quarta-feira, 27 de março de 2013

Barulho d'água (Acuamento)

Acuamento

Amou pela última vez já nem sabe quando. A traição da mina não sai mais da cabeça. Perdeu o melhor amigo baleado numa emboscada. O intrujo dançou na mão de uma tropa da Cinza, “sem chance de voltar a fazer daquelas lanças”. Para piorar, a grana do bico do prédio em construção continua promessa (“Será que estão me enrolando?”). O derradeiro cigarro do maço virou há dias bituca. Se der o trocado no Paratodos, o não terá para o de comer (“Ou para a pedra...”). A noite está caindo (“Esta garrafa só tem meia dose!? Será que estão me roubando?”). O pandu nas costas ronca repetidas vezes, mas as panelas estão vazias,  o dono da quitanda de Zé nada tem, anda esperto, não aceita pendurar mais nada.
 
A noite assumindo, abafada, não choveu como se esperava. Recebeu o aviso de Dico Rato (“Ou paga, ou te asso no forno, te juro, vacilão!”), e desde a sentença ninguém mais da pala com ele. Quem o encontra sai de quebrada, muda-se de calçada, abaixa a cabeça, consulta o relógio, pigarreia, finge não conhecê-lo. E desgraça pouca, é bobagem: tem alemão dando geral direto no morro, até helicóptero voa penteando e filmando a comunidade. Engole, seco: será que algum filho da puta me caguetou?”

O calor atraindo moscas, lixo de dias amontoado nos cantos. Junto ao monturo há um exemplar do dia do NP, mancheta crime passional. Lera a notícia ainda de manhã, julgou que a suposta “sem vergonha, puta, mulher à toa!” teria merecido tantos pipocos na cara, rosto belíssimo desfigurado em seis colunas. Em seguida, suspirou: “com quem estará e por onde anda Suzana?”. E chorou. Como da última vez.

Agora a lua já vai à meia altura, começa a despencar. No copo a dose passa a ser imaginária. Um zumbido corta a rua (“Sirene? Talvez... mas será?”), estampidos rompem de novo a solidão até instantes apenas burlada pelo chilrear de um grilo (“Nova vingança, talvez... Será que ela está me chifrando?, ah, e se deram o meu barraco?”). Passos apressados nas imediações. Cães latindo, nervosos (“Será um vapor, mas a esta hora?”). Tremedeira. Delírio. Olhos fechados, um corpo na penumbra (“Ahhhhh Suzanaaaaa, vem, vem cá, cadela, hum, gostoso assim, isto, assim, ah, não, não vou te pagar camundongo, que você se foda! Ah, Maluzinha, hum, hum, hã, hã, Suzana, Maluzinha, Suzana, ai, ai, filho de uma puta, eu é quem vou te dar baixa, Suzana, Suzana, ah, hã, hã, ah português sovina, vê se enfia no rabo tua... tua... tua... minha, minha, minha Suzana, Suzana, Maluzinha, não, Suzana, ai, ai, ai, tesão, oh quitanda de merda, hum, gostosa, cachorra, toma, toma, tudo no teu rabo, vaca, ah, ah, ah, hum, hum, ah, ah, ah, ah, bando de babacas, por São Jorge, vocês nunca me pegarão, ah...”). Um leve choque, breve arrebatamento, os dedos, até o jato jorrar lépidos, ficam melados. Alívio. Vazio. Um sinistro chamado, sobressalto, e tome pancadas na porta. Taquicardia. A garrafa, vazia... O maço, vazio... A carteira, vazia... Azia. A alma, vazia. Dedos novamente ágeis, giro no tambor, só uma bala, porta abaixo, um estampido, um baque, seco, ao cair no chão: o próprio .38, agora, também vazio...

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Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
http://www.poesiafeitaemcasa.blogspot.com e http://www.karumi.nafoto.net, outros trabalhos que assino. A cópia e reprodução dos elementos aqui contidos sem a devida autorização, por escrito, e sem estarem negociados direitos autorais e outras questões comerciais, sujeitarão o infrator a entendimentos com a lei.

Marcelino Lima



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