sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Barulho d´água (Saia-justa)

Saia-justa
(O filho, quebrando o silêncio na sala, deixando de lado o carrinho:)
-- Pai, o que é noite furada?
(O pai lendo o jornal, sem tirar os olhos da notícia, vago:)
-- É uma noite sem estrelas, meu filho...
(Um hiato sem palavras, nem ruídos, silêncio de novo, por alguns segundos:)
-- É?
(O filho de pé, olhando profundamente para o cara, a meia distância:)
-- É!
(Novo intervalo sem palavras, nem mosca se ouvia, mas logo voltam as perguntas:)
-- E o que é noite profunda?
(O pai começando a se sentir na parede, até já meio estorvado, contudo, ainda desdenhoso:)
-- É uma noite que demora muito para amanhecer, ôô, guri, cada pergunta!
(O menino saindo do canto dele, aproximando-se da cadeira, entre surpreso e insatisfeito, com dóceis olhos de soldado de pelotão de fuzilamento:)
-- Igual à noite que a gente dorme e não acorda mais, é, pai?
(O tal já com um olho na criança, o outro ainda no artigo, entortando a boca:)
-- Pode ser, pode ser...
(O bambino já escalando uma das pernas, implorando ser içado colo acima, ares preocupados:)
-- Pai, e... se um dia eu dormir uma noite profunda, o sol vai me acordar quando for amanhã, não vai?
(O pai meio desconcertado, confuso, nariz já ponta a ponta com o do filhote:)
-- Vai, sim, meu anjo, o sol nasce todos os dias...
(O fazedor de saias-justas com os braços enrodilhados ao pescoço do sujeito, cabeça afundada no peito dele, cravando ainda mais fundo:)
-- Mesmo quando a gente vira estrela, pai?
(O pai, antes tarde do que nunca, fechando o jornal, coçando a cabeçorra, antes de balbuciar "Minha Nossa Senhora!, respondendo, ainda sem pensar:)
-- Também. Eu acho...
(O porquê-o-céu-é-tão-alto? sentadinho no colo, perninhas a balançar no ar, na transversal em relação às do pai, corpinho levemente inclinado à frente, as duas mãozinhas partindo do queixo espalmadas no rostinho, olhar fixo no chão, cujo piso forma uma flor negra:)
-- E se eu virar estrela numa noite furada?
(Sem resposta. O pai apenas beija a nuca do moleque, acaricia os cabelos dele, solta um suspiro profundo, e sentindo-se gostosamente derrotado, pensa, mas não exclama. "Danadinho, esta me pegou!")

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Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
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Marcelino Lima



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