segunda-feira, 27 de maio de 2013

Domingo perfeito (Barulho d'água)

Domingo perfeito
 
Assistir às apresentações do XI de Junho onde, atualmente, encontra-se instalado o Centro de Treinamentos do Grêmio Esportivo Osasco, no jardim Cipava, na zona Sul da cidade, era um dos meus programas prediletos no final dos anos 1970, começo da década seguinte. Chamados por “segundo e primeiro quadros”, os dois times amadores reuniram vários dos irmãos mais velhos dos meus vizinhos ou dos amigos de minha idade, e, por ficar bem pertinho de minha casa, que era na Vila Yolanda, eu batia cartão quase todos os domingos lá no campo do XI, onde costumava ficar sentado no barranco que ficava atrás do gol aos fundos da atual Escola Estadual Deputado Guilherme de Oliveira Gomes, situada à Rua Hipólito da Costa. Desta “arquibancada”, lugar privilegiadíssimo, presencei jogos memoráveis e vi atuar usando o uniforme amarelo e preto do XI de Junho, por exemplo, o meio-campista Peres, campeão brasileiro de 1977, autor de um gol na decisão por pênaltis no enlameado estádio Mineirão, para o São Paulo, contra o Atlético Mineiro, decisão que ficaria marcada, ainda, pela fatídica entrada do bom e já falecido meio campista tricolor, o querido Chicão, lance tão duro que partiu ao meio as pernas do oponente do Galo, Ângelo.
Em um destes alegres  domingos, o XI de Junho promoveria um badalado festival, ocasião em que bons times de várias localidades se defrontariam e, ao final de cada embate, o vencedor levantaria um troféu. Esta modalidade de disputa amadora até hoje está em voga; mas dependendo do número de participantes, a tabela, àquela época, às vezes ficava muito extensa. Assim, para que todas as partidas ocorressem ainda com luz natural, já que campos de várzea raramente possuíam iluminação artificial há quarenta anos, o tempo delas poderia ser reduzido, chegando ao máximo de 35 minutos por etapa. Em caso de empate, ocorria, como ainda hoje, decisão por pênaltis. Naquele dia no jardim Cipava, o “Cascudão” (era assim que se chamavam os segundos quadros, ou seja, a formação tecnicamente inferior entre as duas de uma mesma equipe) abriria as disputas, estreando uniforme novo, às 9 horas. Acordei tarde, engoli um pedaço de bolo e um pão com manteiga, acompanhados por café com leite, sai voando. Cheguei com a bola já rolando, não me lembro contra qual adversário, mas o XI de Junho ganhou por 2x0 e consegui chegar a tempo de ver ambos os gols.
O duelo do primeiro quadro, pela ordem, seria o último, ou seja, a final do dia. No papel, os oponentes deveriam estar dentro das quatro linhas, prontos para o pontapé inicial, às 16h15. Atrasos, entretanto, eram inevitáveis, já que, não raro, várias decisões morriam na marca da cal devido ao equilíbrio técnico entre os candidatos ao troféu, pois apenas timaços eram convidados pelos organizadores. Balão subindo, balão descendo, balão para o mato, balão para o quintal das casas contíguas, por volta do meio-dia meu estômago começou a tocar jazz, tango, rumba, moda de viola, tudo junto e misturado. À beira do campo enxergava vendedores de cachorro-quente, de pipocas, no entorno botequins ofereciam a chance de fazer uma boquinha, pedir pastel, salsicha no palito, coxinha, torresmo, mais para os lados da Vila dos Artistas havia padaria.  Mas além de duro, eu estava tão ligado nas partidas que praticamente ignorava aquele samba do crioulo doido e famélico. Com o passar das horas, porém, o zabumba bumba esquisito tornar-se-ia cada vez mais agudo. Contrariado, conclui: seria melhor voltar para casa, bater um rango e regressar o mais breve possível -- o que significava ter de convencer minha mãe a, novamente, ausentar-me, embora, desta vez, devidamente alimentado. Quando já começava a descer o barranco, avistei meu pai chegando à ponta da rua, do outro lado do campo, pedalando uma das muitas bicicletas antigas que ele montava e desmontava.  
Preparei-me para a bronca, já lamentando ter de perder o resto do festival e o jogo do primeiro quadro do XI de Junho, pois, na certa, ele estaria indo até lá para me dar um pito e ordenar minha imediata volta.  Enganei-me, no entanto, e que bom ter me equivocado! Quando me alcançou, sorridente, o velho perguntou-me quem estava jogando e quem ganhava estendendo-me um pequeno embrulho, tirado de um embornal feito de uma velha calça jeans que ele carregava para baixo e para cima. Ao abrir o pano de prato, que ainda guardava a temperatura do que embalava e um delicioso e familiar cheiro, dentro de um saco de papel daqueles pardos de padaria e de mercados, eu encontrei dois pães franceses com ovos mexidos em molho de tomate com cebola bem picadinha. Havia também neste frugal farnel duas laranjas, descascadas, com as tampas cortadas, sem machucados, intactas, prontas para chupar, mais um generoso naco de queijo com goiabada. Em uma garrafinha de plástico, minha mãe mandara, ainda, tubaína, bem geladinha. Antes de subir na magrela e se retirar, meu pai entregou-me, para o caso de esfriar, o meu único agasalho -- uma surrada jaqueta de nylon vermelha que tinha um emblema de escuderia de F1 sobre um dos bolsos, mais algumas moedas.
De volta ao meu lugar cativo no barranco, saboreei o primeiro lanche e metade do refrigerante mastigando e bebericando bem devagar, curtindo cada pedacinho daquela delícia, aproveitando o intervalo da partida que rolava na hora da merenda. Contei as moedas: vi que seria possível comprar picolé e ainda, mais tarde, um pacote de pipocas, estouradas na hora. Saciado, feliz pela generosidade de minha mãe e pelo esforço de meu pai, bastava esperar o momento de o primeiro quadro do XI de Junho entrar para o embate, trajado de camisa com gola careca e calções negros, com faixa vertical amarela por trás do distintivo, de acordo com as descrições de como seria o fardamento a ser estreado naquela tarde. 
Perto da hora do jogo, começou a soprar repentinamente um vento meio frio. Embora ainda houvesse sol o suficiente para manter-me aquecido, resolvi vestir a jaqueta. Ela era um pouco larga, e comprida, de forma que, sentado, pude puxá-la até a altura dos joelhos, prolongando a proteção para as minhas coxas. Cheiro de bacon sendo frito para adicionar à nova panela de pipocas que logo mais seriam estouradas ganhou o ar. A charanga do XI de Junho chegou, animando o ambiente com uma ruidosa batucada e marchinhas de incentivo ao time. Um casal de idosos, trazendo um vira-lata puxado por uma corrente, também se acomodou no barranco a esta altura já apinhado, ambos enrolados em uma bandeira preta e amarela que ela costurara. O cachorro me olhou com simpatia, abanou o rabo e latiu, duas vezes. O dono do cão, então, dirigiu-se a mim todo prosa: “O Tupi dá sorte para o primeiro do XI, o time jamais perdeu quando o trouxemos em outras ocasiões”.
Pouco tempo depois, em meio às comemorações por mais um troféu que ficaria no jardim Cipava, lá estava o bicho dando a volta olímpica misturado aos torcedores, aos jogadores, e à charanga, latindo sem parar, saltitante, promovendo uma gostosa algazarra. Minha barriga, novamente, repicava no ritmo de um reco-reco afinado como se fosse cuíca. Abandonei o cordão e, sentado, comi a parte restante das pipocas que havia sobrado no saquinho e que não dividira com o Tupi durante o jogo. O segundo pão com ovos mexidos saciou-me por inteiro. De reserva eu ainda tinha aquele “Romeu e Julieta”, que, no entanto, ficaria para depois do jantar. 
Eu estava bem feliz, mas para o domingo terminar completo, faltava saber o placar do clássico que envolvia o Corinthians. Atravessava a pinguela sobre o córrego João Alves a caminho de minha casa quando cruzei com um senhor que levava um rádio de pilhas grudado ao ouvido esquerdo. “Quanto está o jogo, tio?”, perguntei. “Um a zero Timão, gol do [Geraldão] Manteiga”, respondeu, erguendo o polegar da mão direita, placar que perdurou até o derradeiro apito do árbitro Pantera-Cor-de-Rosa encerrando mais um Majestoso travado no Cícero Pompeu de Toledo.

Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
http://www.poesiafeitaemcasa.blogspot.com e http://www.karumi.nafoto.net, outros trabalhos que assino. A cópia e reprodução dos elementos aqui contidos sem a devida autorização, por escrito, e sem estarem negociados direitos autorais e outras questões comerciais, sujeitarão o infrator a entendimentos com a lei.

Marcelino Lima



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