quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Barulho d´água (2 de janeiro)

2 de Janeiro
Duas amigas conversam à espera do ônibus que as levaria para o trabalho:
-- Você reparou como este ano está passando rápido?
-- E não é, menina! Parece que foi ainda ontem que ele estava começando!
Era 2 de janeiro.
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Repartição pública

No trabalho, todo mundo já instalado, entra o retardatário, às 13h15 do dia 2 de janeiro:
-- E ai, pessoal, tudo bem, não vejo todo mundo aqui desde o ano passado! Alguém sentiu minha falta?
Alguém , fazendo muxoxo, comenta:
-- Tem jeito não, entra ano, sai ano, e este cara não muda, sempre folgado, e pior, se achando...
O figura resolve tirar o chefe:
-- Ai, hein chefe, está levando a sério os planos para o Ano Novo! Começou a dieta, até já perdeu uns quilinhos e, puxa! comprou uma belissíma gravata nova! É italiana?
O encarregado (que não enxugara um grama, e quanto ao acessório, usava o mesmo de séculos, já repetido a exaustão, um sebo só, e o pior, gravata listrada sobre camisa xadrez, e ainda por cima, sem manga):
-- A principal meta que estabeleci é pô-lo no olho da rua e pode escrever, não estamos longe disso, vou te fazer dançar logo, logo, otário!
Protegido pelo presidente da Câmara, o folgazão dá de ombros, e, virando-se para o gay da repartição, atiça:
-- E ai, bofe, para você todo dia é de comemorar entrada de "anos", né?
Dedo do meio da mão direita esticado em riste, os demais ao redor dobrados para baixo, a resposta do rapaz, impublicável, veio à queima roupa. Mas o provocador não viu nem a ouviu, já estava à caminho da copa, atrás de um cafezinho:
-- Nossa tia, que purgante é este! Será que até o ano que vem a senhora aprende a fazer um café bebível? Para começar, adere ao filtro de papel que já ajuda!
A copeira cruza os braços na altura dos peitos, brande no ar a colher de pau que usara para mexer o pó no coador, ameaça baixá-la na cabeça do babaca, mas limita-se a mandá-lo ir tomar... um expresso no bar da esquina, com muito chantily!
Já de volta à sala, pendura o paletó no encosto da cadeira, e, ao conferir o relógio, provoca o contínuo:
-- E ai, moleque, será que agora que 2008 tá bombando você vai parar de enrolar? Põe o game boy de lado e faz aquele relatório que o chefe vive te pedindo para ontem, por misericórdia!
O garoto não come embrulhado, e rebate, arisco:
-- Olhem todos, olhem quem fala! E por falar em enrolar, você não vai checar teus e-mails como faz todos os dias, álias o tempo todo? E olha, como a caixa-postal deve estar entupida e hoje tem só meio expediente, acho que você vai precisar de esticar o serão...
Gargalhada geral
-- É, espertinho, pode ser... Mas quem ri por último, ri melhor! Espera ai pela bela resposta que vou enviar para teu endereço. Mas farei isto só amanhã: tá na hora de eu vazar!
O chefe, saltando da cadeira, olhos esbugalhados:
-- Como assim, mas você acabou de entrar, e ainda nem ligou o micro, qual é, cara? Se você se mandar, desta vez carimbo "FALTA" na tua folha!
Em tom de falsa modéstia, o ameaçado explica-se:
-- Você tem razão, como sempre, superior! Mas é que meu gatinho estava internado! O senhor nem imagina: na ceia de Natal um osso de peru perfurou a tripinha dele, ele precisou de cirurgia, o veterinário só deu alta hoje, lamento, tenho de ir buscá-lo agora. Quanto à falta, proponho uma troca: desconta o período de hoje daquela licença-prêmio de três semanas que eu tenho para gozar...
Da mesa ao fundo, uma das mais antigas da sessão, efetiva, com direito até a plaquinha de patrimônio na testa, mas sempre na mesma função, comentou, rompendo o mutismo em que sempre vivia:
-- Ah, peraí, safadão, esta desculpa do bichano você já deu no ano anterior, anotei, quer ver, cadê, cadê, ah, olha aqui, ó, e o gato se chamava Portuga!
Balançando cabeça, ar vitorioso, já recolhendo o paletó do encosto da cadeira, ele retruca, pé já na porta de saída, o carimbo muqueado no bolso direito sem que o chefe notasse:
-- Você anota tudo errado mesmo, deste jeito jamais vai desencalhar deste carguinho de merda e conseguir a promoção com a qual tanto você tanto sonha, nem saindo com o cara ai (e aponta para o retrato do prefeito). Anta, esqueceu que eu nem vim aqui nos primeiros dias de expediente do ano passado? Foi quando meu cão estava se recuperando do ataque de apoplexia causado pelo rojões e bombas que estouraram à meia noite do dia 1º, precisei ficar cuidando dele uma semana, em casa, lembra-se?
E saiu em seguida, assoviando em tom calhorda.
Retomando seus papéis, todo mundo ficou em silêncio. E como ninguém disse mais nada, o trabalho, enfim, deslanchou.

domingo, 30 de dezembro de 2007

Barulho d´água (Poesia cotidiana em forma de bilhete)

Poesia cotidiana em forma de bilhete
"Mamãe":
Fui levar a Princesa para tosar o pelo dela. Os dois gatinhos preto e brancos que estavam doentes, infelizmente, também morreram, mas a Paninho já está de alta. Ela voltou a comer e bebeu bastante água. Retorno lá pelas 11h30, depois de uma caminhada pelo Tamboré. Fala para o Jorginho esperar por mim caso ele queira jogar Outlaws. Vou levar o celular, liguem se precisar!

Barulho d´água (O menino e a lua)

O menino e a lua (Binóculos)
O
menino ganhou um binóculo da mãe. Ainda na loja, ansioso, pedia que sem demora recebesse o par de lunetas, mas não o estreou na hora. Esperou até chegar em casa, onde entrou apressado, subindo a passos largos a escada que leva ao quarto. Debruçado à janela, buscou-a no céu: a lua estava cheia, do jeito que ele mais gosta. Então, ajustou as lentes para trazê-la mais perto, trouxe-a tão próxima dos olhos que roçou uma das mãos no vazio como se pudesse afagar a superfície da bola cinzamarelada. Passou muito tempo fitando-a, enluarado, dizendo à musa coisas bonitas de se ouvir, fez promessas de todos as noites contemplá-la, de construir, quando homem, uma escada bem grande, de virar estrela depois de morrer só para brilhar ao lado dela...

Barulho d´água (A tarefa)

A tarefa
Um frasco de Veja multiuso.
Uma flanela.
Um pano seco.
Uma tarefa: tirar o pó dos livros.
Enquanto a faina durar,
de cada um deles,
ler um capítulo.
Uma crônica.
Um conto.
Um poema:
Eta sábado belo, meu Deus!

Barulho d´água (Cargueiro II/Pedras)

Cargueiro II
Bochecas infladas, risos presos, pai e filho dentro da banheira, em silêncio, concentrados, caras de quem está esperando trem. De repente, um estrondo, gargalhadas: pela quantidade de bolhas que veio à tona, passou um cargueiro lá por baixo...
Pedras (para Manoel de Barros)
Meu filho me perguntou: --Pai, quem tem olho de pedra enxerga? Respondi não sei, mas expliquei: qualquer pedra vê o que está além do próprio nariz, embora pareça que elas nem olhos tenham, e sentem tudo, tudinho. É por esta razão que sempre devemos pedir desculpas se tropeçarmos nalguma por ai.

Barulho d´água (Mais três de gatos)

Mais três de gatos
1) Sorte
O desatento gato malhado resolveu bordejar fora do quintal justamente no dia em que interditaram a avenida principal para o desfile na cidade e o trânsito das ruas ao redor da casa perdera a calma de sempre. Se o atento motorista não tivesse bom senso e não costumasse brecar para animais, hoje o felino teria apenas seis vidas.
2)Telhado
Um pássaro, ousado para a situação, pousou no telhado a centímetros de onde estavam três gatos. Alheia ao perigo, talvez de gozação, a ave ciscou, ciscou, dançou o Quebra Nozes, pegou algo pelo bico, tornou a ciscar e a voltear mais um punhado de vezes, e só depois de um bom tempo, sossegadamente, bateu asas e voou. Os bichanos, mandriões, nem bocejaram. Fazia calor e eles só estavam interessados em toscanejar ao sol.
3) Manhã chuvosa
Manhã chuvosa, indolente como violino, só não me deixa mais madraço porque é de quinta-feira. Mas entre um bocejo e outro, a cada movimento do temporizador limpando a arenga-de-mulher no pára-brisas, a caminho de mais um fechamento de edição, como invejo o gato ainda enrolado nas cobertas, aproveitando-se do calor da cama e do meu travesseiro.

Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
http://www.poesiafeitaemcasa.blogspot.com e http://www.karumi.nafoto.net, outros trabalhos que assino. A cópia e reprodução dos elementos aqui contidos sem a devida autorização, por escrito, e sem estarem negociados direitos autorais e outras questões comerciais, sujeitarão o infrator a entendimentos com a lei.

Marcelino Lima



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