Canequinha
Dia destes, folgado, sentei-me à varanda para ler um pouco e aproveitar o sol da manhã. Às tantas, veio Rosa com uma canequinha de café, recém coado. Sorvido o primeiro gole, pus por uns instantes a caneca no muro, ao alcance da mão. Uma distração ao tentar pegá-la e tunc, deixei-a ir ao chão! O pior não foi ter se esparramado o café trazido pela “patroa”: o estrago na canequinha, embora pequeno, foi o que me atazanou, fez-me lamentar um bocado. De esmalte azul, a canequinha fora de tia Miroca, exímia contadora de histórias da família, quando eu ainda usava calças curtas. Ora fábulas, lendas de todas as naturezas que os mais antigos transmitiram e ela postergava, ora terríveis e assustadoras sagas, ao luar no quintal, em torno da mesa da sala de visitas, à luz de lamparinas a óleo à cabeceira da cama, onde estivéssemos, sempre sorvendo um gole de café do bule que mantinha ao lado dela para alimentar a inesgotável narrativa, tia Miroca ia tecendo as tramas, arrancava-nos suspiros, gargalhadas, lágrimas, expressões de espanto, entre outras reações características.
Depois da morte dela, venci a peleja com irmãos e com primos (não sem arranhões ou sem desentendimentos), herdei a canequinha como objeto de estima. Há anos a carrego comigo para uma boca de pito ao trabalho, em momentos de devaneios e de descanso, até então, intacta. O inesperado tombo não retirará a aura de minha tia que a canequinha abriga, não apagará nada das memórias que permanecem nela armazenadas, imperecíveis. Mas, ai, por aquelas lascas (na verdade, que baitas feridas!) provocadas na boca e na asa da canequinha pela queda, fendas que expuseram o metal enegrecido por baixo da esmaltada tinta (e que, putz, agora tendem a enferrujar!), devem ter escapado reis, princesas e cavaleiros, corcéis brancos, dragões, fantasmas, boitatás, lobisomens, duendes, feiticeiras, mágicos, homenzinhos de pedra, o homem do saco, o trasgo que descia da montanha para beber o sangue dos bezerros, as estrelas de fogo, o esqueleto dançarino, a galinha enfeitiçada, os cães alados de três cabeças, os santos, os demônios, enfim, toda aquela legião de seres fantásticos com os quais tia Miroca enchia minha infância de sonhos, de medos e de fantasias...
Dia destes, folgado, sentei-me à varanda para ler um pouco e aproveitar o sol da manhã. Às tantas, veio Rosa com uma canequinha de café, recém coado. Sorvido o primeiro gole, pus por uns instantes a caneca no muro, ao alcance da mão. Uma distração ao tentar pegá-la e tunc, deixei-a ir ao chão! O pior não foi ter se esparramado o café trazido pela “patroa”: o estrago na canequinha, embora pequeno, foi o que me atazanou, fez-me lamentar um bocado. De esmalte azul, a canequinha fora de tia Miroca, exímia contadora de histórias da família, quando eu ainda usava calças curtas. Ora fábulas, lendas de todas as naturezas que os mais antigos transmitiram e ela postergava, ora terríveis e assustadoras sagas, ao luar no quintal, em torno da mesa da sala de visitas, à luz de lamparinas a óleo à cabeceira da cama, onde estivéssemos, sempre sorvendo um gole de café do bule que mantinha ao lado dela para alimentar a inesgotável narrativa, tia Miroca ia tecendo as tramas, arrancava-nos suspiros, gargalhadas, lágrimas, expressões de espanto, entre outras reações características.
Depois da morte dela, venci a peleja com irmãos e com primos (não sem arranhões ou sem desentendimentos), herdei a canequinha como objeto de estima. Há anos a carrego comigo para uma boca de pito ao trabalho, em momentos de devaneios e de descanso, até então, intacta. O inesperado tombo não retirará a aura de minha tia que a canequinha abriga, não apagará nada das memórias que permanecem nela armazenadas, imperecíveis. Mas, ai, por aquelas lascas (na verdade, que baitas feridas!) provocadas na boca e na asa da canequinha pela queda, fendas que expuseram o metal enegrecido por baixo da esmaltada tinta (e que, putz, agora tendem a enferrujar!), devem ter escapado reis, princesas e cavaleiros, corcéis brancos, dragões, fantasmas, boitatás, lobisomens, duendes, feiticeiras, mágicos, homenzinhos de pedra, o homem do saco, o trasgo que descia da montanha para beber o sangue dos bezerros, as estrelas de fogo, o esqueleto dançarino, a galinha enfeitiçada, os cães alados de três cabeças, os santos, os demônios, enfim, toda aquela legião de seres fantásticos com os quais tia Miroca enchia minha infância de sonhos, de medos e de fantasias...
2 comentários:
Querido Marcelino
Que belo texto! Eu também tenho duas canequinhas: as ultimas usadas por meu pai e por minha mãe, mas não são de (ágate? ágata?) . Imagino sua tristeza, porque pra mim essas coisas valem mais do que a mais cara jóia de ouro e brilhantes.
Sugiro que escreva ao "Suplemento Feminino" do Estadão e pergunte se alguém conhece algum restaurador. Vejo informações incríveis ali aos domingos. Vale a pena você tentar restaurar. Afinal, as princesas, os reis, os dragões, ,lobisomens não merecem virar "moradores de rua". Precisam voltar a viver na sua canequinha.
Tentei postar este comentario no seu Blog, mas não consegui. Se puder, e lhe interessar, coloque-o.
Mas o melhor de tudo é saber que você voltou a escrever.
Beijo
Risomar
Olá Marcelino, tudo bem?
É sempre muito bom receber notícias tuas e ler suas crônicas. O que acha de enviar uma delas para o JJ?
abraços e boa páscoa pra vc e sua família também
Sonia
Postar um comentário