sábado, 24 de novembro de 2007

Barulho d´água (Passeio pela Faria Lima)

Passeio pela Faria Lima
Passeio pela Faria Lima sentindo-me meio desconfiado, pequeno-burguês-yuppie-periférico,
trombando gente in produzida, que curte pacas o pó moderno, mas não figura nas estatísticas das DPs, nem nas páginas do NP. Desconfiança ou inveja? Sei não... Mas sei que estas vitrines não me retratam. Procuro meus iguais, procuro-me também, e a mais alguém (mas que porra de sirene enjoada!) e de repente tudo muda para calcinhas, lençóis, queijos, alhos, hot-dog, churrasco de gato, relógios, perfume, mal-cheiro, Vila dirce via Ariston, bares imundos terceiros mundistas, calçadas atulhadas (-- Hei, moço me dá dinheiro para eu comprar pão?; -- Pague-me uma coxinha?): já estou no Largo da Batata!

Barulho d´água (Um dia no parque)

Um dia no parque
Ele apertou minhas mãozinhas com firmeza, mas, carinhosamente. Olhou-me diretamente nos olhos, com convicção, mas docemente. Então disse: Vamos lá, você pode! Alguns segundos depois eu sentia o vento brincar com meus cabelos, milhares de bolinhas brotarem em minha pele após um fio de frio percorrer minha espinha. O grito de alegria que deu o meu pai no dia em que aprendi a andar sozinho de bicicleta foi tão alto que até as árvores do parque se arrepiaram, gravaram-no folha por folha para repeti-lo sempre que eu e a magrela descemos novamente a trilha... O velho também continua lá, pulando e dando socos no ar. Ao olhar agora expressando orgulho, soma-se um sorriso aberto de orelha a orelha.

Barulho d´água (Tarzan no circo)

Tarzan no circo
Durante as brincadeiras do menino com os primos que são gêmeos, Tarzan resolveu dar um rolê numa moto dez. Pilotando a milhão, sentindo o vento no rosto, descobriu: pular de cipó em cipó para ir de um lugar ao outro não estava com nada, diversão era aquilo. Pena que não pudesse levar a máquina para onde vivia com a Jane, temia causar desequilíbrios ecológicos tão intensos que o Greenpeace nem mais precisaria de outra causa para protestar. Empolgado como quem come melado pela primeira vez, deu uns cavalinhos de pau, empinou a moto, fez o diabo, e nem percebeu: avançou uma “pá” de sinais vermelhos. Por isso, acabou multado. Como não tivesse mais do que a roupa do corpo (aqueles dois paninhos que não são nem cueca nem sunga, um na frente, outro atrás, unidos por um barbante cingido à cintura), teve de ir fazer bico num circo mambembe para pagar a canetada. Apresentado como “o verdadeiro homem das selvas” pelo tiozinho gordo de smoking surrado, calças brancas listradas de vermelho e cartola comida por traças, dividia o palco com a Chita. Um leão desdentado e vesgo, logo apelidado pelos assistentes por Daktari, também fazia “ponta”. O público aplaudiu tanto que, em pouco tempo, Tarzan e os bichos passaram a ser atração principal. Apaixonado pela vida debaixo da colorida lona, decidiu não mais voltar para a cabana no meio do mato. Jane virou trapezista e, na matinê de sábado, ambos devem estrear o número novo que estão ensaiando: o globo da morte.

Barulho d´água (Balé)

Balé
No ar, solto, teu corpo obrigava-o a moldar-se a teus movimentos sensuais.
Parecia entre ambos haver um pacto: que ele te sustentasse flexível para tu torná-lo mais nobre.
Eu tive ciúmes do ar, que podia pegá-la no colo, afagar tuas linhas.
E aquilo era mais do que uma dança...
Era um balé físico-químico, e
ra cada músculo do teu ser
em harmonia com cada mólecula gasosa.
De tanta leveza, de tanta beleza,
meus olhos não continham o êxtase:
ver te solta,
graciosa, serena, a girar sutil e mágica, era um convite...
E então percebi: era eu o único na platéia.

Com este poema fui um dos dez primeiros colocados do Femup (Festival de Música e de Poesia) de Paranavaí, no meu estado natal, o Paraná, em 1996. Ele foi escrito para uma pessoa que marcou demais a minha vida e que vive no Rio Grande do Sul.

Barulho d´água (Sinfonia cotidiana)

Sinfonia cotidiana
De manhã acordo mas permaneço (te) sonhando.
À tarde tomo café com pão e saudade integrais
De noite sinto-me a única pessoa aqui na Terra.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Barulho d´água (Quando?)

Quando?
Se Deus ajuda a quem cedo madruga, quando poderei dormir até tarde?
Meus pés
Meus pés sempre viveram separados. Mas aonde um vai, o outro acompanha.
Riso
Dizem que rir é o melhor remédio. Mas será que alguém que ri precisa de remédio?

Barulho d´água (Olhar)

Olhar
Por cima dos ombros do namorado lançava-me piscadelas, olhares amorosos, saborosos como tomate com uvas passas, leves ao paladar, mas com calor suficiente para me fazer transpirar.

Barulho d´água (Haicai-cegonha)

Haicai-cegonha
Flamboyans trigêmeos à beira da estrada:
entre a árvore esquerda e a do meio
um caminhoneiro arma a rede.
Bar(r)afunda
Destacados da barafunda,
homens-redes e mulheres-bambolê
enchem de cor a estação Barra Funda...

Barulho d´água (Água no chope)

Água no chope
Então, sem fazer rodeios, disse-me: "Agora serei, eternamente, tua amiga!". Sem pedir licença, no ato, copos ainda cheios, larguei o meu, cortei o papo, pus vinte paus na mesa para ajudar a pagar a conta e, decidido, sai fora. Um dia, com nossos corpos ainda ardentes, ela também jurara que sempre, para sempre, iria me amar...

Barulho d´água (Sombra)

Colho uma flor.

Minha sombra, prontamente,

imita meu gesto.

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Acende no céu

a primeira estrela.

E a pipa, lá!

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No poente há

quase tudo de poeta.

vai ver é por isso:

ambos são ligação química,

um o outro completa.

Barulho d´água (Troca-troca)

Troca-troca
Amaram-se febrilmente durante a madrugada. Caíram no sono, exaustos, depois da última. Acordaram com o sol queimando as caras. Ele já bem atrasado, justamente no dia em que teria reunião com novos fornecedores para fechar valioso contrato. Do jeito que deu, arrumou-se apressado, recolhendo pelo chão a mesma roupa que vestia antes da farra. Ignorando os apelos dela para que ficasse mais um pouco (“um simples telefonema resolve tudo, amor, dá tempo para a gente se curtir durante aquele banho!”), saiu a milhão. Preguiçosa, relembrando tudo o que vivera, a diva custou a levantar-se do ninho. Por fim, já de pé, procurava pela calcinha jogada no tapete, estranhamente desaparecida. Sorria ao imaginar que a sedosa lingerie teria sido surrupiada pelo doideira como um troféu. Perto do criado mudo, encontrou... uma cueca. Teve um ataque de gargalhadas ao sacar o lance. No escritório, com a caneta em punho rubricando os papéis, tocou o celular. Era a diva contando o ocorrido, rachando de rir. Assinatura deixada pelo meio, ninguém entendeu por que, vermelho, ele pediu um temp, disparou para o banheiro. Putaquepariu! todos na sala ouviram. Acabara de descobrir a razão do desconforto que estava sentindo por debaixo da calça desde que saíra de casa.

Barulho d´água (Dois beijos para a chuva)

Dois beijos para a chuva
Ao cinema, ao teatro, a um bom vídeo,
a um bom livro, a um bom cedê, a uma boa companhia,
em casa, na escola, no trampo, ou na balada,
opte... por todos!
Nem sempre é possível viver tudo ao mesmo tempo,
mas viver o tempo todo de modo intenso e aberto,
já que a vida é curta, é bom, até obrigatório.
Cuidados haverão de ser tomados, no entanto,
descubra por si mesmo quais são os limites,
até onde pode levar suas naus em segurança
para que não as afunde e naufraguem longe da praia.
Jamé deixe que te dirijam a vida, entretanto...
... ultrapassar sinal vermelho costuma virar uma fria!
Se ter opiniões é sinal de personalidade,
tentar impor pontos de vista é de tolice.
Exceções existem, forte e fraco se completam,
suave e áspero, por vezes, são contíguos,
trabalhar é necessário e dignifica-nos,
mas há momentos em que dar um tempo nos restaura.
Uma coisa, no entanto, é regra:
Viva!
Ao amanhecer, ao abrir a janela,
saúde com um beijo e um poema o sol.
E, com dois, a chuva!

Barulho d´água (Demoninha)

Demoninha
“Putinha safada, cachorra, demoninha...”
Ao ouvir o terceiro xingamento, com toda a força dos braços, empurrou-o para trás, as duas mãos contra o peito peludo, tal qual golpe de machado. “Ah, meu senhor, desculpe-me, por ai, não! Aceito qualquer coisa que me peças. Fantasio-me de Cleópatra, de empregadinha doméstica, de enfermeira. Rainha a teus pés, brinquedo em tuas mãos, tua, sempre tua. Mas não me chames por demoninha ou por qualquer outro nome associado ao coisa ruim, imploro-te, não me zangue!”. Voz rouca, dócil, explicou serenamente o motivo de tal reserva moral ao novo parceiro subitamente arrancado das entranhas dela e que fitava-a sem nada entender. “Respeito à minha mãe, meu amo. Morreu depois de anos enferma sobre a cama. Que Deus a tenha em bom lugar! Minha santinha não podia ouvir nenhuma das alcunhas relativas ao Cão Trevoso que já logo se ia benzendo, medo dos fogos do inferno!”, contou fazendo o em-nome-do-Pai repetidas vezes. Meio riso canalha, o estreante fingia compreensão, enquanto matutava acompanhando os desenhos da fumaça que, ao se dissolverem, subiam ao teto: como poderia ter tal purismo a dona da maior fama entre as damas da noite, a alegria dos jovens, dos homens, dos velhotes, a mais assediada das zonas até pelas franchas, e justamente pelos modos libertinos que se entregava aos prazeres da carne, pela volúpia durante as inumeráveis farras a dois ou em bacanais? Entretanto, por estar bebendo pela primeira vez naquele co(r)po, embora já certo de que o ergueria mais quantas vezes quisesse, embriagado pelos licores que nele sorvera até o repentino chega-prá-lá, acedeu. “Melhor provar trigo cru do que sem pão ficar”, sussurrou ao ouvido da cortesã, movendo a língua em busca de um dos mamilos ainda intumescidos.  Cigarro pelo meio se consumindo em um dos cantos do quarto, logo estava lambendo-a de novo à entrada do braseiro, forno sempre em ponto de fundir aço e cujo calor sentira já durante as primícias ao queimar de leve a pontinha do intruso dedo introduzido lá  pela borda da calcinha.

Barulho d´água (Bicicletas)

Bicicletas

Na contramão do sol que nasce, dois ciclistas sobem a SP-312: um pedaço de Pequim no alvorecer de Carapicuíba, uma recordação de meu agora octogenário pai e de meus passeios na garupa da velha magrela dele em minha infância -- tempo no qual embora tudo fosse mais longe do que realmente era, sempre estava ao alcance do par de mágicas rodas ...

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Este texto é de 1998, quando o seu Geraldo Caetano de Lima, que me ensinou o gosto de torcer para o Timão, e, até hoje, adorar andar de bicicleta, fazia 80 anos. Em abril deste ano, já com 88, o velho foi pedalar no céu, onde deve estar tentando convencer todos os santos a não deixarem o Coringão descer para a segunda Divisão nacional. Acho, no entanto, que ele não vai ter sucesso nesta, não...

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Barulho d´água (Holandesa)

Holandesa
Sentada, pernas cruzadas no banco sob a cobertura do ponto de ônibus, a holandesa. Usando jeans cintura-baixa e camiseta acima do umbigo, quem passava por trás dela, caminhando ou correndo pela pista próxima à parada, podia ver um generoso naco das costas branquinhas e, escapando, uns três dedos da calcinha lilás cujo elástico marcava a pele enquanto arredondava o frondoso quadril. Suspirava, inquieta. Furtivamente, voltava o olhar azulado para os atletas que queimavam gordurinhas ou, simplesmente, exibiam-se na manhã de sábado. Doidinha. Esperando que passasse por ali um cavaleiro que sem apear a arrebatasse para a sela, galope desvairado rumo à beira de um lago onde o zaino pudesse matar a sede. Em meia hora, cansou-se da espera: sem levantar-se, esticou o braço, deu sinal ao coletivo 289 da Benfica e embarcou com destino ao Jardim Imperial.

Barulho d´água (Plaquinhas)

Plaquinhas
O parque onde caminho é bem legal.
Mas seria show mesmo se nele tivesse
ao invés das plaquinhas proibindo
entrada com animais, andar de bicicleta antes das dez,
empinar pipas, cabular aulas lá dentro
e não dar comida aos peixes
(coisas que ninguém obedece),
avisos do tipo repare nas garças,
ouça os bem-te-vis, cheire os jasmins
e, cuidado: travessia de lesmas...

Barulho d´água (Tocaia)

Tocaia

O alto do morro, de frente para quem venha distraído pela estrada, quem espera oculto pela pedra. Distância, ponto, ângulo: ideais para a tocaia. Rifle e mira que tanto já enviuvaram, geraram órfãos, justiciaram, eliminaram quem seria mal para alguém, selaram encomendas, sempre só um tiro. O dedo que aperta o gatilho tem uma filosofia: ninguém que fiz tombar era inocente. Logo quem vem lá, agora, é apenas mais um na longa lista. Ah, amigo, azar teu. Vive-se disso, paga-se bem, a desavença não conta: é tome bala, da cá.
 
Perto da hora presumida, um trotar. Ainda a meio caminho – o alcance da visão dele, dali, é privilegiado --, a poeira subindo. Ah, bom cavalo, cavalgue sem medo, dentro em breve teu lombo estará sem peso algum além do da sela. Consulta ao relógio. Sim, a bola da vez está dentro do horário, desenrola-se a trama como o previsto. Mas até chegar ao instante em que um chapéu voará assanhando os abutres, tempo para fumar. Ritual de praxe: um trago bem dado, depois, cálculos: dois, três, sucessivamente. O último, invariavelmente, coincide com o clique, corpo e ponta de cigarro se finam e tombam juntos ao chão.
 
A palha já terminando de queimar e o alvo? Passos na retaguarda, vira-se assustado, é tarde demais: de que adiantam boas espingarda e pontaria quando não se consegue pressentir um perigo a quilômetros?

Barulho d´água (Galo)

Galo
Meu galo tem
flores na garganta:
brilhe o sol, ou, chova,
faz primavera também
quando ele canta!

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Barulho d´água (Vento)

Vento
Estúpida e ansiosamente torci por uma lufada generosa que levantasse todo o vestido. Mais cavalheiro e menos moleque, o vento, entretanto, apenas roçou-lhe a barra e tudo o que vi se resumiu a um sutil farfalhar...

Barulho d´água (Não, obrigado!)

Não, obrigado!
Não, obrigado. Não obrigado, vou de viola, de sertanejo sertanejo.
Não, obrigado.Vou de Chico Lobo, Boldrin. Roberto Corrêa. Inezita.
Não, obrigado. Vou de Edvaldo Santana. Sérgio Sampaio.
Não, obrigado. Vou de Bashô. Quintana. Cora Coralina.
Não, obrigado. Vou de Jorginho. Vou de Rosa. Ipês Jacarandás.
Não, obrigado. Vamos de cantigas de rodas. Vamos de circo. De pipa no ar.
Não, obrigado. Só se for do Timão, ai, me chama, ai eu vou.
Não, obrigado. Vou de Osni Ribeiro.
De Osni Tadeu. Babu. Ubirajara.Riso. Mar.

Samara.Ricardo.Mara.Marisa.Ana Lúcia.Edna.Cátia.Elina.

Tia Ni.Ricardo. Dani. Air. J.Reis.Brandinão.
Não, obrigado. Dá barato, dizem, mas mata.

E matam por isso. Vou com minha cara e coragem.

Como Belchior. A minha alucinação é suportar o dia a dia.
Mas vou com minha fé. Decidido. E se por acaso cair,

vacilar, não, obrigado, vou assim mesmo.

Caminhando. E vou sem pressa, colhendo haicais pela estrada.

Tomando chimarrão. Ou vinho. Água na bica.

A morte que me alcance.
Por isso mesmo, do fundo do coração, não.

Mas obrigado assim mesmo, tá!

Barulho d´água (Tarde de Primavera)

Tarde de primavera
Mingau ficou em pé numa das pontas do colchão onde o menino, recostado ao peito do pai, dormia. Era tarde de primavera. Lá fora, bem de mansinho, chovia. Além do ar que, sibilante, num quase roncar escapava dos lábios entreabertos do guri, pingos tamborilando nos vidros da janela era o único barulho que no quarto meio escuro se ouvia. Um salto, pronto. A gatinha nem precisou de muito tempo para se ajeitar. Não é que havia no cobertor de luas e de estrelas uma caverna na qual ela coube direitinho?

Barulho d´água (Poeminha zen)

Poeminha zen

Ao tentar dar um salto

e voltar para o lago,

a perereca escorregou no lodo

e caiu de pernas pro alto.

Um pardal viu a cena

e riu feito um doido

--Coitadinho dela, zombou,

ficou com o bumbum doído!

Um garoto levado

que passava pelo lugar

após caçoar da bichinha

foi –se embora, realizado.

Até a garça que pescava,

abriu o bico na hora --

já estava engolindo um peixinho,

que, rápido, tratou de cair fora.

A perereca, altiva, não perdeu tempo,

nem deixou se abater o orgulho:

arisca, levantou-se,

e elegante, sumiu num mergulho.

Perto dali, na outra margem,

um homem que meditava

já havia para lá de um mês

poemizou o tchibun em papel de arroz

anotando a cena primaveril

em kanjis e em japonês

só que em vez de perereca

escreveu rã: tudo bem,

o haiku mesmo assim tornou-se famoso

é simples, mas bastante zen.

Barulho d´água (Retratos)

Retratos

Antes da bala perdida, o orgulho da mãe. A esperança do pai. Depois virou noticia efêmera. Soma nas estatísticas. Agora é apenas uma foto (bastante desfocada por sinal), que saiu do porta-retrato para figurar num painel público pedindo o fim da violência.

Infância sem lugar ao sol

Nas esquinas, como os chocolates que (não) vende, derrete ao sol a infância de um menino...

Barulho d´água (A batalha desconhecida)

A batalha desconhecida


A mais sangrenta e espetacular batalha entre índios e exército do período de expansão norte-americana rumo ao oeste não está registrada na memória do povo, nem nos livros de história. Se o gato Marshall, única testemunha ocular do combate pudesse contar o que viu, diretores de cinema teriam diante de si um prato cheio para filmar uma daquelas tramas imbatíveis, tanto em bilheteria quanto na Academia. George Lucas, por exemplo, teria deixado de lado a saga Star War preferindo escrever à respeito se ao menos imaginasse o que passou naquele fim de mundo inóspito, uma porção do deserto onde sequer os cactus sobrevivem, as caveiras imploram por uma sombra e os escorpiões se engalfinham por um buraco nas escaldantes areias ou debaixo de uma pedra, matando-se uns aos outros até por uma pena de abutre que caia durante o vôo da agourenta ave. Oito caras-pálidas e oito peles-vermelhas duelaram até a última bala ou flecha durante várias luas pela posse de um estratégico forte. Alguns soldados tombaram, entre os apaches também houve baixas. Eles, no entanto, deveriam carregar nos cantis algo mais do que água, pois, após alguns goles, logo todos estavam novamente em pé, prontos para retomar a briga por um arco, por um escalpo ou uma provisão qualquer (ouro, inclusive). O mais interessante do duelo é que ele terminou sem vencedores. Depois de tanto pau, os protagonistas voltaram para a mala de onde saíram satisfeitos, embora trocando provocações e prometendo se pegarem novamente depois da aula do menino. Dois de cada time e seus respectivos cavalos levaram a trégua ainda mais longe: resolveram acompanhar o guri à escola. Lá conheceram outros garotos, aprenderam a formar sílabas, um pouco de adição e de subtração, ajudaram a pintar desenhos, e, ainda, ouviram sobre as traquinagens de Prático, Cícero e Heitor narradas por tia Vera durante a sessão de leitura.

Barulho d´água (Recompensas/Assalto)

Amor e romã --

o melhor de ambos vem

despindo as cascas.

Recompensas*

Whiskas.

Whisky.

Fazer o luxo dos meus gatos sai caro.

Mas, a recompensa vem em dobro.

Eles nunca me arranham.

E só dormem em minha cama.

Assalto

De todas as minhas fantasias

a do assalto é a que mais me realiza:

você chega de repente

e bom ladrão que é

sem sequer estar armado

sem fazer nenhuma ameaça

invade todos os meus cômodos

e abre todos os meus cofres

(até os mais recônditos)

para se apoderar uma por uma

das minhas mais preciosas jóias.

Nestes dois poemas anteriores, escrevi como sendo um eu feminino, exercício de criação que experimentei e que me permitiu compor vários outros textos com este recurso de estilo. Assalto foi publicado na Agenda da Tribo 2002/2003, da Editora da Tribo, na página correspondente ao dia 3 de setembro. Na época muita gente que leu, apesar de me conhecer há muito tempo, fez comentários nada dignos à minha honra e masculinidade, pode?

A fina que satisfaz

(a um amor fugaz pelas ruas de Taubaté)

Se estivesses para um cigarro,

serias do tipo longo --

Regina Slims king size 100 mm,

com filtro branco,

os mais leves e suaves,

embora ambos viciem...

Barulho d´água (Um poeta)

Um poeta

Pruma flor você olha

e diz, sem erro: crisântemo.

Prum passarinho você olha

e afirma na hora: sabiá laranjeira.

Pra alguém você olha,

mas não descobre logo: um poeta,

embora um poeta seja fácil,

muito fácil de se reconhecer.

Tem cara igual a de todo o mundo.

Carrega todos os passarinhos nos bolsos,

tem todas as flores dentro dele.

É capaz de falar ou escrever

frases inesperadas ou lorotas fantásticas,

e, normalmente, olhando-o de perto,

percebe-se: tem um parafuso a mais!

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Barulho d´água (Sítio do Barro Branco)

Um dia no Sítio do Barro Branco
A seriema, como de costume, cantou bem cedo. Ainda não são nove horas. O ruído da máquina de moer capim tocada pelo Osmar não abafa a melodia de alguns sabiás, o bater do pino do carneiro d´água, nem o resmungar da bica. Auxiliado por Ciloca, coronel Juá (usando calças de sarja amarelo-caqui, camisa branca remendada nas costas com saco de farinha, suspensórios e chapéu de feltro, ordenha as últimas vacas. Tia Dijova conversa com Tia Conceição enquanto limpa o terreiro com uma vassoura de folhas. Tem no canto da boca uma bituca, apagada, de Capri sem filtro, e já deixou arrumadas varas para a pescaria da tarde. Adim saiu antes do sol dirigindo a camionete verde sem capota. Foi acompanhar Sebastiãozinho numas compras, lá para as bandas de Rio Pomba. Marino está com eles. Da cozinha «de fora» escapa cheiro de comida. Tia Margarida e Vera preparam o almoço no qual haverá angu com couve colhida na horta, lingüiça de porco daquelas que ficam penduradas num pau, sobre o fogão de lenha, para defumar. Na varanda na qual o piso azul e cinza forma números oito, ainda sentindo o sabor do quente e espumoso leite da Casa Branca, um guri se distraí olhando uma aranha de enorme bunda salpicada de bolinhas brancas. Após dar um pulinho a cavalo até Grama ao lado de Tio Sebastião mais o Neca, ele preferiu por se à espera, não quis acompanhar as irmãs e as primas Maura e Zezé. Tomando a estrada da Fumaça, elas já devem ter chegado à casa da tia Cininha. Pode ser 1.974, ou, ainda, 1.975. A qualquer momento, um ônibus da Unida ou da Bassamar parará junto à entrada do sítio Barro Branco. Dele desembarcarão o pai e a mãe do menino que partiram de São Paulo para Juiz de Fora na noite anterior, prometendo chegar antes das dez da manhã seguinte...

Barulho d´água (Roubando a cena)

Roubando a cena
Eu levo a pipoca, você entra com o guaraná.
E ai, bem no meio da fita,
cortamos o barato deles,
roubamos a cena final com um espetacular beijo,
deixando nos nossos lábios o sabor da manteiga.
Aposto que os papéis se inverterão:
o mocinho e a estrela ficarão derretidos,
com água na boca,
doidinhos para saírem da fantasia,
caírem na real, apertarem o stop e, também,
prosseguirem a sessão lá no escurinho do quarto...

Barulho d´água (Disco voador)

Disco-voador
Acredito, sim, em disco-voador.
Mas, só se estiver na época.
Se pintar fora, for temporão,
duvido que passe de uma flor,
olhe lá, de um balão de São João...
Quando tanto, apenas um Fusca...

Barulho d´água (Chevette/O casal)

Chevette sem dono.

Dentro, um mendigo dorme.

Debaixo, um cão.

O casal

Cair da tarde, praça semideserta. Um casalzinho, entrando na puberdade, cabula aula e, risonho, brinca num canto. Ah, que delícia a vida: não demorará nada, o mundo estará rodopiando, rodopiando (se é que já não rodopiou, né?) atrás ou debaixo dum pé de qualquer coisa...

Rua Sandra Maria

Abacateiro ao fundo, casa de madeira. Outra, branca, com nicho pra Santa Padroeira.

Mamoeiro, ameixeira, jabuticabeira. Piso de bloquetes, quitanda, feira. A Sandra Maria quebra o ritmo, mas rima, pois também parece parada no tempo como a Matriz, aliás, como a cidade, inteira...

domingo, 18 de novembro de 2007

Barulho d´água (Morrinho-artilheiro)

Morrinho-artilheiro

Ninguém falou para ele que era bola para se agachar junto ao poste e aninhá-la bem presa ao peito, encaixada entre os braços, como bem sabia fazer, e não tentar um salto na horizontal, para não ser surpreendido, como acabou sendo, pelo “morrinho-artilheiro" . Mas já deveria ter percebido, logo após o fatídico jogo que terminou num frustrante empate, impedindo a promoção do time dele à divisão de cima, que o repórter da brava gazeta local, como de costume após tantas jornadas em que havia sido herói, naquele dia deixara de correr para entevistá-lo assim que o árbitro soou o apito — para o goleiro percebido claramente como um estampido à queima roupa, uma ensurdecedora buzina de transatlântico que varrera do ar o incômodo e, sim senhor, porque não? gélido silêncio que tomara conta do estádio após o farfalhar da rede às costas dele. Julgara que a tristeza era grande demais entre todos os que naquele dia contavam justamente com ele, e que por isso não houve nos instantes seguintes quem emitisse um simples comentário atravessado que o culpasse, entrementes, já no treino da semana posterior à decisão, o roupeiro não deixara sobre o banco do vestiário as luvas, o uniforme e as chuteiras, teve de abrir o armário e ele mesmo, apenas ele, pegar tais acessórios. O porteiro também deixara de tirar o cone do lugar onde preferia parar o carro no estacionamento do clube — depois daquele dia, sempre quando o veículo se aproximava, o dedicado funcionário ainda abaixava a portinhola da cabina, escondendo-se lá dentro até que o carro passasse. A garotada, aos poucos, deixou de ser vista nas ruas trajada com a camisa 1, em alguns casos até o nome dele acima do número havia sido pintado, arrancado, ou escondido com um tosco remendo. A filha do prefeito parara de telefonar convidando-o para um passeio no parque em dias de folga, passara a recusar ainda acompanhá-lo às idas ao shopping do município vizinho, maior e mais badalado, até dispensá-lo. Mais nenhuma mensagem de fã baixara na caixa postal dele, e, definitivamente, o jornalista o riscara da caderneta de fontes. Também rarearam, até pararem, os comentários de que o time campeão estadual estaria interessado em fazer uma proposta irrecusável para tentar o bi com ele a defender os paus. Sonhava em ir para a Europa, também, não contava para ninguém, mas alimentava esta pretensão -- além de, claro, ser lembrado pelo Dunga (“se até o Doni foi, também mereço!). Certo dia, no tradicional restaurante do logradouro, após darem as costas assim que ele entrou no recinto, e o garçom haver se esquecido pela primeira vez de puxar a cadeira para que se sentasse — como também antes agia, sempre amável e com um sorriso de admiração —, passou, enfim, a admitir o óbvio. Engoliu ar em seco assim que o ex-amigo trouxe depois da salada de entrada, sem que ele tivesse pedido, um frango assado inteiro, ao invés de picanha ao alho, prato predileto. Capitulou, enfim, quando descobriu não se tratar apenas de lenda, de uma inocente máxima do futebol: até a grama parara de nascer nas áreas dos campos onde jogava. Constrangido, pediu para ir embora, e radical, resolveu: iria abandonar a profissão. O presidente do clube, sem dizer uma palavra, topou na hora romper o contrato — fazendo questão de abrir mão da multa rescisória, além de fornecer a passagem que o levaria de volta a, felizmente, chegaram a comentar, tão tão distante terra natal. Nenhum ex-companheiro veio se despedir (“Cadê meu outrora inseparável companheiro de quarto?”), o motorista picotou o bilhete com cara de poucos amigos, sem grunhir um muxoxo, mas visivelmente inamistoso. Já dentro do ônibus, antes de o veículo entrar na última curva e deixar definitivamente a cidade, arriscou um derradeiro olhar para trás: já retocavam o grande painel onde, antes, em letras garrafais, brilhava o nome dele escrito em vermelho, acompanhado por uma caprichada imagem pintada à óleo, três vezes da altura do corpo dele, e pela frase “Obrigado!”, em agradecimento por tantas defesas importantes em temporadas anteriores...

Barulho d´água (Café amargo)




Café amargo
(Para Ubirajara Coutinho)
Tenho visto você por onde quer que eu ande, algumas vezes mais gordo, outras, mais baixo.
Um pouco mais cabeludo, mais moreno. Não, não são você, eu sei, mas têm seus trejeitos. Fumam ao seu modo. Os óculos são parecidos. Arrepio-me. Alegro-me. Por poucos segundos. Às primeiras visões, pensei, encanado, culpando-me, seriam uma forma de minha consciência me cobrar a visita que fiquei te devendo. Não a tardia que fiz, mas uma daquelas tantas para uma prosa sem pressa, para jogarmos conversa fora sobre cinema (ontem assisti àquele filme do John Ford, no qual o John Wayne e dois comparsas assaltam um banco e, ao fugirem pelo deserto, sem água, acabam fazendo um parto, enredo que o Ford associa ao nascimento de Cristo), sobre teatro, sobre o único sinônimo possível para futebol: Timão! Sobre poesia, sobre crônicas, sobre imprensa, sobre política, sobre mulheres (sobretudo, as alheias), sobre qualquer coisa. Conclui que tais aparições não são truques da mente. São provas de que um amigo jamais perece, se, um dia, o tivemos abrigado ao peito -- e não há morte capaz de despejá-lo de lá, tornar vago o lugar. É novembro. Engraçado: como tem feito frio! Há tantos jacarandás, sibipirunas, sabiás- do-campo. Ah, se você soubesse quem adotou uma poodle como "filha" -- isto não é uma puta viadagem, como você diria? Como deitar fora este café amargo por engolir, que, por mais que eu o sorva e adoce, teima em não descer, entalando na goela? Vele, valei por nós, Bira!





Ubirajara Coutinho, jornalista e um dos meus mais diletos amigos, deixou-nos en 16 de outubro de 2.002. Era dia do aniversário de meu pai, e eu, no momento do telefonena que comunicou a morte dele, caminhava, alinhavando uma crônica em minha cabeça para o seu Geraldo. Já esperava pela morte dele, mas a notícia travou-me, demoliu-me. No dia 27 de abril deste ano, 2007, chegou a hora do meu pai, lá se foi ele encontrar o meu camarada , dois corintianos, e sem que eu tenha conseguido pôr no papel aquela crônica...

Barulho d´água (Café Brasilis)

Café Brasilis
Simpática, a balconista do Café Brasilis serve-me o expresso com um tablete de chocolate e menta, aromas com rótulos em Inglês os quais ela pede que eu traduza, adoçante e inesperado carinho. Dispenso tudo, menos, e que Rosa me perdoe, o carinho. Deste ingrediente não abro mão, faço questão. Já vem com a água e o pó, quentinhos, não é cobrado, e além do mais, ajuda a espantar o sono que sinto perambulando perdido neste Arouche, tentando alcançar onde ouvem meus ouvidos alguns bolivianos musicopoetizando a praça com seus enfeitiçados charangos e queñas.

Barulho d´água (Horário Eleitoral)

Horário eleitoral
Todo político é homem de fé e de família, integro, inovador, ético, honesto, e educado. Somos nós quem os corrompemos ao elegê-los.
Às subidas
Às subidas, fecho o livro, recobro o fôlego. Enquanto respiro, fundo, sei lá por qual motivo, vem-me à mente a imagem da moça nua na capa da revista, que pequena linda! Uma folha cai no meu caminho, abrigo-a entre as páginas. Há sinal de chuva no horizonte...

Barulho d´água (Desimportância)

Desimportância
Coisa mais sem graça esta mania de mensagem móvel.
O chofer para o carrinho defronte ao portão da casa,
liga os trens, e os alto-falantes gritam umas frases sem sentido,
a vizinhança enxerida corre para ouvir, sai às janelas, espiando.
Pura papagaiada, invenção de quem não se ocupa com a cabeça,
de quem não tem panelas para limpar, ausente de vassouras.
Dona Isabel não acha. Negra forte, outro dia chorou demais,
comovida feito criança que ganha boneca de corda,
realizada com o mimo feito pela filharada, netos e bisnetos.
Presente de setenta anos, com direito a Roberto Carlos ao fundo.
Foi o assunto da missa, até o padre falou na homilia.
Todo mundo olhando, aquele meio-risinho besta ns caras, ai, ai.
Eu teria morrido em vexame, enfiado-me debaixo dos bancos,
o Glorioso que depois me perdoasse tamanho agravo.
(...)
É, acho que estou precisando contrair desimportância.
Daquelas que contaminam até a medula, cura nem no estrangeiro.

Barulho d´água (Encontro)

Encontro

Havia tempo não se encontravam
Combinaram caminhar no Ibirapuera bem cedinho
o amigo lembrou de manhã tem muito trânsito
E sugeriu ao colega um filme na sessão das duas
O outro achou melhor não ir -- sempre chove a tarde
E poderiam ficar ilhados por uma enchente
Jogaram o lero pra noite
Junto com um chopinho em Pinheiros
Seria legal, se bem que um tanto arriscado,
pois tem havido muitos assaltos
Então decidiram a saída seria teclar por chat
Mas não é que ao tentar entrar na web
o pc de um deles deu pau?

Barulho d´água (A poesia é loira)

A poesia é loira
A poesia é uma loira linda
daqueles tipos de anúncio de lingerie
de olhos castanhos e boca carnuda
com jeito amoroso e seios fartos
trajando pantalona preta com um corte em vê
-- invertido na altura das canelas --
botas de canos curtos
blusa verde musgo que deixa à mostra
apenas uma silhueta do busto
no qual se assenta delicado pingente
em formato esférico azul turquesa
sentada num domingo à tarde
à mesa de um café de shopping
à espera da sessão das 16 horas --
ela mesma uma atriz saída das telas.
Eis porque desejo a poesia
e a busco com todas as veias
e fibras e músculos do meu coração
e haverei de querê-la sempre
até o último quadro de minha vida
quando já subirem os créditos
antes do derradeiro suspiro que antecede o the end.

Barulho d´água (Nós, os corretos)

Nós, os corretos
Avançamos o sinal, estacionamos sobre a calcada e subornamos o guarda,
furamos fila em banco, deixamos amigos na mão, damos calote em parentes,
não seguramos a porta no shopping, violamos embalagens no supermercado,
e bloqueamos a porta do elevador com compras.
Apropriamos-nos do que é coletivo e pisamos na grama,
escarramos no chão, cutucamos o nariz e peidamos em público,
Fumamos onde é proibido, financiamos o trafico para dar uns só uns "tirinhos"
e ao afundar o nariz na carreira,
cobiçamos o cônjuge alheio e pulamos a cerca,
gritamos com nossos filhos, maltratamos nossos pais e chutamos os bêbados.
Assassinamos homossexuais, queimamos índio, barramos negros,
destruímos a natureza e desperdiçamos água e energia elétrica,
consumimos sem precisar, ignoramos a nota fiscal e sonegamos impostos,
Nós, os corretos, comemos sem ter fome, bebemos além da conta
e largamos os restos sobre a mesa.
Matamos a arte e a inocência rebolando a bunda com refroezinhos piegas
fechamos os vidros para meninos em semáforos,
e aplaudimos grupos de extermínio.
Amamos aquém do necessário, mas todos os domingos comungamos
ou congregramos, nós, os corretos,
sempre dizendo em tom de discurso que nenhum político tem moral,
e que nosso país é um fosso lotado de merda esquecido por Deus...

Barulho d´água (Freud explica?)

Freud explica?
Todo homem tem dentro de si um Mário Quintana.
A maioria, no entanto, prefere dar asas a um João Alves.

Barulho d´água (Lei do silêncio)

Lei do silêncio
A casa em ruínas: única testemunha que o viu morrer. Numa encruzilhada a poucos metros do lar, por volta das 4 horas. Doze tiros, um exagero, pois caíra fulminado já na primeira bala. Terra dura. Não teve nem mesmo o conforto do asfalto para morrer. Ficou lá estendido por horas. Ao amanhecer, o sol até mostrou a cara. Mas temendo represálias, recolheu-se atrás de uma nuvem. Só saiu de lá após a partida do rabecão, quase no momento de ser rendido pela lua. Pelo corpo muitos passaram apressados a caminho do trabalho, da escola. Vida que continua. Olharam-no com indiferença -- a maioria. E pouca piedade – só uma velha senhora fez o sinal da cruz. Também se ouviram muitas pragas -- e nenhuma oração. Inerte, da boca saindo um filete vermelho no qual aos poucos a poeira aderia, vasculharam seu passado, lembraram-se ou acrescentaram (afinal, o que é mais uma “azeitona” para um corpo já morto?) fatos e delitos:
-- Não era este que roubava na feira?
-- É, parece que é o malaco mesmo, mano...
-- E ele também não estuprava garotinhas?
--Pois não é? Agora ai, ó, tomou... Mortinho da Silva! -- Fala-se ainda que “puxava” carros no Grajaú e era “ganso”, este safado!
-- Se era cagueta não sei. Mas ladrão de galinha não tem fim assim...
E aquilo. E aquilo outro. E mais aquilo. Tudo a seu respeito disseram antes de levarem o relógio e subtraírem dele a carteira. Morto não precisa ser britânico e nem comprar ingresso para descobrir a cor da barba de São Pedro -- embora aquele, apostavam as próprias almas, já estivesse abraçado ao coisa ruim. Uma ratazana juntou-se à roda. Cheirou as poças de sangue. Chegou, inclusive, a prová-lo. Deu “linha” como todo mundo e amoitou-se para não violar também a inquebrável lei do silêncio quando a viatura da imprensa pintou na esquina. Os olhos assustados do “presunto” eram fechados neste instante, quatro horas depois do crime. O irmão raspa de tacho é quem fez a caridade. Este sabia: a ‘’capivara” do rapaz estava em branco, faria questão de declarar a quem ouvisse. Decidiu ainda que faria de tudo para limpar a honra da vítima. Menos vingança. Depois de acender uma vela, ajoelhado ao lado do cadáver, o caçula chorou o que precisava chorar. Os soluços iam aumentando à medida em que o fotógrafo, pitando um cigarro de palha, caprichava no enquadramento para capturar o instantâneo da manchete, e o jornalista de óculos de fundo de garrafa mirando-o mordia a caneta entre um rabisco e outro no bloco de anotações.
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Crônica classificada entre as vencedoras do Concurso de Contos e Crônicas da editora fluminense Guemanisse, de Teresópolis, que a publicou em antologia em 2007.

Barulho d´água (Amizade)

Amizade
Todo desengonçado, assim o cão acossava o ciclista via acima. Mexia o rabo, balançava as cadeiras para lá e para cá de maneira bem divertida enquanto perseguia a bicicleta -- no dorso negro dele o que havia de sol refletia, brilhando, mas ainda com sono, um alaranjado opaco que parecia tão frio quanto aquela manhã. Não ameaçava o rapaz que a conduzia, deu a entender que apenas queria fazer farra, talvez exibir-se para algum outro vira-lata por perto, uma cadela, mostrar quem é o dono do pedaço. Meu pai andou em duas rodas por muito tempo, de casa para o trabalho, de lá para o lar. Ia ao mercado, à feira, à missa, passeava conosco, sempre de Monark. E divertia-se quando os perros, fingindo valentia, mas às vezes bravos de verdade, avançavam ir para cima dele. Em uma ocasião quase levou um belo tombo, precisou parar, como conseqüência acabou picando cartão atrasado, fato raríssimo em sua vida de dedicado carpinteiro-marceneiro -- ser pontual e assíduo era motivo de orgulho para ele. Pois não é que o cachorro, ao tentar dentar o pneu traseiro, conseguiu enfiar e prender o focinho entre os aros, incidente que o fez gritar e grunhir de forma tão desesperada ao ponto de atrair a vizinhança e fazer parar até ônibus? Ainda hoje, quando se recorda deste caso, papai ri, embora tenha ficado apreensivo. Explica, movimentando dois dedos em forma de “v”, que precisou cortar dois aros com um alicate que sempre carregava no embornal, cuidadosamente, como quem faz uma delicada cirurgia. Gosta de lembrar quanto o totó pareceu feliz quando, finalmente, viu-se livre, momento que exibiu profunda gratidão nos olhos e nos dentes. Ficaram amigos por muito tempo depois, até seu Geraldo ter de mudar de rota por precisar ir trabalhar noutro canto. O cão, embora tenha mantido a mania contra outras pessoas, nunca mais deu atrás da magrela dele enquanto a amizade durou. Ao retornar para casa, depois de montar e desmontar móveis o dia inteiro, o velho sempre deixava um pouco de comida para o animal. E inspecionava minuciosamente o banquete antes de encher a lata de marmelada que servia de prato para o cão se fartar. O rango, sobras do restaurante onde almoçava e que, geralmente, vinham abarrotadas de carne, faria a festa de qualquer faminto e jamais tinha osso para não oferecer risco de o cachorro voltar a se ferir, ou, Deus nos livre, morrer.

Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
http://www.poesiafeitaemcasa.blogspot.com e http://www.karumi.nafoto.net, outros trabalhos que assino. A cópia e reprodução dos elementos aqui contidos sem a devida autorização, por escrito, e sem estarem negociados direitos autorais e outras questões comerciais, sujeitarão o infrator a entendimentos com a lei.

Marcelino Lima



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