sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Barulho d´água (Anjo da guarda)

Anjo da guarda
O Olaria do Nino via Novo Osasco descia a Primitiva Vianco rasgando. Desatenta, a tia que estava na calçada pôs o primeiro pé no asfalto. Quando ia baixar o segundo, a mão firme do mascate vendedor de discos piratas puxou-a de volta pelo ombro. O vento provocado pelo deslocamento do busão quase derrubou ambos. Dona Judite, pálida, balbuciou um raquítico "obrigado, Deus lhe pague!" O homem sorriu e disse apenas "não há de quê!" De noite, em casa, ela ainda tremia ao se lembrar: por pouco não deixou de assoprar as velas do bolo que filhos e netos preparam para ela naquele dia em comemoração aos 65 anos de vida, ela que desde pequena achava que histórias de anjos da guarda seriam conversa para boi dormir.

Barulho d´água (O gato Arco-íris)


O gato Arco-íris
Amarelo não entrou. Violeta também ficou fora. Mas o gato que o guri pintou no dia da volta às aulas, além de sorridente, é bem colorido. Tem até uma pincelada de cinza metalizado.E faz jus ao nome: Arco-Íris.

Barulho d´água (O segredo)





O segredo

O menino não só acredita em dragões: cria um, debaixo da cama! Bem tratado, Espada está cada vez mais roliço. Também, pudera: até iogurte de chocolate entra no cardápio do bicho! Mas em casa ninguém sabe que Espada existe, embora seja um sufoco para escondê-lo cada vez que a mãe do garoto varre o quarto. O segredo é compartilhado apenas com Roxinho, bichano de olhos avioletados que não gosta muito da criatura, da qual já levou alguns tapas e algumas baforadas mais quentes, descontadas com unhadas e mordidas no rabo pontiagudo do adversário com quem vive às turras, como gato e dragão. O pai do guri é quem anda com a pulga atrás da orelha, desconfiando de algo desde que passou o filho pela pediatra -- recorrera à doutora intrigado com o fato de as guloseimas evaporarem da geladeira, mas o guri continuar sequinho, um fiapo, quase um filé de bacon. Exames de fezes e de urina (que ela pedira por desencargo de consciência, apenas) nada indicaram, estava tudo nos trinques. A médica, por sinal, antes mesmo de receber os resultados do laboratório, havia notado o quanto, além de saudável, o pequeno paciente irradiava felicidade, soltando vida pelas ventas, nadando de braçadas na fantasia. Experiente, acabou sacando sobre Espada trocando idéias a sós com o piá, razão pela qual resolveu prescrever a receita, inédita, entregue ao pai assim que este pode retornar ao consultório. De forma caprichada, longe de parecer aqueles estranhos sinais que a turma dos aventais brancos chama de letra, não indicou vitaminas, fortificantes, nada, nada disso. Pediu somente que o menino pudesse continuar a ser criança, brincando muito e realizando tudo o que imaginasse. Mesmo que fosse preciso reforçar o estoque de iogurtes, trocar algum móvel ou objeto da casa que aparecessem chamuscados, ou levar Roxinho para o veterinário curar uma queimadurinha à toa...

Barulho d´água (Agonia)

Agonia
Telefonou para a esposa comunicando que, naquela noite, chegaria mais cedo em casa. Mas, arrependeu-se logo, comentando com o amigo de trabalho: “Minha mulher não pode ver um tempo livre na minha rotina que logo me escala”. E explicou o motivo de tanta contrariação: “Supermercado! ‘Comprar umas coisinhas que faltam em casa, benhê’”, falou, imitando-a. A lista mandaria pelo e-mail. Antes de deixar o batente, abriu a caixa de mensagem, batata, estava lá: um pacote de arroz, outro de açúcar, pó de café, margarina, leite, manteiga, três páginas de coisinhas! Calculou que até pegar tudo deixaria o supermercado entre 19h30 e 20 horas, bem na hora na qual as caixas estariam trocando de turno. Haveria filas com tempo de espera maior do que o normal até que cada funcionária estivesse pronta a assumir o posto da anterior. Respirou, relaxou, nada de mais ruim poderia acontecer com ele depois de tomar uma canseira destas! Com sorte, chegaria a tempo de tomar banho, de jantar e de sentar-se confortavelmente defronte à televisão para ver jogar mais uma vez o time do coração, latinha devidamente gelada nas mãos, petiscos sobre o braço do sofá, o gato Gamarra ao ombro. Carrinho cheio, mais rápido do que esperava, safou-se da obrigação. Já no estacionamento, notou que ventava. Uma brisa agradável, noite de meia-estação. Pensou em tomar uma cerveja na praça de alimentação, mas desencanou, queria era livrar-se do terno no qual se enfiara às seis da manhã. Fechava o portamalas quando sentiu a ponta cutucando-o às costas e ouviu a voz serena, contudo, imperativa: “Entre no carro, em silêncio, assuma a direção, faça tudo o que eu mandar!”. Tentou virar-se e falar algo. Cercado por três, bom carneiro, obedeceu, sem berrar.
Dentro do automóvel, o homem que o abordou mandava, do banco de trás, onde se sentara com um dos outros. Os terceiro seguia à frente, no banco do carona, de arma em punho, mas não engatilhada. Ao perceber que o motorista estava aflito, suava frio, o manda-chuva falou: Fique tranqüilo, nada de mal irá acontecer a você. Dentro de pouco mais de duas horas o libertaremos perto do supermercado, sem nada levarmos. É só relaxar, fazer o que a gente pedir, tudo acabara bem. Precisaremos do teu carro, mas você mesmo o trará de volta”. Engoliu seco, que puta sacanagem seria aquela? Quis falar, o do banco do carona pôs o indicador sobre os lábios e avisou, apontando para ele o ferro, “toca para onde ele mandar”. Já rodava há meia hora, recebeu ordem de parar. “Agora, presta atenção. Você será levado em outro carro, encapuçado, deitado no banco de trás, até chegarmos ao local onde tem um pessoal nosso te esperando para te ‘guardar’ até voltarmos. Mas relaxe: te dou minha palavra, nada de mal te acontecerá”.
Vinte minutos naquela agonia de nada ver até que o carro parou. Ouviu um portão pesado sendo aberto e o automóvel novamente seguir. Calculou por mais dois quilômetros por um caminho que, deduziu, seria a entrada de um sítio ou de uma chácara, pois chilreavam grilos. Quando o veículo parou, houve troca de cumprimentos entre quem chegava e quem o aguardava e teve a cabeça descoberta. Estava em uma luxuosa casa, no meio de um breu só, cercada de árvores que soltavam no ar forte perfume. Temeu nunca mais sair de lá. Tenso, acuado, angustiado, necessitava de ir ao banheiro. Um dos homens que o conduzia reafirmou que tudo ficaria bem e recomendou pela enésima vez que relaxasse, estavam instruídos para tratá-lo com cuidado. Introduziu-o, então, numa ampla sala, na qual era aguardado por um casal jovem. Cortês, educada, a moça pediu que se sentasse, enquanto o parceiro dela iria até a cozinha buscar comidas e bebidas. Esquecera-se do estômago. Ainda pouco à vontade, balbuciando, informou: precisava mais de toalete do que de matar a fome ou a sede. “Tudo bem, leve-o”, ela mandou, designando para a tarefa o rapaz que o trouxera do quintal para dentro. Notou a caminho do banheiro que nenhum dos três “vigias’’ portava armas, eram gentis como os outros que o capturaram. Entretanto, entrou mudo e saiu calado do banheiro (mantiveram aberta a porta), segurando o choro e rezando mentalmente para que aquele pesadelo realmente terminasse em breve, como prometeram.
De volta à sala, os namorados permaneciam impávidos. Viu o próprio celular, desligado, sobre a mesinha de centro. Havia também café, bolachas, frutas, pães, sucos, leite, frios, refrigerantes. “Se quiser, ligue para tua família, mas, demonstre naturalidade, nada ouse, pois, do contrário, mudaremos os planos”. Entendeu o recado, preferiu o silêncio. Passava telejornal na tevê, que ele assistiu mecanicamente. Os pombinhos, sem se importar com a presença dele, trocavam carícias. Dez minutos de intensas dúvidas, quase entrando em transe, ora imaginando o pior, ora vendo-se novamente no lar, beijando a esposa e os filhos. Sentiu uma ponta da fome, até então, anestesiada pelo cagaço. Olhou para a comida, queria laranjada, fez que iria pegar. Desistiu, engoliu seco, segurou a cabeça com as duas mãos, esfregou os olhos e depois desceu as palmas, escorregando-as pelas faces, gesto sem sentido repetido à exaustão, sentado perto de estranhos que sequer sabia se eram bandidos ou sabe-se-lá-de-qual-laia, presenciando longos e ardentes beijos, vez ou outra, obscenidades. Queriam torturá-lo? Mas, por qual razão, se em momento algum, desde ter sido apanhado, foram violentos? Ao contrário, esforçavam-se para se mostrar simpáticos! O que pretendiam, e quem seriam, então?
Vencido pela fraqueza e por uma dor que começava a latejar, queimando a barriga vazia, serviu-se de um copo de leite. Tomou-o devagar, esperando ser censurado pelo casal. Como nenhum dos dois se mexeu, e o da porta apenas assobiava, optou por duas bolachas, outro copo de leite. Quando ia comê-las, o telefone soou. O rapaz que o tirara do carro atendeu à chamada, entrou na sala fazendo sinal de positivo e deu um pulo para o alto a la Pelé, esmurrando o ar e gritando gol. Tudo sairá conforme o traçado, os demais já estavam a caminho. “Assim que eles chegarem, cumpriremos nossa palavra. Tome mais um café, dá tempo”, falou a moça, transbordando contentamento. Em pouco mais de meia hora, chegaram dois carros. O dele vinha na frente, guiado por um rapaz até então fora do grupo, sozinho. No segundo, o trio que o “raptara”. Antes de entrar neste veículo, novamente teve a cabeça coberta. O medo aumentou, fez doer os ossos. Protegido pelo capuz, chorou baixinho ao perceber que o carro partia: viraria presunto, onde seria desovado? Entretanto, conforme acontecera na ida, em certo ponto, ao lado do primeiro trio, reassumiu o volante do próprio automóvel, que logo atrás era conduzido desde que abandonaram a mansão. Perto do supermercado, novo pedido para que encostasse. Parou, os três desceram rápidos, mas o que dava as cartas deteve-se um instante. Encostou-se à janela do atordoado homem e pediu desculpas por tê-lo incomodado e o assustado. Depois, cordial, embora com um tom velado de ameaça, asseverou: Vá agora, está tudo em paz. Como nós nunca o vimos, você também não esteve conosco, certo?”. Sobre o banco de trás, o sujeito jogou o celular e um bolinho de notas de cem reais. Tremendo, mas seguro de que já estava a salvo, pegou o telefone pensando 190. “Lógico, toupeira, aparelho sem bateria!” Procurou dentro da carteira a oração do Justo Juízo Final, já quase se esfacelando. Mantinha o impresso junto aos documentos desde os quinze anos -- lembrança da mãe, que garantira: sempre que estivesse portando a tal reza, nada de mal aconteceria ao filho. “Enfim, agora que não tenho mais desculpas, darei aquele pulinho à Basílica!”, falou, olhando-se no retrovisor, aproveitando para enxugar uma lágrima furtiva. Sem ao menos procurar saber quanto de dinheiro havia no maço, ou cogitar hipóteses para a origem da grana, mais as razões pelas quais o teriam remunerado, jogou-o fora, no meio da rua mesmo, desejando que uma pobre alma encontrasse as notas. Dirigiu lentamente, soltando ufas e mastigando um misto de dúvidas e de raiva: quais eram mesmo os números da placa do carro onde o trio o levara? Ao aproximar-se de casa, viu a mulher. Ansiosa, amparada por vizinhos, de celular na mão, ela esperava-o junto ao portão.


quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Barulho d´água (Precaução)

Precaução
Pica-pau, de férias dos desenhos animados, anunciou que irá passá-las na Disneylândia. Por precaução, Pinóquio já se mandou para Patópolis.

Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
http://www.poesiafeitaemcasa.blogspot.com e http://www.karumi.nafoto.net, outros trabalhos que assino. A cópia e reprodução dos elementos aqui contidos sem a devida autorização, por escrito, e sem estarem negociados direitos autorais e outras questões comerciais, sujeitarão o infrator a entendimentos com a lei.

Marcelino Lima



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