sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Barulho d´água (Na marca da cal)

Na marca da cal

Temporada após temporada, o Real Lisboa, outrora um dos melhores do país, vinha definhando, envergonhando os membros da colônia estrangeira que torciam pelas cores de tão gloriosa camisa. Depois de rebaixado no campeonato nacional, mergulhado em crise financeira devido às sucessivas más gestões, sem crédito e tampouco credibilidade na praça e com dificuldades para obter patrocínio até da mais singela padaria, o simpático clube cujo patrono era Luís de Camões se preparou como deu para o certame estadual, cortando, por exemplo, a tradicional pré-temporada numa estância serrana. A drástica medida não foi a única, nem bastou para segurar a derradeira das estrelas do time. Insatisfeito com o pagamento há meses atrasado, recusando-se à política de redução de salários imposta pela diretoria, Celso Ramos pegara o boné quando a nau naufragou e estava disposto, inclusive, a largar a vida dentro das canchas caso um empresário não o tivesse encaixado no maior rival -- ganhando o dobro, e em dia. O pior é que, devido à pindaíba, nenhum reforço de renome pode ser contratado. A comissão técnica, sem saída, viu-se obrigada a fazer o tradicional omelete sem ovos, montar um catado mesclando garotos da base com ex-jogadores em atividade, que há tempos deveriam ter já pendurado as chuteiras, mais obscuros boleiros de agremiações de expressão beirando zero.
Grito de campeão preso há quase dez anos, a torcida colecionava, portanto, motivos suficientes para desconfiar, temer por novo fiasco. E a bola nem precisou rolar por muito tempo para as previsões mais catastróficas irem uma a uma se concretizando. Logo na primeira rodada, o Real Lisboa levou tremendo “sacode”, e do caçula do campeonato! A verdade é que todo o time era uma perebeira só, mas Cristiano Reinaldo (ou CR) conseguia ser ainda pior e foi pego para Cristo. Lateral-direito abaixo da média, CR cometia proezas como errar passe a dois metros de distância do companheiro. Lento na marcação, de baixa estatura, durante o prélio de estreia tomou canetas, pedaladas, elásticos e até carretilha do ponta-esquerda adversário -- um atrevido crioulinho que acabou apontado como revelação do campeonato, rapidinho vestiu a amarelinha e virou alvo da cobiça das mais bem estruturadas agremiações europeias.
Estava dramática a situação! Nunca antes se vira tantos pernas-de-pau juntos e nada engrenava naquele arremedo de time de futebol que, somente na quinta partida, quando a defesa já era a mais vazada, conseguiu quebrar o lacre e farfalhar nas redes inimigas. O golaço contra do beque inimigo até poderia ter sido eleito o mais bonito do domingo! Ainda assim, necas dos primeiros três pontos, pois o pega ficou mesmo no 1x1. Este empate, se não poderia ser considerado refresco, ao menos serviu para unir o grupo em torno do “Professor”, cuja cabeça já estava a prêmio. Comissão técnica e jogadores, então, selaram um pacto, ensaiaram bem aquele discurso ao estilo de todos os boleiros: se fosse preciso, comeriam grama, colocariam os corações nas pontas das chuteiras para evitar novo descenso.
E todos, de fato, procuraram ir além das frases feitas e das próprias limitações. O Real Lisboa melhorou um tiquinho nos demais jogos, chegou a levantar fumaça ao faturar nove pontos seguidos, empenhou-se muito até a rodada final. Mas ainda assim chegou lá já com a corda apertando no pescoço, precisando de uma improvável combinação de resultados que excluía o empate na partida vital, da qual era o mandante. A cartolagem convocou os lisboetas a apoiar o time, reduziu preço dos ingressos, sorteou brindes. Uma famosa cantora – regiamente paga pela Federação -- rebolou a bunda num show meia-boca antes de o apito inicial soar, e durante o intervalo. As poucas testemunhas masculinas que atenderam ao apelo da diretoria, insensíveis, babaram aos protestos das mulheres que gritavam contra o que viam e classificavam como “rapariga sem-vergonha”, ao passo em que tentavam tapar os olhos dos piás. Um vira-lata sarnento, que ninguém soube como adentrou no estádio, pôs se a perseguir um gato gorducho que estava de bobeira pelas arquibancadas, lambendo os beiços por uma pomba. No encalço do bichano, o cachorro derrubou a caixa de isopor de um sorveteiro e quase levou o próprio a nocaute.
 
Cara a cara com o mito
 
Foram os últimos deleites antes do sofrimento dos torcedores, que enfrentariam um duro teste para descobrir se tinham coração forte. Vencendo por 1x0, o Real Lisboa cozinhava o galo já desde os 35’ da etapa inicial tentando manter o placar salvador; nas outras partidas todas as nossas senhoras invocadas pelos torcedores estavam de plantão: tomava bolas nas três traves e nas forquilhas, tirava a bola em cima da linha, escapava do empate com o gol escancarado. O ponteiro começava a dar a penúltima volta no relógio, o milagre estava prestes a se consumar quando o centroavante do Grêmio Batoré recebeu passe açucarado na área e deu um “come” no goleiro Casijas. Quando iria tocar para o balaio, levou um gancho de mão no pé de apoio. O árbitro, bem colocado, não pipocou: apontou a marca da cal e ainda fez valer a regra, mandando o faltoso para o chuveiro.
A expulsão obrigaria o treinador a colocar em campo o reserva da posição, se desgraça pouca não fosse bobagem! As três substituições já haviam sido queimadas para reforçar a retranca, e, sem saída, o treinador pediu ao capitão Oziel para achar entre os colegas quem encararia a fria de tentar defender a cobrança da penalidade. A maioria, claro, tirou da reta. CR topou, pôs as luvas e, humildemente, posicionou-se sobre a risca da morte para tentar a façanha de evitar o gol de empate. Os torcedores que estavam por perto da meta, mais pelo inaudito da situação do que pela fé que botavam no maior pereba do clube, correram para trás do gol, queriam ver o mais de perto possível a caveira daquele condenado. “Como este gajo conseguirá pegar pênalti, minha Nossa Senhora de Fátima, se nem é capaz de cobrar lateral?”, gritou um torcedor. Outro, em resposta, bêbado, devolveu:O CR defende! E vou entrar no campo depois para dar um beijo na boca dele!”
 O zagueiro Júlio Jurema, que já contava mais de cinquenta gols batendo pênalti, sem jamais ter errado um ao longo da carreira, eficiência que já o mitificava, foi incumbido da cobrança. O quarto-zagueiro batoréense era dono de um petardo desferido pelo pé esquerdo que de tão potente já chegara a rasgar redes e nem sequer distância costumava tomar para os tiros. Ignorando patéticos apelos dos adversários para que fingisse errar o chute, avesso à chuva de chinelos, de sapatos e copos descartáveis com conteúdos suspeitos que desabavam sobre si, JJ disparou o míssil em direção ao canto direito, batendo à meia altura uma bola que tinha tudo para ser indefensável. Tinha, pois num voo espetacular, o improvisado arqueiro desviou a pelota a escanteio. Coberto pelos companheiros que correram para abraçá-lo, Cristiano Reinaldo, ainda no solo, estendeu-se na grama, de braços abertos a olhar para o céu, curtindo a alegria e agradecendo a Deus. Desconfiado, o manguaceiro mirou a garrafa antes de atirá-la longe. Só deu fé que não estava sendo enganado pela bebedeira ao ser cobrado o córner. Abraçando o cão invasor, vibrou mais uma vez quando a zaga isolou novamente o perigo, mandando a redonda para as arquibancadas, de novo pela linha de fundo. A brazuca, única que os gandulas ainda não tinham feito evaporar, caiu perto dele e, enfim, a torcida resolveu colaborar, retendo-a o quanto pode. Sua Senhoria ainda fez teatrinho batendo os dedos no relógio, mas não bancou a besta. Esgotados os quatro minutos que ordenara de acréscimos, apontou o centro do gramado. Fim da epopeia, o Real Lisboa assim manteve honrosamente a vaga na elite. 
CR ajoelhou-se e fez, pela enésima vez, meio zonzo, o sinal da cruz. Ouvia gritarem o nome dele de todos os setores, mas sentia-se tão em câmera lenta que custou a se por de pé. Quase meia hora depois, quando enfim chegou ao vestiário, estava só de cueca -- e olha que, por pouco, não ficou tal e qual Adão, pois o pau-d'água insistiu em levá-la também como troféu e só a muito custo foi removido por policiais -- não sem lascar um tremendo beijo na boca do ídolo. Eleito pela imprensa o melhor em campo, CR faturou desde celulares com banda larga badaladíssimos a estojos de cosméticos. De quebra, pela primeira vez na vida, esteve em vários programas de televisão exibidos naquela noite. Numa das mesas redondas soube ao vivo, por intermédio do presidente do Real Lisboa, que teria o contrato revisto já no dia seguinte, e passaria a receber o dobro, além de uma placa de prata. Feliz com a situação, o vilão que virara herói ainda teve espírito para soltar uma anedota no ar, brincar com o dirigente com quem falava pelo telefone: só não toparia a renovação se outro clube propusesse levá-lo para debaixo dos três paus.
 
 

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O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

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Marcelino Lima



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