quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Barulho d'água (A procissão e o cão sem dono)

A procissão e o cão sem dono
 
A procissão, como todo ano, principiou com alguns gatos pingados aos primeiros raios do sol. Como de costume, arrebanhou depois fiéis por todos os vilarejos pelos quais passou. Era gente que fluía do fundo dos vales, da beira do rio, das grotas mais longínquas, dos limites com outras cidades, das casas mais acanhadas ou das melhores estruturadas à beira da estrada de chão batido. Por onde seguia, encontrava estandartes enfeitando postes e porteiras, fitas e outros adereços coloridos ornamentando cercas e sebes, até mesmo chaminés e automóveis.
 
Com poucas horas, da ponta ao cabo, já se contavam entre cem a 150 pessoas. Até alcançar a Matriz, já passando das 16 horas, a tendência sempre fora a de atrair pelo menos meio milhar. Isto de acordo com contagens consideradas oficiais, posto que divulgadas em manchete da Gazeta com base em observações policiais e dos assessores clericais, pois de boca-a-boca falava-se, por baixo e sem admissão de margens de erro, em 1.500; o recorde, há três décadas, teria batido em 2.000, ocasião em que o arcebispo do Estado subira até a diocese para inaugurar o novo templo.
 
 (A chegada dos adoradores à praça central jamais deixou de ser celebrado com festa, estardalhaço, e vivas. Mesmo em 1973, quando choveu torrencialmente o dia todo e um dos córregos que cortam o percurso transbordou, rompendo cordão ao meio e arrastando consigo dezenas de corpos depois de arrebentar a frágil ponte, houve queima de fogos. Quermesse, bandinha ocupando o coreto, palhaços, sorteios e outras formas de entretenimento completam a oferta de atrações que ano a ano ganham concorrentes e novos serviços. A convivência, entretanto, é pacífica, o espírito que reina é mesmo o de devoção, de respeito, de paz. Quem não consegue lugar dentro da igreja se alegra em assistir à missa pelos telões [cortesia dos donos do supermercado local], com a vantagem de que entre um comentário do sermão e um ato litúrgico pode-se degustar um saquinho de pipocas. Com muita descrição, até um vinho quente desce bem.)
 
  
Nesta presente edição, em determinado ponto, ainda a boa pernada do destino, um vira-lata juntou-se aos caminhantes. Obstinado, peregrinou de ponta a ponta várias vezes, abanando o rabo. A alguns farejou, em outros colou e os seguiu por breve tempo, sempre a suplicar nos olhos por um bocado de farinha, ou um teco de cuscuz. Talvez estivesse à procura do ou de um dono, cansara da vida pelo meio do mato, dormindo em tocas e em buracos, debaixo de árvores. Apesar do privilégio de curtir estrelas e luas, ora ouvindo a cantoria dos sapos, ora o miado de uma pintada, havia as noites frias durante as quais nem as corujas, ou os morcegos, ousavam desafiar. Um lar viria a calhar, ainda mais se equipado com lareira, ou, vá lá, um prosaico fogão à lenha. Contentar-se-ia com uma polenta rala regada a caldo de frango, uma travessa de leite, um corte menos nobre da mesma ave, um tapete roto na varanda para esquecer a carcaça e relaxar. Quando não estivesse a pestanejar, ou a curtir o tinir das cordas da viola no alpendre dedilhando "Corixo", poderia ser útil combatendo eventuais invasores do galinheiro ou do chiqueiro: lobos nunca lhe meteram medo, gambás não o atordoaram jamais, e sabe muito bem como escapar do bote dos cascavéis e expulsá-los para longe da área delimitada pelos mourões nos quais mija. Acompanharia o senhor até e durante a lida com a lavoura, ajudaria a apascentar o gado, latiria para comunicar a aproximação de visitas, e, ai sim, iria botá-las a correr caso fossem indesejáveis.
 
 Durante o vaivém, o cachorro ganhou, sim, alguns mimos. Porções da merenda que o povo trazia em mucutas lhe adoçaram os beiços, um carinho aqui ou acolá serviu para compensar as bicas que tomava dos mais exaltados e maldosos, os xingamentos para afastá-lo, os "passa, Totó!" grunhidos com ódio, paus, bengalas e pedras nas mãos. Ah, e pensar que estes impiedosos estavam ali a rezar e a entoar ladainhas por curas e outras graças, inclusive o brutamontes que rangeu os dentes com tamanha ferocidade que o fez julgar ser quem o agrediu o bicho, não ele que se desloca em quatro patas, característica que depois daquele coice por pouco não perdeu, ficando sem o par traseiro e obrigado a viver o resto dos dias deixando sulcos no solo de tanto arrastar a bunda.
 
 O golpe, ou mais aquela pancada, seria a última que suportaria, convenceu-o a mudar de estratégia. Não mais transitaria entre as pernas dos fiéis, iria doravante completar o percurso junto àqueles vestidos de aventais brancos e estolas roxas. O minúsculo grupo suportava aos ombros um pedestal, ao centro do qual repousava uma imagem. Ao chegar à cidade estava fatigado, e o reboliço do espetáculo pirotécnico que de repente se misturou aos primeiros acordes de instrumentos o assustou. Ainda assim, manteve-se junto ao andor. Fotografado, apareceu colorido em seis colunas na capa da edição especial da Gazeta, nas imagens da repetidora que captava os eventos por aquelas bandas, virou assunto e ganhou repentina, mas efêmera fama.
 
 Um sacristão o encontrou na manhã seguinte, vasculhando restos de comidas pelo chão. Pernoitara dentro da barraca de pastel e apresentava a cara amarrotada de sono, mas foi prontamente reconhecido pelo homem, que levava jornais dobrados debaixo de uma das axilas, pães e leite. A partir de então, "Totó" tornou-se Matilde. O nome feminino para ele, um macho, jamais trouxe dissabores, sobretudo por aludir à caridosa Padroeira cujos bens a rica mulher distribuiu aos pobres e aos doentes, mais de uma vez em vida. O sacristão o amava. E morava num sobrado defronte à praça, donde, da varanda, uma vez por ano, deitado numa macia poltrona, o cão podia curtir os crisântemos espocando no céu e aquele formigueiro lá embaixo...
 
 
7 de novembro de 2013 às 17:02
 


quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Barulho d'água (Maria Helena)

 
 
31 de outubro de 2013 às 10:27

Barulho d'água (Embarque)

Embarque
 
Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, e, assim, sucessivamente, até as pálpebras, finalmente, fecharem-se. Nem sei em que altura da contagem, de repente, o sono me recolheu da plataforma. Ah, benditos pingos de chuva que repicando na lata esquecida sob o novo beiral puseram-me a bordo do trem. Se não tinham lã, bem me lembro: um a um várias vezes pularam a cerca entre o lado de cá e o de lá...
 
 
1 de novembro de 2013 às 20:31

Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
http://www.poesiafeitaemcasa.blogspot.com e http://www.karumi.nafoto.net, outros trabalhos que assino. A cópia e reprodução dos elementos aqui contidos sem a devida autorização, por escrito, e sem estarem negociados direitos autorais e outras questões comerciais, sujeitarão o infrator a entendimentos com a lei.

Marcelino Lima



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