sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Barulho d´água (Troféu)

TroféuPassou fácil pela segurança da obra -- mole para quem escala três metros de muro, sobe em árvore de fruta em dois tempos, vai em um estalar de dedos do Oiapoqui ao Chuí. Do topo do futuro prédio de dez andares, rindo sozinho e como quem exibe à torcida o troféu de campeão, colocou no ar a pipa taiada que vinha de longe perseguindo e ficara presa aos ferros de uma coluna inacabada.

Barulho d´água (No tempo dos quintais)

No tempo dos quintais

Brinquedo era sabugo. Ou toco. Assustador era morcego no abacateiro e, perigoso, cair no poço. Dependendo do bairro, ser picado por cobra. Longe era ir de bicicleta. De ônibus, ave-maria! Inocência era colocar passarim morto na forquilha mais alta do pessegueiro: Deus sempre vinha buscá-lo. Ou comer a “gelatina” da mesma árvore, depois da chuva, para jamais ficar velho. Autoridade era o pai. E que festa quando ele nos levava à feira ou ao armazém! Felicidade era chupar uma laranja, ainda sentado na barraca. Tomar uma Grapette ("Quem bebe, repete!"), geladinha, só tua. Ou voltar para casa com os bolsos cheios de bala Paulistinha, Juquinha ou "sonrisal" ! Medo só se sentia quando São Pedro resolvia lavar o céu e arrastava móveis, provocando curtos-circuitos do diabo, oh, Santa Bárbara e São Jerônimo, valei-nos os terços e os ramos bentos! Ou quando os mais velhos liam à luz de lamparinas ou de lampiões histórias de assombração de gelar a barriga. E por falar em coisas do além, morrer era apenas virar uma estrela, ter a mesma sorte de nossos avós. E viver um tempo sem relógios. Sem muros. Com toda a liberdade e extensão possível dos quintais. Apesar dos poços, os quintais eram o mundo. E com muitas vantagens, eles viviam coalhados de maria-pretinha, de amora, de gabiroba...

Barulho d´água (Na marca da cal)

Na marca da cal

Temporada após temporada, o Real Lisboa, outrora um dos melhores do país, vinha definhando, envergonhando os membros da colônia estrangeira que torciam pelas cores de tão gloriosa camisa. Depois de rebaixado no campeonato nacional, mergulhado em crise financeira devido às sucessivas más gestões, sem crédito e tampouco credibilidade na praça e com dificuldades para obter patrocínio até da mais singela padaria, o simpático clube cujo patrono era Luís de Camões se preparou como deu para o certame estadual, cortando, por exemplo, a tradicional pré-temporada numa estância serrana. A drástica medida não foi a única, nem bastou para segurar a derradeira das estrelas do time. Insatisfeito com o pagamento há meses atrasado, recusando-se à política de redução de salários imposta pela diretoria, Celso Ramos pegara o boné quando a nau naufragou e estava disposto, inclusive, a largar a vida dentro das canchas caso um empresário não o tivesse encaixado no maior rival -- ganhando o dobro, e em dia. O pior é que, devido à pindaíba, nenhum reforço de renome pode ser contratado. A comissão técnica, sem saída, viu-se obrigada a fazer o tradicional omelete sem ovos, montar um catado mesclando garotos da base com ex-jogadores em atividade, que há tempos deveriam ter já pendurado as chuteiras, mais obscuros boleiros de agremiações de expressão beirando zero.
Grito de campeão preso há quase dez anos, a torcida colecionava, portanto, motivos suficientes para desconfiar, temer por novo fiasco. E a bola nem precisou rolar por muito tempo para as previsões mais catastróficas irem uma a uma se concretizando. Logo na primeira rodada, o Real Lisboa levou tremendo “sacode”, e do caçula do campeonato! A verdade é que todo o time era uma perebeira só, mas Cristiano Reinaldo (ou CR) conseguia ser ainda pior e foi pego para Cristo. Lateral-direito abaixo da média, CR cometia proezas como errar passe a dois metros de distância do companheiro. Lento na marcação, de baixa estatura, durante o prélio de estreia tomou canetas, pedaladas, elásticos e até carretilha do ponta-esquerda adversário -- um atrevido crioulinho que acabou apontado como revelação do campeonato, rapidinho vestiu a amarelinha e virou alvo da cobiça das mais bem estruturadas agremiações europeias.
Estava dramática a situação! Nunca antes se vira tantos pernas-de-pau juntos e nada engrenava naquele arremedo de time de futebol que, somente na quinta partida, quando a defesa já era a mais vazada, conseguiu quebrar o lacre e farfalhar nas redes inimigas. O golaço contra do beque inimigo até poderia ter sido eleito o mais bonito do domingo! Ainda assim, necas dos primeiros três pontos, pois o pega ficou mesmo no 1x1. Este empate, se não poderia ser considerado refresco, ao menos serviu para unir o grupo em torno do “Professor”, cuja cabeça já estava a prêmio. Comissão técnica e jogadores, então, selaram um pacto, ensaiaram bem aquele discurso ao estilo de todos os boleiros: se fosse preciso, comeriam grama, colocariam os corações nas pontas das chuteiras para evitar novo descenso.
E todos, de fato, procuraram ir além das frases feitas e das próprias limitações. O Real Lisboa melhorou um tiquinho nos demais jogos, chegou a levantar fumaça ao faturar nove pontos seguidos, empenhou-se muito até a rodada final. Mas ainda assim chegou lá já com a corda apertando no pescoço, precisando de uma improvável combinação de resultados que excluía o empate na partida vital, da qual era o mandante. A cartolagem convocou os lisboetas a apoiar o time, reduziu preço dos ingressos, sorteou brindes. Uma famosa cantora – regiamente paga pela Federação -- rebolou a bunda num show meia-boca antes de o apito inicial soar, e durante o intervalo. As poucas testemunhas masculinas que atenderam ao apelo da diretoria, insensíveis, babaram aos protestos das mulheres que gritavam contra o que viam e classificavam como “rapariga sem-vergonha”, ao passo em que tentavam tapar os olhos dos piás. Um vira-lata sarnento, que ninguém soube como adentrou no estádio, pôs se a perseguir um gato gorducho que estava de bobeira pelas arquibancadas, lambendo os beiços por uma pomba. No encalço do bichano, o cachorro derrubou a caixa de isopor de um sorveteiro e quase levou o próprio a nocaute.
 
Cara a cara com o mito
 
Foram os últimos deleites antes do sofrimento dos torcedores, que enfrentariam um duro teste para descobrir se tinham coração forte. Vencendo por 1x0, o Real Lisboa cozinhava o galo já desde os 35’ da etapa inicial tentando manter o placar salvador; nas outras partidas todas as nossas senhoras invocadas pelos torcedores estavam de plantão: tomava bolas nas três traves e nas forquilhas, tirava a bola em cima da linha, escapava do empate com o gol escancarado. O ponteiro começava a dar a penúltima volta no relógio, o milagre estava prestes a se consumar quando o centroavante do Grêmio Batoré recebeu passe açucarado na área e deu um “come” no goleiro Casijas. Quando iria tocar para o balaio, levou um gancho de mão no pé de apoio. O árbitro, bem colocado, não pipocou: apontou a marca da cal e ainda fez valer a regra, mandando o faltoso para o chuveiro.
A expulsão obrigaria o treinador a colocar em campo o reserva da posição, se desgraça pouca não fosse bobagem! As três substituições já haviam sido queimadas para reforçar a retranca, e, sem saída, o treinador pediu ao capitão Oziel para achar entre os colegas quem encararia a fria de tentar defender a cobrança da penalidade. A maioria, claro, tirou da reta. CR topou, pôs as luvas e, humildemente, posicionou-se sobre a risca da morte para tentar a façanha de evitar o gol de empate. Os torcedores que estavam por perto da meta, mais pelo inaudito da situação do que pela fé que botavam no maior pereba do clube, correram para trás do gol, queriam ver o mais de perto possível a caveira daquele condenado. “Como este gajo conseguirá pegar pênalti, minha Nossa Senhora de Fátima, se nem é capaz de cobrar lateral?”, gritou um torcedor. Outro, em resposta, bêbado, devolveu:O CR defende! E vou entrar no campo depois para dar um beijo na boca dele!”
 O zagueiro Júlio Jurema, que já contava mais de cinquenta gols batendo pênalti, sem jamais ter errado um ao longo da carreira, eficiência que já o mitificava, foi incumbido da cobrança. O quarto-zagueiro batoréense era dono de um petardo desferido pelo pé esquerdo que de tão potente já chegara a rasgar redes e nem sequer distância costumava tomar para os tiros. Ignorando patéticos apelos dos adversários para que fingisse errar o chute, avesso à chuva de chinelos, de sapatos e copos descartáveis com conteúdos suspeitos que desabavam sobre si, JJ disparou o míssil em direção ao canto direito, batendo à meia altura uma bola que tinha tudo para ser indefensável. Tinha, pois num voo espetacular, o improvisado arqueiro desviou a pelota a escanteio. Coberto pelos companheiros que correram para abraçá-lo, Cristiano Reinaldo, ainda no solo, estendeu-se na grama, de braços abertos a olhar para o céu, curtindo a alegria e agradecendo a Deus. Desconfiado, o manguaceiro mirou a garrafa antes de atirá-la longe. Só deu fé que não estava sendo enganado pela bebedeira ao ser cobrado o córner. Abraçando o cão invasor, vibrou mais uma vez quando a zaga isolou novamente o perigo, mandando a redonda para as arquibancadas, de novo pela linha de fundo. A brazuca, única que os gandulas ainda não tinham feito evaporar, caiu perto dele e, enfim, a torcida resolveu colaborar, retendo-a o quanto pode. Sua Senhoria ainda fez teatrinho batendo os dedos no relógio, mas não bancou a besta. Esgotados os quatro minutos que ordenara de acréscimos, apontou o centro do gramado. Fim da epopeia, o Real Lisboa assim manteve honrosamente a vaga na elite. 
CR ajoelhou-se e fez, pela enésima vez, meio zonzo, o sinal da cruz. Ouvia gritarem o nome dele de todos os setores, mas sentia-se tão em câmera lenta que custou a se por de pé. Quase meia hora depois, quando enfim chegou ao vestiário, estava só de cueca -- e olha que, por pouco, não ficou tal e qual Adão, pois o pau-d'água insistiu em levá-la também como troféu e só a muito custo foi removido por policiais -- não sem lascar um tremendo beijo na boca do ídolo. Eleito pela imprensa o melhor em campo, CR faturou desde celulares com banda larga badaladíssimos a estojos de cosméticos. De quebra, pela primeira vez na vida, esteve em vários programas de televisão exibidos naquela noite. Numa das mesas redondas soube ao vivo, por intermédio do presidente do Real Lisboa, que teria o contrato revisto já no dia seguinte, e passaria a receber o dobro, além de uma placa de prata. Feliz com a situação, o vilão que virara herói ainda teve espírito para soltar uma anedota no ar, brincar com o dirigente com quem falava pelo telefone: só não toparia a renovação se outro clube propusesse levá-lo para debaixo dos três paus.
 
 

Barulho d´água (O fim)

O fim
Amou pela última vez nem sabe quando. A traição da mina não sai da cabeça dele, literalmente. Perdeu o melhor amigo baleado numa emboscada. O intrujo dançou na mão da "Cinza", não dá mais para fazer aquelas lanças. Para piorar, a grana do bico na obra continua promessa (“Será que estão me enrolando?”). O derradeiro cigarro do maço virou bituca, se der o trocado no paratodos não o terá para o de comer. Ou para aquele trago (“ou pra marola...”). A noite está chegando (“Esta garrafa só tem meia dose!? Será que estão me roubando?). A barriga ronca repetidamente, e o seu Zé da quitanda anda esperto, não aceita pendurar mais nada. A noite está chegando. Dico Ratão já mandou o recado (“Ou paga ou morre, tá jurado, corno!"). Os home tão dando direto geral no bairro (“Será que aquele filho da puta me caguetou?") O calor juntando moscas, lixo amontoado nos cantos. O NP sobre a mesa manchetando crime passional (“Sem vergonha, mereceu os pipocos na cara, puta, mulher à toa!"). O coração perguntando: com quem estará Suzana? A noite já caiu, é tarde, no copo a dose, agora, é imaginária. Um zumbido corta a rua (“Sirene? Talvez, será?”), estampidos rompem de novo a solidão até então só burlada pelo chilrear de um grilo ("Nova vingança, talvez... será que estão me chifrando? Hum, e se deram meu barraco?") Passos apertados e apressados nas imediações. Cães latindo, nervosos. Tremedeira. Delírio. Olhos fechados, um corpo ( “ahhhh,, Suzanaaaaa, huummm, não, não vou pagar aquele rato, que ele se foda!, Teresa, hum, hum, hã, hã, Suzanan, Suzanan, ai, ai, filho da puta, eu é que vou te dar baixa, Suzanan, ai, ai, Suzanan, ah, hã, hã, aaaaaaahhhh, ai, ai, ai, ai, portuga sovina, enfia no rabo tua ... Suzana, ai,ai tesão, quitanda de merda, gostosa, gostosa, cachorra, potra, aaaah, hummm, babacas, aaaahhh...) Um leve choque, breve arrebatamento, alívio... Vazio... Violentas batidas na porta, taquicardia... A garrafa vazia. O maço de cigarros vazio. A carteira vazia. A alma vazia, mas em enlevo, no tambor, só uma bala. Novo estampido. A arma, agora, também vazia...

Barulho d´água (O menino magricela)

O menino magricela
Era uma vez um menino magro, ou melhor, um fiapo, bem magrinho. Era tão mirrado o coitado que, dependendo da ventania, precisava segurar-se em algo, num poste, numa cerca, no que fosse possível para não ser levado para longe como uma simples folha de papel. Chamava-se José Paulo, mas ninguém o conhecia, ou o tratava pelo nome. Quando queriam se dirigir a ele, por zombaria ou por costume, só o chamavam de Menino Magricela, apelido que ele ganhou cedo, dado pelo próprio pai, que num misto de carinho e de espanto, vivia dizendo «que bonitinho é meu menino magricelo». E de fato, além de frágil, o menino era bonito, parecia criança de televisão. Razões pelas quais, quando entrou para a escola, passou a ser o alvo da chacota de outros moleques -- que tiravam muito sarro dele, inventando outros apelidos, como «pau de virar tripa», «saco de ossos» e «pipa sem vareta» -- e ainda o centro das atenções das meninas --que suspiravam só de vê-lo passar. Nem mesmo os professores, inclusive quando faziam a chamada, pronunciavam José Paulo. «Menino Magricela?», perguntavam. «Presente, tia», respondia o garoto, automaticamente. De tanto escutar o apelido, já se acostumara. Aceitou, igualmente, sem nenhum complexo, a magreza. E de tal forma que passou a não dar mais bola nem para as piadas, nem para as alcunhas engraçadas que nele colocavam. Já os gracejos femininos e as propostas que recebia das garotas, embora o deixassem bastante feliz, também intimidavam-no um pouquinho -- o que as obrigava a tomar as iniciativas, afastando às vezes o arredio galanzinho.
Num certo dia, a caminho de casa, após a aula, soprou um vento muito forte e pegou o Menino Magricela desprevenido. Sem ter onde se segurar, ia sendo arrastado para não se sabe onde quando, no meio do caminho, chocou-se com nada mais nada menos que Maria Belinha, a mais cobiçada garota da escola. Gamada no guri como as colegas, Belinha quase desmaiou de felicidade ao ver que ele, literalmente, caíra no colo dela. «Puxa vida, desculpe-me por este encontrão, foi o vento que me carregou», disse Magricela, vermelho de vergonha. «Ora, que é isso, você não teve culpa não, sei que o vento trouxe você até a mim, quero dizer, até aqui, então, tá desculpado!», respondeu Belinha, emendando sem perder tempo «Mas, veja só como você teve sorte, né? Você poderia ter caído lá no meio da rua, em cima de um homem bravo, ou num espinheiro, mas que sooooorte, desabou logo em cima de mim! E olha: nem fiquei assustada, não, até acho que... hum, gostei!". «Gostou, como assim?», perguntou espantado o moleque, antes, de, no entanto, concordar «É, tá bom, de qualquer forma você tem razão. Já entrei em muita fria por causa do vento. Uma vez, cai em cima de uma tábua com um prego na ponta. Noutra, num quintal onde tinha um cachorro bravo. Até dentro do lago eu já fui jogado, ainda bem que sei nadar... Bom, mas já que você me desculpou, me dá licença, preciso ir», disse, já saindo, sem notar que os olhos de Belinha brilhavam.
A garota, no entanto, não queria perder a chance de ficar um pouco mais com o Menino Magricela. Agarrando-o pela mão, afirmou que ainda era cedo para ele ir embora e convidou-o para tomarem um sorvete num carrinho que ela conhecia, pertinho dali. Magricela, meio sem jeito, agradeceu, mas informou que não poderia ir, desculpando-se por não ter dinheiro. Belinha, porém, lembrou-o, esperta: ela convidou, portanto, pagaria pelos sorvetes. Percebendo que ficara sem jeito de negar, José Paulo cedeu, não sem alertar que precisavam ser rápidos, pois a mãe dele poderia ficar preocupada caso o garoto demorasse a voltar para casa. Prontamente, Belinha arriscou e se deu bem com uma piada: «Ah, então é só você falar para ela que o vento te levou para bem longe, bobo, por isso você se atrasou!»
Minutos depois, os dois estavam ao lado do sorveteiro. Depois que cada um chupou seu picolé, Belinha pagou e ambos voltaram a caminhar. Sentindo-se intimidado com a tentativa dela pegá-lo pela mão, Magricela tentou apertar o passo. Belinha percebeu: chegara a hora, seria agora ou nunca, sabia que não podia falhar. Com voz doce e trejeitosa, pediu para o amado segurar as pontas mais um pouco, pois tinha um pedido a fazer. Magricela corou no ato. Pressentindo que teria pela frente, solicitou, um pouco gaguejante, que Belinha falasse o que queria logo, estava ficando ainda mais tarde em relação à hora na qual deveria voltar da escola e, além do mais, poderia não ficar bem caso alguém os visse ali, juntinhos. «Então você está com medo de que nos vejam juntos, é? Será que você tem medo que digam que nós estamos, assim, namorando?» José Paulo ficou ainda mais enrubescido, esbugalhou os olhos e, com as pernas bambas, tentou explicar que não era bem aquilo. A confusão do garoto só deu mais munição para Belinha. Percebendo-o nas mãos, falou sem cerimônia: adoraria se pensassem que ambos estivessem namorando, o que deixou o garoto mais envergonhado. “O que se passa contigo, meu magrelinho, qual a razão de tanto medo de mim, hein, ser magro por acaso deixa você encabulado? » «Não, não é isso não... é que eu, bem... é que eu nunca namorei antes!»; «Ora, e daí, para tudo tem uma primeira vez, e eu também ainda não namorei ninguém, a gente vai aprender juntinho! », falou Maria Belinha, sentindo o coração aos pulos. «Mas você nem me conhece direito, será que não é melhor a gente conversar um pouco antes, sei lá, pedir pros nossos pais...»; «Que nada, não precisa, é só você dizer que topa e pronto, ou melhor, é só você me dar um beijo bem aqui, na minha boca, que o namoro começa!», continuou a garota, esticando os lábios em direção ao Menino Magricela, já de olhos cerrados. Sentindo-se flechado pelo cupido, experimentando lá no fundo uma estranha, mas agradável sensação de calor, José Paulo também fechou os olhos e decidiu beijar Belinha. Ambos tremiam de emoção, mal respiravam. Os lábios estendidos quase já se iam tocando quando soprou outra ventania. Como uma pipa taiada, o Menino Magricela, de novo, foi arrastado para longe. Belinha tentou alcançá-lo, mas sem pernas para acompanhar a lufada, desconsolada, sentou-se no chão, onde, com cara de tacho, ficou imaginando se o beijo do Magricela era tão gostoso como o sorvete de baunilha.

Barulho d´água (Saia-justa)

Saia-justa
(O filho, quebrando o silêncio na sala, deixando de lado o carrinho:)
-- Pai, o que é noite furada?
(O pai lendo o jornal, sem tirar os olhos da notícia, vago:)
-- É uma noite sem estrelas, meu filho...
(Um hiato sem palavras, nem ruídos, silêncio de novo, por alguns segundos:)
-- É?
(O filho de pé, olhando profundamente para o cara, a meia distância:)
-- É!
(Novo intervalo sem palavras, nem mosca se ouvia, mas logo voltam as perguntas:)
-- E o que é noite profunda?
(O pai começando a se sentir na parede, até já meio estorvado, contudo, ainda desdenhoso:)
-- É uma noite que demora muito para amanhecer, ôô, guri, cada pergunta!
(O menino saindo do canto dele, aproximando-se da cadeira, entre surpreso e insatisfeito, com dóceis olhos de soldado de pelotão de fuzilamento:)
-- Igual à noite que a gente dorme e não acorda mais, é, pai?
(O tal já com um olho na criança, o outro ainda no artigo, entortando a boca:)
-- Pode ser, pode ser...
(O bambino já escalando uma das pernas, implorando ser içado colo acima, ares preocupados:)
-- Pai, e... se um dia eu dormir uma noite profunda, o sol vai me acordar quando for amanhã, não vai?
(O pai meio desconcertado, confuso, nariz já ponta a ponta com o do filhote:)
-- Vai, sim, meu anjo, o sol nasce todos os dias...
(O fazedor de saias-justas com os braços enrodilhados ao pescoço do sujeito, cabeça afundada no peito dele, cravando ainda mais fundo:)
-- Mesmo quando a gente vira estrela, pai?
(O pai, antes tarde do que nunca, fechando o jornal, coçando a cabeçorra, antes de balbuciar "Minha Nossa Senhora!, respondendo, ainda sem pensar:)
-- Também. Eu acho...
(O porquê-o-céu-é-tão-alto? sentadinho no colo, perninhas a balançar no ar, na transversal em relação às do pai, corpinho levemente inclinado à frente, as duas mãozinhas partindo do queixo espalmadas no rostinho, olhar fixo no chão, cujo piso forma uma flor negra:)
-- E se eu virar estrela numa noite furada?
(Sem resposta. O pai apenas beija a nuca do moleque, acaricia os cabelos dele, solta um suspiro profundo, e sentindo-se gostosamente derrotado, pensa, mas não exclama. "Danadinho, esta me pegou!")

Barulho d´água (Diga depressa)

Diga depressa
Diga depressa sem mais isso, sem menos aquilo:
qual é a diferença entre jacaré e crocodilo?
Com quantos paus de faz uma canoa,
como se chama o masculino da taboa?
O sobrenome da laranja todos sabem,
mas, onde fica mesmo... Tolizerdaben?
Rapidinho, sem deixar a bola cair,
faça de cabeça uma conta de dividir
na qual o resultado seja quarenta,
e o divisor, o dobro, oitenta.
Metro começa pelo centímetro
quem souber diga: o que é acetímetro?
(uma dica: vinho, mas nem precisava,
para quem sabe o adjetivo pátrio de Bradvilavskava).
Qual era geológica antecede o Quaternário?
De quanto em quanto tempo sai um hebdomadário?
Por fim, se é côncavo o lado fundo da colher
acabe o poema com rima que não seja mulher...

Barulho d´água (Troféu leitoa)

Troféu leitoa
 

 
Manhã ensolarada de domingo. Ao redor, nos barrancos, nas sacadas das casas por perto do campo do Morro do Pela-Porco, desde que os passarinhos começaram a anunciar a alvorada, não cabe mais ninguém. O Atlético do Morro enfrentará o Vai de Bico FFC (Futebol, Folia e Cachaça) em mais uma edição do tradicional clássico festivo do bairro disputado há mais de vinte anos, sempre às vésperas do Natal. A rivalidade entre ambos é histórica, mas quando os dois times se encontram neste clima proporcionam espetáculo cuja marca registrada é o flar-play; ambos já fizeram oito vezes a final do torneio municipal, registrando embates memoráveis que terminaram com quatro voltas olímpicas para cada lado. Nesta ocasião tão especial, puxadas por mascotes, as equipes gostam de juntas entrarem para o gramado, jogadores de mãos dadas. Os capitães distribuem flores para as torcedoras adversárias, depois em torno do grande círculo, jogadores, técnicos e trio de arbitragem puxam orações, pedindo a Deus que abençoe a partida e que, ao final, o melhor time saia com a vitória.
Ao vencedor, destina-se sarada leitoa, cobiçado troféu que repousa como majestosa taça sobre uma mesa paralela a uma das laterais. Ali, fica devidamente guardada por representantes de cada equipe, coberta por uma tela de pano para afastar moscas, recurso embora inútil contra os vira-latas que enxameiam e rodeiam o bicho, olhando-o a lamber os beiços.  A fêmea de suíno leva uma maça na boca e é decorada com outras frutas e iguarias, apresentada prontinha para assar. Enquanto rola a bola, “Nego Tião” vai acendendo o forno no quintal onde fica o barracão no qual a festa continuará regada a chope, caipirinha, pagode, paqueras, troca de presentes entre amigos-secretos e pratos que fazem a fartura da Vila das Flores até a noite cair, ou o último bêbado ficar convencido de que, agora, acabou de vez meu chapa, vaza que só no ano que vem!
O jogo é mesmo o acontecimento mais importante e aguardado do pedaço. É a única ocasião em que se veem todos os moradores juntos. Quem já se mudou ou trabalha longe sempre reaparece ou consegue folga. Dois meses antes já começam os trabalhos envolvendo toda a comunidade, e a campanha de divulgação. Palpites são lançados em meio à confecção de bandeiras e de bandeirinhas, as ruas próximas ao campo são limpas, todo mundo dá um trampo legal, sua a camisa para que tudo saia de acordo. Por costumar atrair centenas de pessoas, inclusive a imprensa, muito sapo de fora aparece para coachar, tenta tirar uma casquinha e aparecer sorridente na foto. Vacinados, os organizadores não vacilam. Ajudados somente pelos vizinhos, os quais se cotizam para comprar o que for necessário, sabem como dispensar patrocinadores e bajulações. Nem mesmo gambés são solicitados para dar uma geral e cuidar da segurança: o ambiente é respeitável, bem família, cordial, alegre. E ninguém bota faixa ou cartaz, distribui santinho ou faz discurso baba-ovo pedindo voto. Pretende-se um evento que transcorra sem conotações de nenhuma natureza, visa-se somente ao fortalecimento dos laços de fraternidade e de amizade, ninguém tem colher de chá ou espaço para dar recado. Mas, como quem é esperto não perde bonde...
Casamentos começaram ali, políticos conseguiram cadeiras, boleiros se deram bem tirando proveito do fato de olheiros de muitos times profissionais e jornalistas especializados pintarem para presenciar o duelo entre alvinegros e alviverdes -- o “Clássico da Paz”, como ficou conhecido depois da reportagem de doze páginas e belas imagens feita pela conceituada Escore há alguns anos. Entre os craques nascidos no Pela Porco, três já vestiram a amarelinha e mais uma legião reforça times europeus. Graças à matéria a fama chegou inclusive para duas biscas de um conjunto bem medíocre, responsável pelo agito nas redondezas e no dia da festa. Ambas assinaram contrato com uma publicação do meio erótico por um cachê astronômico. Inicialmente posaram abraçadas, apenas com as camisas do AM e do Vai de Bico. Completamente peladas terminaram o ensaio, e nem é preciso contar: todos os exemplares se evaporaram em menos de duas horas! A editora precisou preparar duas novas tiragens e na semana do jogo ainda soltou uma fornada extra. Uma das moças virou estrela de show de televisão e musa de um playboy carioca da gema que, por ter jurado entender de apito, recebeu a honra de arbitrar o clássico, chegando minutos antes do pontapé inicial a bordo de um reluzente conversível, trazendo a bordo a beldade e a mãe dele – socialite arroz de festa, que, dizem as más línguas, teria até sido amante de um ex-presidente da República. A outra dançarina também se arriscou na telinha, deu-se bem à beça e irá contracenar na próxima novela do horário nobre fazendo par romântico com um dos galãs mais cobiçados do mundo artístico – várias cornetas, no entanto, também espalham que o moço não gostaria nem um pouco da fruta. A aguardada presença de ambas na condição de madrinhas dos times, ainda mais após prometeram autografar exemplares da revista, fez aumentar o costumeiro público, e, de tabela, as expectativas em torno da partida.
Bola rolando. De um lado, o Atlético defendia invencibilidade de 35 jogos. Derrotado nos dois anos anteriores, agora reforçado por quatro vira-casacas (o zagueiro central Malega, o lateral-esquerdo Jonas, o volante Penélope, mais o centroavante Bodinho), o Vai de Bico prometia dar o troco. Rigorosamente equilibrado e disputado com extrema lealdade, o prélio prosseguia em branco quando, aos 38 da etapa final, ocorreu uma falta à entrada da área alviverde, pela meia-esquerda. A torcida alvinegra, em coro, pediu ao ponta-esquerda Meia-Sola, temido pelo chute sempre potente e certeiro, para executar a cobrança. Formada a barreira, Meia-Sola deu apenas um passo para trás. Ao ouvir o apito, soltou, então, o tradicional petardo. De tão violento, o tiro desferido fez a pelota chacoalhar o travessão do Vai de Bico, tomar a direção contrária e viajar, viajar, viajar, viajar até se aninhar na rede da meta do próprio Meia Sola! Cabeção, goleiro do AM, tentou evitar o incrível gol contra e deter a bola que mais parecia um meteorito dando, em vão, um cinematográfico pulo. O bandeirinha correu no ato para o meio do campo, mas o árbitro não validou o tento: para surpresa e irritação geral, alegou impedimento de Bodinho.
Foi então que, deixando a pose de lado, a madrinha do Vai de Bico classificou como ladrão e filho de uma que ronca e fuça Sua Senhoria. A outra miss, bem ao lado desta, não gostou.  Em defesa do namorado, esquentou uma das orelhas da ofensora. A mãe do rapaz também estava na tribuna de honra, igualmente tomou as dores do filho e deu um cola no outro ouvido da esquentadinha, depois de chamá-la de baranga. Aceso o pavio, a bomba explodiu. O pau comeu dentro e fora de campo, ninguém ficou sem se atracar com alguém. Em meio ao forfé, a mesa na qual a leitoa repousava levou uma bicuda, tudo subiu, depois foi ao chão. O sururu já durava alguns minutos quando Nego Tião surgiu ofegante, deu um teco para o ar. Por alguns instantes os ânimos serenaram, mas o jogo não teve sequência: ao perceberem o sumiço da porca, todos mutuamente voltaram a se acusar. Sopapos, voadores e outros golpes recomeçaram, cadeiras voaram, outros tiros espocaram, até repórter levou bordoada. Ao perceber que não teria o que fazer, Nego Tião guardou o cano na cinta, chutou a maça para o mato e resolveu vazar, contrariado e chorando. Atrás dos vestiários avistou uma matilha de cães, além de um gato estropiado, entre os quais estava o fiel Demolidor. Atendendo ao assobio do dono, o cachorro passou a segui-lo, abanando o rabo e saltitante, apresentando nos olhos o brilho de quem acabara de fazer um banquete.
 

 

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Barulho d´água (Camisa 11)

Camisa 11
Hábil com a bola nos pés, também driblava carros, romário do asfalto. Na véspera levara a galera ao delírio. Agora, é um corpo no contrafluxo, atrapalhando o tráfego da Ipiranga com a São João, cena nada poética. À luz vermelha, caco de vidro na mão, anunciou o assalto, mas ao invés da carteira, do motorista veio o pam! À queima-roupa! Os jornais até comentaram: era um rapaz tão moço! E ninguém ficou sabendo: ainda naquela manhã, pensara em parar, em dar um tempo. Partir para outra não estava nos planos. Antes de fechar os olhos, ouviu de novo a galera, agora não mais no campo de peladas, mas no estádio cheio, gritar, ovacionar o nome dele, despedindo-se com lenços e bandeirolas brancas do craque, malas prontas para o primeiro milionário contrato na Europa. Embarcou, sim, virou manchete. Mas deixou apenas (temporariamente vaga) a camisa 11 do Vila Joaniza FC.

Barulho d´água (Ilusão de ótica)

Ilusão de ótica
A imagem da pomba pousada nos fios, refletida no pára-brisas, é apenas ilusão ótica, assim como é ilusória a paz nestes centros urbanos. No interior do mesmo carro está a prova nada virtual, abatida com um tiro certeiro ao tentar escapar do anunciado assalto.

Barulho d´água (Três Marias)

Três Marias
Três Marias, iguais em tudo, e ao mesmo tempo tão únicas. A Maria vaidosa, de olhos arregalados, sempre atentos, lambusada de batom cobrindo os lábios carnudos pendurava nos pulsos uma profusão de pulseiras, descolava um andar malicioso de quem queria encontrar uma paquera legal mesmo quando ia à padaria. E a Maria chorona, sempre a ralhar contra as mazelas da vida?
-- O que que há, dona Maria, onde dói?
Doia-lhe tudo. A infância sob rabo de tatu, o casamento infeliz, os filhos natimortos, e os filhos vivos que já tinham nela uma mariamorta. Tem ainda a Maria casadoira, típica moça debruçada no batente da janela, mas que já desistiu de ter um príncipe encantado, e que está a espera dela
nalgum canto do mundo. Hoje apenas vive seus dias, já não mais sonha, não lamenta mais o passado. Espera por amparo praticando sua inesgotável bondade, às vezes com incrível azedume. Três Marias, iguais em tudo. Iguais a tantas outras, e ao mesmo tempo, tão únicas.
-- O que fazes ai, debruçada à janela, Maria: apenas vês o tempo passar?
-- Não, vejo passar a boiada enquanto sirvo de moldura para o retratista que passeia por estas empoeiradas bandas ...

Barulho d´água (Oração ao ontem)

Oração ao ontem
Oro aos postes e às luminárias
aos muros pichados
aos portões e portas entreabertas
ou fechadas
aos cães
eu oro à penumbra dos caminhos
às esquinas
aos becos
à brisa noturna
e ao sol do meio-dia
ao brilho das estrelas mortas
sem deixar de orar ainda
às chaminés tortas
eu oro ao som dos meus passos
ficando para aquém de mim
eu oro ao silêncio das madrugadas
aos galos que nestas horas também oram
às cinzas
de todos os cigarros que fumei
ao animado
e ao inanimado
às pedras
às flores
aos riachos
ao espaço
ao anarquismo
à geografia
à matemática
à música
e a todas as formas de arte
ao jornalismo
dispensando apenas preces
à TV
e se de tanto orar
acabo redundante
ergo orações aos deuses
aos santos
aos orixás
aos caboclos
aos pretos- velhos
aos demônios
e aos mestres orientais
para que estes
enfim tragam-me
você
ainda que não seja para sempre
mas a partir de ontem

Barulho d´água (Rumba)

Rumba



A poesia tocou minha campainha numa fria manhã de domingo. Atendi, ainda de pijama. Já dentro de casa, ela, louca, quis dançar rumba comigo. Contei que não sabia os passos e que, por ainda estar sonado, não seria par perfeito para tal divertimento. Deu, então, um riso estrondoso, daqueles que toda a vizinhança cai da cama, e, entre me caçoando e me advertindo, com as mãos à cintura, olhando-me fixamente, explicou-me que para bailar não é preciso leveza, a não ser a d'alma, basta ter imaginação e soltar-se que a ginga incorpora no corpo que nem santo quando baixa em terreiro. Percebendo minha insegurança, afirmou que tudo bem: sairia assim que eu servisse a ela uma xícara de chá de frutas silvestres. Deixaria um diagrama com alguns toques básicos, e, como quem faz uma ameaça, jurou, dedo em riste: retornaria no domingo posterior, esperando que eu tivesse aprendido, ao menos, a ter autoconfiança, pois o disco ela mesmo traria. Servi a infusão, com três pingos de aspartame, como ela havia exigido, acompanhada por duas bolachas integrais, com quase nada de geléia de morango que eu comprara uma semana antes em Monte Verde -- "preciso manter este corpito de bailarina espanhola, cabrón!", falou-me toda carmem de sol, assim, lânguida. De fato, como prometera, vazou em seguida. Eu juro, não estava sonhando. Hoje já é sábado, novamente. E eu ainda não estudei a lição....

Barulho d´água (Meu guerreiro)


Meu guerreiro
(inspirado em desenho de e para Jorge Henrique)

Um guerreiro que atravessa o tempo,
se veste em todas as cores,
herói astuto e sempre atento,
capaz de suportar todas as dores,
cujo aço traz afiado e pronto,
mas que por onde pisa gera flores.
Cavaleiro de armadura leve,
homem de rir e de verter pranto.
Espiríto de menino, alma suave,
abundante em coragem e em amores...

Barulho d´água (Dia-a-dia das mães)



Dia-a-dia das mães
Toda mãe é um pouco fera: para criar um filho, hoje em dia, deixa a toca, e, se preciso, vira mesmo bicho.
Não raro tem de enfrentar marido canastrão, cantada de chefe pitbull, papo chiclete de colega garanhão.
Soma-se à correria cotidiana a selva chamada trânsito -- se tiver de ônibus ou naqueles dias, pior.
Não basta ter peito: é preciso ter leite no peito, ser mesmo uma tigresa, arreganhar as presas, dar patadas de unhas bem abertas, sem dó, pois só assim afasta os perigos.
Ter instinto acurado para pressentir o mal, ou encontrar a cura,
e usar muito a língua para lamber a cria é indispensável.
É neste gesto de afago que ela imprime nos pelos do tigrinho uma marca que nada apagará, o sinal de que será presente mesmo quando ausente, do amor que tem e que ensinará ao filhote ser ele mesmo, sentir confiança para brincar por mais selvagem que a vida venha a ser, de rolar o mundo entre as patas, alegremente, como se ele fosse uma bolinha de papel...

Criei este texto para um cartão em homenagem às minhas amigas-mães e a minha própria em 2006, quando a data caiu no dia 13. Neste ano caiu em 14 de maio, mas o texto segue atual, e a imagem também, já que retratam muito o dia a dia delas...

Barulho d´água (Abc do abraço)


Abc do abraço
abraço é apoio/abraço é bajulação/abraço é cura/abraço é desapego/abraço é esperança/abraço é fantasia/abraço é gol/abraço é hipótese/abraço é impar/abraço é jogo/abraço é lamento/abraço é medida/abraço é nostalgia/abraço é oferta/abraço é perdão/abraço é quietude/abraço é religar/abraço é solidariedade/abraço é tesão/abraço é universal/abraço é volta/abraço é xamego/abraço é zelo.
Para cada letra abraço pode ter um, ou mais significados. Mas para se firmar apenas em três, abraço é fundamental, abraço é imprescindível, abraço é sinônimo: de tudo de bom...


O texto faz parte do cartão que criei para distribuir aos amigos em 22 de maio de 2006 quando era comemorado -- veja só, até isto! -- o Dia do Abraço.

Barulho d´água (Caubói...)



Caubói, pai... amigo
Pai é um cara de sorte.
Jamais pode tirar a roupa de super-herói,
e, ainda de terno e gravata,
deve se virar para virar um bravo caubói,
tirar um conto de fadas de uma bravata,
pegar pela mão e mostrar o norte...
Ser pai, enfim, é tarefa dura.
Exige a realização do impossível,
para tudo saber a cura,
amar de forma inesgotável e infalível,
e mesmo quando o piá assumir o umbigo,
continuar sendo aquele velho melhor amigo.

Este poema foi feito para um vereador que eu assessorava em 2003. O objetivo era enviá-lo aos cadastrados no Dia dos Pais, em forma de cartão, mas no gabinete dele e ele, infelizmente, não valorizavam boas idéias...

domingo, 25 de novembro de 2007

Barulho d´água (Manhã de novembro)

Manhã de novembro

O Metrô avança em sua rapidez enquanto meus olhos, sentados, conseguem a proeza e dividem-se: um, sem vergonha, tateia as pernas de uma loira clássica, tipo advogada criminalista; outro, passeia pelas cidades históricas, onde Cecilia cruzou com fantasmas quase duzentos anos após a Inconfidência, ainda vagando pelas ruas de pedra. debruçados nos balcões e janelas, entrando e saindo de igrejas, conspirando motins, revoltas, traições (...)

Súbito, o estômago se queixa, ronca penoso, seco, batendo com os dois dedos direitos sobre o pulso esquerdo: atendo-o, já em Osasco, e entre o mastigar, aliviando-nos, vou pensando: será que a balzaca defenderia Tiradentes, livrando-o do cadafalso e tirando-o da história? A poetisa mataria a fome numa padaria sórdida? O alferes procuraria dar no pé se em 1789 existissem trens subterrâneos? Seria preciso a rainha louca decretar para que eu ficasse esquartejado caso traísse Rosa, minha pátria? (...)

Soa lá fora uma buzina -- típico sinal do mau-humor fin-de-siècle de infraternos homens, de uma era que já avança para o final, carcomida pela pseudo-liberdade neoliberal, com nada, nada de igualdade social (...)

Peço a conta: a caminho do caixa, sem julgamento, sumário, enforco a promotora ainda refletida na menina direita, meto o livro já fechado no picuá, pago tudo com dois níqueis de R$ 0,50 -- displicente, esqueço o troco (se fosse o cobiçado metal amarelo das Geraes matariam por ele, morreriam por ele) --, limpo os farelos da boca com o dorso da mão, desço a rua Primitiva Vianco em passos acelerados, metr(ô)ificado humano-coisificado e, já de volta à vaca-fria, tomo apenas o cuidado de bem abotoar o puído casaco que me faz parecer ter vindo do final dos setecentos, armadura para enfrentar o imprevisto inverno, os espíritos que me cercam e seguem, a garoenta e temporã manhã de novembro fria...

Barulho d´água (Salvamento)

Salvamento
Quem faz um poema salva-se de se afogar.
Este poema é uma releitura minha para um texto do Mário Quintana.

Barulho d´água (Luas trocadas)

Luas trocadas
Com minhas luas trocadas --
boa tarde, ao invés de bom dia --
leio incrédulo,
sentindo uma dor tonta
que não dói nem pára de encher o saco:
-- Adeus, Maluco Beleza!
Que porra!
Sinto então vontade de chamar um avião,
e ir para o céu alegre
porque, agora sim,
aquele porto deve estar bom,
uma verdadeira sociedade alternativa,
sem ideologia,
e, John, com o perdão do trocadalho,
religião também,
uma verdadeira sociedade alternativa,
no mínimo muitas vezes melhor,
que esta terra que já parou
há mais de dez mil anos atrás
de amar e sonhar,
que este Brazil alugado,
e que agora (suprema cagada)
ameaça collorir-se...


E colloriu-se, todos sabem. O poema foi escrito no dia em que Raul Seixas morreu. A gente ia votar para Presidente depois de quase três décadas e um tal "Caçador de Marajás" estava na parada naquela época.

Barulho d´água (Aviãozinho de papel)

Aviãozinho de papel
Nem sempre é preciso escrever algo legal num pedaço de papel para que ele registre e façamos alguma poesia. Quem já atirou pela janela uma folha em branco, dobrada em forma de aviãozinho, sabe do que estou falando...
Agosto
A verdadeira poesia de agosto
mês de mal agouro
de cachorroloco
mas também
véspera de primavera
dos mais belos poentes
não é outra
senão esta descoberta
estar contigo
seria um eterno janeiro

Barulho d´água (Rua)

Rua
Rua das guerras de turma
das viagens de bicicleta
das corridas de rolemã
dos golzinhos à noite
da data das onze -horas
balança-caixão
balança- você
dê um tapa na bunda
e vá se esconder
esconderijo
rela- rela
ajuda- ajuda
trepa-trepa
salva
pique-latinha
rua apagada
rua da constran
trilha de bois
transtornada
transformada pelo tempo
trajada de verde-oliva
metáfora de liberdade
pisada por botas
(liberdade
que era larga e longa
mas que naquela época
não existia
nem no altar da Santa Filomena)
rua cujo nome é luta
rua de tantos significados
rua que agora é apenas
mais uma rua...

Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
http://www.poesiafeitaemcasa.blogspot.com e http://www.karumi.nafoto.net, outros trabalhos que assino. A cópia e reprodução dos elementos aqui contidos sem a devida autorização, por escrito, e sem estarem negociados direitos autorais e outras questões comerciais, sujeitarão o infrator a entendimentos com a lei.

Marcelino Lima



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