segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Barulho d´água (O trio)


O trio

Três amigos que dormem numa das praças da cidade dividiam o morno sol das primeiras horas de uma nova manhã, mais um cigarro, enquanto comentavam o resultado do clássico disputado na noite anterior, estampado na manchete do diário esportivo "Na gaveta". O time de um deles vencera o arquirrival após uma épica contenda e este, exultante, comentava a jogada e o golaço que decidiu o acirrado duelo, já aos 48' da etapa final, autêntica pintura do craque da camisa 10 cuja foto ocupava seis colunas da primeira página. Após uma pausa, comentou em tom melancólico que teria sido tão bom de bola quanto o ídolo e brilharia nos gramados caso não sofresse uma fatídica contusão reponsável por afastá-lo das quatro linhas quando ainda era sub 20. Ao notar que os dois parceiros não embarcaram na prosa, levantou a barra da calça da perna esquerda, e na canela, revelou-se uma extensa cicatriz. "Olhem a cirurgia que precisei fazer logo após a entrada daquele zagueirão carniceiro, o Juvenal Scania! O cara me impediu de seguir jogando bola, de virar estrela e ter fama, desgraçado! Depois daquela entrada criminosa e várias operações, acabei chutado para escanteio pela cartolada e, foi assim, inconformado, que perdi o rumo nesta porra de vida!", disse, compungido. "Xi, ainda deve ser o efeito das pingas que tomamos ontem!", comentou o da ponta-direita, tabelando olhares zombeteiros com o colega. "Mas ontem não tomamos nenhuma, justamente para assitirmos ao jogo bem!", o ponteiro oposto emendou, esboçando um riso de trivela. Então, o primeiro, sem deixar pingar, arrematou: "Está explicado, então! O mano está sóbrio demais e, como só fica bem mamado, até já delira! O melhor é irmos logo procurar um cafézinho ou, daqui a pouco, ele estará pensando que é o Negão. E que nós somos o Riva e o Tostão!".
 


 
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Nota do autor: O braço do jogador cujo rosto não está visível, colado nas costas do Rei, é o meu e fui eu quem deu o passe para ele marcar!

2 comentários:

Marco Infante disse...

Marcelino,

conheço bem essa estória e seu personagem principal, além de molhar a goela constantemente com seus amigos (ex)futebolistas, não se perdeu na vida, não, graças a Deus.
Hoje ele é dono de jornal em Osasco...

Parabéns pela qualidade do texto.

Marco Infante

Érison Martins disse...

Gosto da sutileza com que detalha as cenas. Isso é para poucos (eu chego lá).
Sobre o personagem falastrão, sorte dele que naquela época não tinha esse monte de câmeras à beira do campo, senão certamente seria desmascarado...

Grande abraço!

Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
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Marcelino Lima



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