quinta-feira, 28 de junho de 2012

Barulho d`água (Surpresa)


Surpresa




Não demorou muito para o menino juntar-se ao famoso bruxinho e ao casal de parceiros deste naquela manhã em que acordara determinado a vencer o medo e, com ajuda dos três, a descobrir por que cargas d água havia tantos barulhos no quarto dos pais. A porta sanfonada, às vezes, chacoalhava, aumentando o mistério e o pavor que sentia. Na versão do pai tratava-se apenas da ação do vento, responsável também pelos zumbidos que o piá ouvia e atribuía a um monstro dos mais escabrosos – daqueles verdes e gosmentos, com diversos olhos e bocarras, chifres a se perder a conta e outras características assombrosas. Esta explicação já fora dada mais de trocentas vezes, mas não adiantava: o moleque estava convencido de que os sons eram grunhidos de uma fera faminta, pronta a devorar quem ousasse penetrar naquele covil. Ah, mas em poucos minutos poria tudo à prova naquela heróica expedição, descobrindo com os próprios olhos quem estava certo, pensava alto, enquanto o quarteto avançava. Depois de a garota bradar um feitiço que fez abrir as enferrujadas trancas da porta, os quatro penetraram na floresta proibida ignorando os avisos para não irem em frente, embora tomando o cuidado de prosseguirem cobertos pela capa de invisibilidade em que se transformara um dos lençóis da casa. Xerox, gato siamês cópia fiel da mãe, reforçava o grupo segurando-se para não soltar um miado de pânico e aguentar as pontas mesmo depois de levar um pisão daqueles. Passo a passo, no escuro, sob ruídos de enregelar as espinhas, rumaram em direção à cama -- ou melhor, à escura caverna de onde deveriam provir os roncos que pareciam ainda mais fortes naquela manhã. Falando baixinho, combinaram só tirar a capa quando estivessem frente a frente com o bicho, paralisando-o depois de lançarem direta e simultaneamente os fachos das lanternas contra os olhos dele; um dos guris, o de cabelos ruivos, ponderou que os tiros poderiam sair pelas culatras se o ogro possuísse mais de quatro, observação que, como de costume, levou a sagaz mocinha a intervir para tranquilizá-los após jurar conhecer outra palavra mágica capaz de paralisar animais de quaisquer porte e natureza. Sentiram a tremedeira aumentar, mas chegaram confiantes, enfim, ao objetivo. Era a hora de agirem! Num gesto decidido, o menino removeu a capa! Quando descobriram que o motivo de tanto medo resumia-se a um inofensivo e simpático dragão de brinquedo (o mesmo que o filho vira à venda numa loja descolada e o qual a mãe prometera comprar quando tivesse grana) todos caíram na gargalhada, principalmente depois que o bichano cismou em cheirar o cuspidor de fogo e saiu com os bigodes chamuscados. Exultante com o achado, mais do que depressa o menino colocou os quatro bonecos numa sacola e saiu correndo do quarto para apresentar o novo amigo à vovó. Ainda teve tempo de notar ao deixar o local que o vento, entrando pela janela aberta, não só fazia a porta gemer, bem como enfurnava as cortinas, deixando-as como se estivessem grávidas...

                                                                   


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Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
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Marcelino Lima



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