sexta-feira, 29 de março de 2013

Barulho d'água (Mergulho)

Mergulho

Subiu e desceu a rua várias vezes naquele dia de feira-livre às primeiras horas da manhã. Pelo menos uma hora no vaivém. Achava-se, sentia-se. Tinha de fato o que exibir. Calça justa, formas estonteantes. O decote da camiseta na medida exata para atiçar desejos, fartos seios quase pulando pela abertura. O apregoar dos feirantes, maliciosos: “Moça bonita não paga, mas leva só se der beijinho!”. Inchava-se, a poderosa. Todos aos seus pés. A glória a despeito de olhares invejosos, de expressões de desdém enciumado, nem sempre caladas, das rivais. Comprar nada queria. Chegava-se às barracas apenas para conferir mais de perto um tolo ou um pretendido – que, dependendo do freguês, não deixa de ser otário, também. Entre apalpadelas maliciosas em frutas, perguntas dúbias sobre o frescor das hortaliças, um cheiro nas flores, assim ia aumentando a lista de basbaques. Na barraca de roupas, biquínis provados sobre as roupas atiçam ainda mais os desejos da atriz e da plateia (logo mais faria topless, o palco seria a praia). Antes de se ir embora, o japonês ofereceu pastel na faixa, que ela recusou alegando precisar manter a linha, aceitando apenas o guaraná alegadamente diet. Ao agradecer pela gentileza roçou provocantemente a ponta da língua sobre os lábios carnosos, murmurando “o senhor é um amor!”. O verdureiro também ganhou o dia, satisfeito por ter sido prestigiado não pensou duas vezes em ser generoso. “Para cativar a freguesa”, descontou metade do preço da alface e dos tomates.
Enfim, em casa, banho ao som dos Rolling Stones. Admirou o próprio corpo nu diante do espelho e ficou se lembrando da cara de todos aqueles papalvos – não é que até um carreteiro, fedelho ainda engatinhando na puberdade, havia se engraçado? Rápida refeição, salada temperada com limão, sem óleo, sem sal, semente de chia à vontade, arroz com dourado grelhado, suco de clorofila com hortelã.  Meteu tudo o que julgava precisar na sacola de palha e saiu. Estava chegando o momento pelo qual tanto ansiava, e agora depois de semanas planejando tudo se sentia corajosa, pronta para agir. Nada mais poderia atrapalhar a esticada dela até o mar, impedi-la de atingir seus objetivos: mergulhar em um ponto remoto, mas suficientemente à vista do atlético e sempre atento salva-vidas.

 

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Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
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Marcelino Lima



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