sexta-feira, 15 de março de 2013

Barulho d'água (Haicailinhas)

Haicailinhas
(atualização em 15 de março)
 
Girassóis no quintal--/O nome da rua numa tábua/escrito à mão.
Meu doce lugar--/Até as nuvens se demoram/quando passam por lá.

Meu galo canta-/Tão alto e tão bonito-/que até o sol se levanta.
O gato se espreguiça ---/Da caixa de maçãs/sobem duas orelhas.
Ah, noite sem fim-/O gato não para de miar-/eu não paro de mijar...
Pequena flor branca--/Verga com peso de abelha,/quando venta, dança...
Cada vez mais perto,/o burburinho do rio--/enfim o caminho!
A bola rola... /Da família quero-quero,/apenas uma pena...
Torre de alta tensão./Do lado de cá da cerca,/um jardim de cosmos.
Restos de feira-livre --/Com a cabeça de um peixe,/um gato cruza a rua.
Toca nove vezes/o sino da capelinha --/o trem responde três.
Na quarta volta/já são três sapos cantando/na segunda curva.
Manhã de outono –/há três dias no varal,/o tênis pingando água...
Casa branca,/batentes azuis./À porta, marimbondos!
Casinha na periferia,/cana em ponto de corte,/gatos no quintal...
Andorinha, andorinha:/mesmo não sendo feriado/vou passear à toa!
Em toda a casa/só a cama desarrumada--/gatinha nas cobertas.
Ao colo do pintor,/o gato segue com os olhos/o vaivém do pincel.
Tarde de verão --/entre o voo de dois pardais,/ecoa um trovão.
Tarde chuvosa --/aos trovões misturam-se/sons de uma serraria.
Tarde chuvosa --/na rodovia, lá longe,/acendem-se as luminárias.
Caixote de peras/com alguns cortes e tintas/casinha de tuim
Em papel rosado/prediz um novo amor/a ave do realejo
De varal em varal/o cambacica vai pulando/até chegar ao néctar.
De cordão invisível,/e pingente de estrela,/o colar da lua...
Sopa de estrelas--/cortado como a lua,/o pão que acompanha.
Uma folha cai--/à luz do sol, amarela.../quando gira, verde...
Vão aonde eu vou/não contam nada a ninguém--/ah, meus sapatos...
Meu velho sapato--/ainda guarda segredos,/e não erra caminhos.
Em sonho, voo/ e, nos fios elétricos,/brotam cerejeiras.
Bem-me-quer, mal-me-quer --/o vento desfaz a nuvem/em forma de flor.
Prendedores coloridos,/roupas secando ao sol./Pousa um beija-flor!
Morro de Lindóia --/parecem feitas de pedras/ as vacas brancas que pastam.
Chegada à Jaguariúna--/boi que não está na linha,/segue o trem.
Carro do queijo,/para provar, ninguém paga./E pode ser com doce!
Oh, gato: como podes/divertir-se tanto assim/com um bago de uvas?
Clarão ao longe/leve batuque na janela--/ai vem chuva boa!
Grandes, amarelas.../As pinhas da minha infância/não têm similares.
Rosa lá em cima./Lá embaixo, a molecada/esperando pinhas.
Quarenta caroços --/E ainda está intacta,/metade da pinha!
Buraco na parede,/ passa o ar, passa a luz.../... ai, ai de mim, menina!
Chuva violenta,/entre galhos e fios caídos,/salvou-se a violeta.
Noite de geada —/recados de namorados/no vidro do carro.
Sol de inverno--/Uma calçada repleta,/outra vazia.
Passeio de férias –/Caminho nas ruas da infância/agora de sapatos.
Tudo fica quentinho/onde ela se deita --/gata do Jorginho.
Ah, que viagem! --/ao descascar a laranja,/várias voltas ao mundo...
Estrelas e luas –/a noite, bem quentinhas,/num prato de sopa.
Kombi da pamonha –/tudo quieto, de repente,/no prédio em obras.
Mangueira frondosa --/com seus uis e ais,/prima maravilhosa!
Chuva passageira--/flores de jacarandá/no dorso do cavalo.
Até meu destino/ainda tem muito chão/ -- Ah, pé de goiaba!
Troca na cidade,/leva milho, traz café./Um carro de boi.
Os donos nem saíram,/mas os gatos já subiram,/e dormem na mesa!
Domingo de sol,/toda a família no gramado--/bando de pássaros pretos.
Na fonte da praça,/um mergulho, um voo curto.../bem-te-vi toma banho!
Chuva a caminho./Mesmo apertando os passos,/o vira-lata atrás.
 

quarta-feira, 13 de março de 2013

Barulho d'água (Cidadezinha)

 

Pintura de Sullivan Gaspar retrata cena de Rio Manso região de Itajubá, ao Sul de MG

 
(reedição de 14 de novembro de 2007)

Cidadezinha

A igreja do santo padroeiro no centro da pequena praça.
Um prédio antigo, sede do Paço Municipal.
Mais dois ou três edifícios públicos, misturados ao pequeno comércio.
escolinha lá no alto do morro, caminho para o cemitério.
Poucas casas de portas altas, coloridas e de janelões, com uma simpática vovó numa delas.
A mesma rua que entra, é a que sai.
Distrito policial não tem.
Clube, também não.
Bancos, para quê?
Um cavalo amarrado numa árvore ruminando o tempo.
Cães magrelos perambulando a esmo.
Frajola toscanejando lá no telhado.
Cianças brincando de qualquer coisa.
Um ônibus poeirento parado no ponto, partida às nove, volta às dezenove -- nunca pontuais, pois pressa ali ninguém demonstra.
Uma placa enferrujada indicando o rumo a tomar para a Capital.
Um cartaz no poste anunciando o baile no município vizinho, colado por cima do retrato risonho do, agora, governador do Estado.
Esta cidade não existe, mas pode apostar: é igual a tantos outros pacatos lugarejos perdidos por aí pelos quais todos um dia já passamos.
E deixamos para trás nostálgicos, pensando em adotá-los para o resto da vida...

Barulho d'água (Na fila da livraria)

Na fila da livraria

Há tempos procurava pelo livro, recomendado por vários críticos como sendo um dos melhores do gênero publicado nos tempos mais recentes. Cheguei à livraria, resoluto, esfregando as mãos. Pedi meu exemplar e o atendente o trouxe, quase prontamente. Sem perguntar o preço, segui direto para o caixa. Para variar deparei-me com o desconforto e o transtorno popularmente conhecidos por fila, não importa em qual estabelecimento entremos, fato corriqueiro que demonstra o quanto nós, consumidores e contribuintes, somos respeitados neste país, independentemente do dia e do horário escolhidos para a compra ou busca do serviço. Belarmino de Freitas! Demorou tanto para chegar minha vez, mas tanto, que neste ínterim li o catatau inteiro, de cabo a rabo, incluindo orelhas, biografia do autor, prefácio e posfácio! Quando, enfim, a sorridente moça bradou “O próximo!”, cumprimentei-a educadamente, já recolocando o dinheiro na carteira. Voltei, então, até o vendedor. Devolvi o volume ao rapaz, dei meia volta e me retirei para a cafeteria do shopping.

Barulho d'água (Missa de um ano)

Missa de um ano

Parem as quatro com esta briga, já se passou um ano! Hoje nada de ‘barraco’ como aquele que armaram em meu velório, por favor, preservem minha imagem e minha boa índole, notem a igreja, tem repórter sensacionalista até na sacristia! Não cometi suicídio porque a dor de cotovelo de vocês extrapolou o limite saudável, mas todas cansavam minha beleza com atitudes semelhantes a esta, desequilibradas e infantis! Na verdade eu precisava muito de sossego, sim! De andar pelas ruas sem ser seguido por paparazzi, sem ter meu rosto estampado nas capas das revistas de fofocas como se fosse canalha, sem mencionar que teria acabado batendo as botas de tanto tomar bordoadas dos cornos que fazia. E não me arrependo do meu ato extremo, oh não, tenham certeza. Depois de ter atravessado a ponte que pôs me barba a barba com São Pedro, submeti-me aos ajustes de praxe antes de ser admitido no céu, e atualmente, passeio quase incógnito em meio à multidão trajada de branco. Todo dia é de paz! Refresco meus pés em suaves e límpidos riachos, levitando ao som de música clássica. Colho frutas deliciosas e à vontade se a fome aperta, o sol está sempre de plantão, há no horizonte morros verdejantes e flores de vários tons ao alcance do toque, o firmamento nunca perde o azulíssimo brilho. 
Bom, mas o assunto a ser tratado com todas é outro. Estou aqui para informa-las que meu charme continua em alta, não morreu comigo. Já nas primeiras horas como neófito naquele imenso e sereno jardim conheci uma cabrocha de parar o trânsito – uso a frase por mera força de expressão, é claro, pois por lá carro ninguém tem, andamos sem estresse pelas alamedas e parques; quando queremos variar podemos curtir passeios de bicicleta, ou cavalgar elegantes cavalos, todos irrepreensivelmente alvos! Portanto, gurias, como se a minha passagem já não bastasse, não há mais porque ainda manterem-se fiéis a mim! Arranjem sem demora outro namorado, ou marido novo, afinal a vida (de vocês!) continua. Olha, minha nova companheira é uma das mais bonitas em todo o Éden; outras até me pretendem, e eu, embora não seja mais de carne e osso, admito flertes com algumas, mas juro pela minha alma, apenas discretos, sem envolvimentos! Minha musa é mais velha que eu mais de três séculos, porém o tempo no Paraíso flui de modo particular, não se mede pelo calendário tradicional. Lá não rolam os julgamentos corriqueiros e calcados na moral vigente da sociedade dos mortais. Assim, sem precisar disfarçar ou nos esconder, exceto nos momentos de intimidade, curtimos nosso romance, literalmente, nas nuvens! Vocês estão assim espantadas, mas seguindo-me atentamente, correto? Precisarei frisar que devem me esquecer, pois já tenho outra com quem pretendo passar a eternidade? E, o que é melhor: sem precisar ouvir de e repetir a quem quer que seja aquela frase manjada e mais desrespeitada que o eleitor brasileiro “até que a morte os separe”?

Barulho d'água (Quadrilha da morte)

Quadrilha da morte


Caim pereceu vítima da ira de Abel, que, depois, atormentado, jogou-se em um poço. Santo Cristo levou junto consigo Jeremias, mas abatido por um tiro certeiro de Winchester 22, também tombou. Horas antes da overdose, Maria Lúcia vira Pablo morrer, cavalgando-a ensandecido. Luís estava no lugar errado, na hora errada. Gilda perdeu muito sangue ao dar a luz. O filho dela, dezoito anos depois, a onda levou. A bebida que deram para Marcos continha cicuta. Durante uma ronda pelo bairro, Khalil teve o azar de ser confundido com bandido. Manoel a cobra picou. Tião e a mula rolaram precipício abaixo durante tempestade inesperada. O dono da pizzaria vacilou tentando salvar o máximo possível durante o incêndio. Um desastre custou o adiamento do início da temporada de futebol. Só as bolas sobraram intactas no ônibus capotado. Naquela mesma sinistra curva, um ciclista ficara debaixo das rodas de um caminhão, um ano antes.
Entre os vitimados por doenças conta-se dona Belarmina, já nonagenária e quase cega. O óbito de Lili está registrado como “causas naturais”. A quimioterapia não conteve a metástase pelo corpo de Raimundo. A rejeição por Tereza explica a cirrose que consumiu o primo apaixonado. Acusava-o de ter pernas estúpidas. Como não amava ninguém, ficou para titia, desencarnou intacta. Os jornalistas trigêmeos Gabriel, Miguel e Rafael conseguiram imunizar a moléstia de nascença. A notícia ruim é que fragilizaram pulmões, rins, e estômago, respectivamente. A tia de Joaquim foi dada como desaparecida três semanas depois de fugir do manicômio. Francisco ignorou a cancela abaixada antes da passagem de nível. Não parou. Não olhou. Não escutou. O maquinista, de tanta tristeza, tomou quatro copos de água sanitária. O circo teve de baixar as lonas depois que o leão, em fúria, invadiu o trailer do trapezista. Jússara não resistiu à espera por um leito no único hospital da cidade enquanto ardia em misteriosa febre. O poeta considerou dura demais a crítica ao livro com o qual esperava sair do anonimato. Ao editor reservou três projéteis. Dois alvejaram a secretaria do desafeto. A última bala não repartiu com ninguém.
Também teve aquele menino que queria apenas resgatar a pipa presa ao fio de alta tensão. Antes dele, várias facadas gelaram o coração de Juliana. O mesmo aço interrompeu a roda gigante para João. Com um espinho no peito e sangue nas mãos, o corpo do assassino foi encontrado, e ato contínuo, enterrado, na beira do rio. Zé, naquele domingo, só queria chupar sorvete no parque, entregar uma rosa vermelha à namorada.

Para escrever um final feliz, nestas últimas linhas pensei em ressuscitar cada um dos citados nesta crônica. Entretanto, para quem ainda não soube, ao comemorar um gol do meu time há alguns dias aproximei-me demasiado do parapeito do apartamento e despenquei feito um pacote bêbado por treze andares. Com meu corpo ainda atrapalhando o sábado, J. Pinto Fernandes surgiu do nada e conduziu-me por um longo túnel de luz até o lugar do qual escrevo agora, com os demais todos ao meu redor. Fernandes, que ainda não havia entrado na história, ostentava no peito uma medalha, honraria que obteve dois meses depois de ter conseguido se naturalizar filho de Tio Sam e ser aceito em uma unidade ianque para combater vietcongues.
 

Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
http://www.poesiafeitaemcasa.blogspot.com e http://www.karumi.nafoto.net, outros trabalhos que assino. A cópia e reprodução dos elementos aqui contidos sem a devida autorização, por escrito, e sem estarem negociados direitos autorais e outras questões comerciais, sujeitarão o infrator a entendimentos com a lei.

Marcelino Lima



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