Troféu leitoa
Manhã ensolarada de domingo. Ao redor, nos barrancos, nas
sacadas das casas por perto do campo do Morro do Pela-Porco, desde que os
passarinhos começaram a anunciar a alvorada, não cabe mais ninguém. O Atlético do
Morro enfrentará o Vai de Bico FFC (Futebol, Folia e Cachaça) em mais uma
edição do tradicional clássico festivo do bairro disputado há mais de vinte
anos, sempre às vésperas do Natal. A rivalidade entre ambos é histórica, mas
quando os dois times se encontram neste clima proporcionam espetáculo cuja
marca registrada é o flar-play; ambos já fizeram oito vezes a final do torneio municipal,
registrando embates memoráveis que terminaram com quatro voltas olímpicas para
cada lado. Nesta ocasião tão especial, puxadas por mascotes, as equipes gostam
de juntas entrarem para o gramado, jogadores de mãos dadas. Os capitães
distribuem flores para as torcedoras adversárias, depois em torno do grande
círculo, jogadores, técnicos e trio de arbitragem puxam orações, pedindo a Deus
que abençoe a partida e que, ao final, o melhor time saia com a vitória.
Ao vencedor, destina-se sarada leitoa, cobiçado troféu que
repousa como majestosa taça sobre uma mesa paralela a uma das laterais. Ali,
fica devidamente guardada por representantes de cada equipe, coberta por uma
tela de pano para afastar moscas, recurso embora inútil contra os vira-latas
que enxameiam e rodeiam o bicho, olhando-o a lamber os beiços. A fêmea de suíno leva uma maça na boca e é
decorada com outras frutas e iguarias, apresentada prontinha para assar.
Enquanto rola a bola, “Nego Tião” vai acendendo o forno no quintal onde fica o
barracão no qual a festa continuará regada a chope, caipirinha, pagode,
paqueras, troca de presentes entre amigos-secretos e pratos que fazem a fartura
da Vila das Flores até a noite cair, ou o último bêbado ficar convencido de que,
agora, acabou de vez meu chapa, vaza que só no ano que vem!
O jogo é mesmo o acontecimento mais importante e aguardado
do pedaço. É a única ocasião em que se veem todos os moradores juntos. Quem já
se mudou ou trabalha longe sempre reaparece ou consegue folga. Dois meses antes
já começam os trabalhos envolvendo toda a comunidade, e a campanha de divulgação.
Palpites são lançados em meio à confecção de bandeiras e de bandeirinhas, as
ruas próximas ao campo são limpas, todo mundo dá um trampo legal, sua a camisa
para que tudo saia de acordo. Por costumar atrair centenas de pessoas,
inclusive a imprensa, muito sapo de fora aparece para coachar, tenta tirar uma
casquinha e aparecer sorridente na foto. Vacinados, os organizadores não
vacilam. Ajudados somente pelos vizinhos, os quais se cotizam para comprar o que
for necessário, sabem como dispensar patrocinadores e bajulações. Nem mesmo gambés
são solicitados para dar uma geral e cuidar da segurança: o ambiente é
respeitável, bem família, cordial, alegre. E ninguém bota faixa ou cartaz,
distribui santinho ou faz discurso baba-ovo pedindo voto. Pretende-se um evento
que transcorra sem conotações de nenhuma natureza, visa-se somente ao
fortalecimento dos laços de fraternidade e de amizade, ninguém tem colher de
chá ou espaço para dar recado. Mas, como quem é esperto não perde bonde...
Casamentos começaram ali, políticos conseguiram cadeiras,
boleiros se deram bem tirando proveito do fato de olheiros de muitos times
profissionais e jornalistas especializados pintarem para presenciar o duelo
entre alvinegros e alviverdes -- o “Clássico da Paz”, como ficou conhecido
depois da reportagem de doze páginas e belas imagens feita pela conceituada
Escore há alguns anos. Entre os craques nascidos no Pela Porco, três já vestiram
a amarelinha e mais uma legião reforça times europeus. Graças à matéria a fama
chegou inclusive para duas biscas de um conjunto bem medíocre, responsável pelo
agito nas redondezas e no dia da festa. Ambas assinaram contrato com uma
publicação do meio erótico por um cachê astronômico. Inicialmente posaram abraçadas,
apenas com as camisas do AM e do Vai de Bico. Completamente peladas terminaram
o ensaio, e nem é preciso contar: todos os exemplares se evaporaram em menos de
duas horas! A editora precisou preparar duas novas tiragens e na semana do jogo
ainda soltou uma fornada extra. Uma das moças virou estrela de show de
televisão e musa de um playboy carioca da gema que, por ter jurado entender de
apito, recebeu a honra de arbitrar o clássico, chegando minutos antes do
pontapé inicial a bordo de um reluzente conversível, trazendo a bordo a beldade
e a mãe dele – socialite arroz de festa, que, dizem as más línguas, teria até
sido amante de um ex-presidente da República. A outra dançarina também se
arriscou na telinha, deu-se bem à beça e irá contracenar na próxima novela do
horário nobre fazendo par romântico com um dos galãs mais cobiçados do mundo
artístico – várias cornetas, no entanto, também espalham que o moço não gostaria
nem um pouco da fruta. A aguardada presença de ambas na condição de madrinhas
dos times, ainda mais após prometeram autografar exemplares da revista, fez aumentar
o costumeiro público, e, de tabela, as expectativas em torno da partida.
Bola rolando. De um lado, o Atlético defendia
invencibilidade de 35 jogos. Derrotado nos dois anos anteriores, agora reforçado
por quatro vira-casacas (o zagueiro central Malega, o lateral-esquerdo Jonas, o
volante Penélope, mais o centroavante Bodinho), o Vai de Bico prometia dar o
troco. Rigorosamente equilibrado e disputado com extrema lealdade, o prélio
prosseguia em branco quando, aos 38 da etapa final, ocorreu uma falta à entrada
da área alviverde, pela meia-esquerda. A torcida alvinegra, em coro, pediu ao
ponta-esquerda Meia-Sola, temido pelo chute sempre potente e certeiro, para executar
a cobrança. Formada a barreira, Meia-Sola deu apenas um passo para trás. Ao
ouvir o apito, soltou, então, o tradicional petardo. De tão violento, o tiro desferido
fez a pelota chacoalhar o travessão do Vai de Bico, tomar a direção contrária e
viajar, viajar, viajar, viajar até se aninhar na rede da meta do próprio Meia
Sola! Cabeção, goleiro do AM, tentou evitar o incrível gol contra e deter a
bola que mais parecia um meteorito dando, em vão, um cinematográfico pulo. O
bandeirinha correu no ato para o meio do campo, mas o árbitro não validou o
tento: para surpresa e irritação geral, alegou impedimento de Bodinho.
Foi então que, deixando a pose de lado, a madrinha do Vai de
Bico classificou como ladrão e filho de uma que ronca e fuça Sua Senhoria. A
outra miss, bem ao lado desta, não gostou.
Em defesa do namorado, esquentou uma das orelhas da ofensora. A mãe do
rapaz também estava na tribuna de honra, igualmente tomou as dores do filho e
deu um cola no outro ouvido da esquentadinha, depois de chamá-la de baranga. Aceso
o pavio, a bomba explodiu. O pau comeu dentro e fora de campo, ninguém ficou
sem se atracar com alguém. Em meio ao forfé, a mesa na qual a leitoa repousava levou
uma bicuda, tudo subiu, depois foi ao chão. O sururu já durava alguns minutos
quando Nego Tião surgiu ofegante, deu um teco para o ar. Por alguns instantes
os ânimos serenaram, mas o jogo não teve sequência: ao perceberem o sumiço da porca,
todos mutuamente voltaram a se acusar. Sopapos, voadores e outros golpes
recomeçaram, cadeiras voaram, outros tiros espocaram, até repórter levou bordoada.
Ao perceber que não teria o que fazer, Nego Tião guardou o cano na cinta,
chutou a maça para o mato e resolveu vazar, contrariado e chorando. Atrás dos
vestiários avistou uma matilha de cães, além de um gato estropiado, entre os
quais estava o fiel Demolidor. Atendendo ao assobio do dono, o cachorro passou
a segui-lo, abanando o rabo e saltitante, apresentando nos olhos o brilho de
quem acabara de fazer um banquete.
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