como pode ocorrer com quem não tem tanta intimidade com a língua, o que não parecia ser o caso dele. “Barriga preta, que lá em casa, para emagrecer, vira até chá, com cêága!" falou. “O quê, como assim?” protestei no ato, zombeteiro: “Vai me dizer que desta vez você não sabe se é com gê ou com jóta que se pronuncia o nome desta comida ai, hein?" O camarada não perdeu a pose. Demonstrando que sabia, estava só sacaneando, emendou, sem deixar a peteca cair: “Sei sim, senhor, qual a letra aparece no meio do verdadeiro nome da barriga preta aqui, que por sinal, fica uma delícia servida à milanesa, mas milanesa com ésse de suflê, e não zê de zoeira como estou fazendo, mas que muita dona de casa que passa por aqui pensa que é!" . "Tá certo, tudo bem, nesta você me pegou, parabéns, colega, fazer feira assim é bem mais divertido", devolvi, já saindo. "Sempre às ordens, e precisando de algo, é só me procurar, sou o Genésio", completou, estendendo-me a mão. "Mas como meu nome sempre dá muita confusão, pode me tratar pelo sobrenome mesmo, viu, anota ai, este não tem como ninguém errar: é Jesus!"

Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
http://www.poesiafeitaemcasa.blogspot.com e http://www.karumi.nafoto.net, outros trabalhos que assino. A cópia e reprodução dos elementos aqui contidos sem a devida autorização, por escrito, e sem estarem negociados direitos autorais e outras questões comerciais, sujeitarão o infrator a entendimentos com a lei.

Marcelino Lima



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