segunda-feira, 8 de abril de 2013

Barulho d'água (A última noite de Aninha)

A última noite de Aninha (do original Aninha está a fim)
Aninha cortou refrigerante, massas, carne vermelha e o que mais ama: chocolate. Combinou com a nutricionista perder quatro quilos, enxugou seis. Não que estivesse gorda, ou acima do peso: queria apenas ficar mais atraente. Na academia, realçou algumas formas, três aulas por semana. Aos finais de semana, cumpriu o mesmo ritual: pedalar duas horas, tanto aos sábados, quanto aos domingos. E, de quebra, nos feriados.
Aninha mudou todo o guarda-roupa, gastou pelos shoppings mais badalados, passou a frequentar salão refinado, refez-se da cabeça aos pés.  Aulas de Inglês, de Espanhol, de Português, de etiqueta, de postura, de como caminhar com elegância e sorrir fatal, um enólogo particular. Decorou endereço de restaurantes vips, traçou roteiros de viagens por lugares de tirar o fôlego e ao alcance de poucos. Agora está ficando escolada em poesias -- até já arrisca uns versos, com rigor métrico, mas também oswaldianos, planeja até um livro --, e mergulhou nos clássicos. Amou as personagens de Almodóvar, considera Antonioni o melhor de todas as gerações da sétima arte, achou muito cabeça Truffaut. E concluiu que prefere a versão escrita de Comer, Amar e Rezar...
Aninha sabe que a lista de concorrentes dela é extensa, mas atualmente está apostando muito em si própria. Aprendeu com tudo o que tem experimentado e feito a também polir a autoestima, sem contar que o baralho e os demais sortilégios têm sido favoráveis e recomendaram ir em frente sem medo. Para ajudar ganhou ainda mais confiança após girar entre Paraty, Cabo Frio e Búzios e por onde deixou pegadas na areia receber e desfrutar elogios, convites, propostas, cantadas, telefonemas, mensagens, flores, descontos, presentes, músicas, brindes em taças finas, jantares, passeios de iate e muito mais. Entusiasmou-se, demonstrou simpatia, cordialidade e até afeto com os rapazes e os cavalheiros, alem de uma atrevida salva-vidas. Entretanto, em todas as ocasiões manteve-se sóbria, guardou-se para o que espera será um grand finale.
Aninha não se arrependeu de ter segurado a onda: o que está em jogo e almeja justificará quando alcançado tantos sacrifícios e renúncias, os investimentos não serão em vão. Já à véspera de retornar da viagem de férias ao litoral fluminense soube pelo telefonema de uma amiga que Leandro está sem par na dança, voltou para a pista, enfim encerrou com Alessandra o casamento que já vinha dando sinais de fracasso incontornável.  A hora da cartada decisiva ficou, portanto, bem próxima. Ainda no hotel, olhou-se no espelho, demoradamente. Neste ritual, passou as pontas dos dedos nos cabelos, simulou que os prenderia em coque, a língua roçando instintivamente os lábios apalpou os seios. Alisou a barriga, empinou o bumbum, mediu as coxas e conferiu a silhueta, observando-se de perfil, tanto à direita, quanto à esquerda. Sorriu. Então cerrou os olhos, e pausadamente respirou até se sentir leve e adormecendo, curtindo a cada expiração a própria imagem que há pouco foi esmaecendo na escuridão até reabri-los para a luz. Por fim, atirou-se à cama. Agarrada ao travesseiro dormiu sem sobressaltos a última noite antes de trazer a tona a Ana Luísa de Almeida Tavares que havia se encolhido em seu interior, que por tantos anos e sem motivos ela mesma sabotara...

Barulho d'água (Durante a viagem)

Durante a viagem
 
Sim, era só uma garotinha, ainda. Catorze, talvez, no máximo, quinze anitos. E o que posso fazer se estas coisas bolem na/com a gente? Sem contar que,  embora comportadíssima, ela estava mais do que com as manguinhas  de fora, deixando aparecer a barriguinha morena, a cintura delicadamente entalhada, ah, o umbigo. E o rabinho de  cavalo -- mulheres  com rabo de cavalo me deixam maluco --, o pescoçinho? É como estar passando pela rua e avistar da calçada, dentro do quintal bem murado e guardado por um cão feroz, a fruta que você prefere já quase  ao ponto de ser saboreada: a fome não bate na hora, mano? Queria olhar mais bestialmente, ah, queria, mas   encrenca, e ai, culpa: a Carmem, que trabalha com minha esposa e eu ainda não havia identificado, estava bem ao lado da ninfeta e poderia ganhar o lance, entregar-me à patroa e ai eu estaria ferrado. O Júlio César diria que cometi pecado capaz de me lançar direto aos tachos do inferno e envergonhar o Coisa Ruim só porque tenho aliança no dedo e barba na cara;  mas, ah, véio, espera ai que eu vá me ajoelhar no milho e pedir perdão por isso, só espera! Veja bem, para mim, a culpa é de Deus! Foi Ele quem me dotou de libido e faz correr em minhas veias, embora até há pouco cruelmente sublimadas, estas energias de macho. Por conta da fisiologia, isto é, da natureza pura e simples, meu estremecimento da cabeça aos pés, reforçado pelo entumescimento, durou o resto da viagem. E só arrefeceu quando desci do ônibus (no mesmo ponto no qual a   Carmem que, álias, nem me viu!) pisoteado pelo impacto na calçada do pé direito introduzindo-me de novo na realidade. 



Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
http://www.poesiafeitaemcasa.blogspot.com e http://www.karumi.nafoto.net, outros trabalhos que assino. A cópia e reprodução dos elementos aqui contidos sem a devida autorização, por escrito, e sem estarem negociados direitos autorais e outras questões comerciais, sujeitarão o infrator a entendimentos com a lei.

Marcelino Lima



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