sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Barulho d´água (Troféu leitoa)

Troféu leitoa
 

 
Manhã ensolarada de domingo. Ao redor, nos barrancos, nas sacadas das casas por perto do campo do Morro do Pela-Porco, desde que os passarinhos começaram a anunciar a alvorada, não cabe mais ninguém. O Atlético do Morro enfrentará o Vai de Bico FFC (Futebol, Folia e Cachaça) em mais uma edição do tradicional clássico festivo do bairro disputado há mais de vinte anos, sempre às vésperas do Natal. A rivalidade entre ambos é histórica, mas quando os dois times se encontram neste clima proporcionam espetáculo cuja marca registrada é o flar-play; ambos já fizeram oito vezes a final do torneio municipal, registrando embates memoráveis que terminaram com quatro voltas olímpicas para cada lado. Nesta ocasião tão especial, puxadas por mascotes, as equipes gostam de juntas entrarem para o gramado, jogadores de mãos dadas. Os capitães distribuem flores para as torcedoras adversárias, depois em torno do grande círculo, jogadores, técnicos e trio de arbitragem puxam orações, pedindo a Deus que abençoe a partida e que, ao final, o melhor time saia com a vitória.
Ao vencedor, destina-se sarada leitoa, cobiçado troféu que repousa como majestosa taça sobre uma mesa paralela a uma das laterais. Ali, fica devidamente guardada por representantes de cada equipe, coberta por uma tela de pano para afastar moscas, recurso embora inútil contra os vira-latas que enxameiam e rodeiam o bicho, olhando-o a lamber os beiços.  A fêmea de suíno leva uma maça na boca e é decorada com outras frutas e iguarias, apresentada prontinha para assar. Enquanto rola a bola, “Nego Tião” vai acendendo o forno no quintal onde fica o barracão no qual a festa continuará regada a chope, caipirinha, pagode, paqueras, troca de presentes entre amigos-secretos e pratos que fazem a fartura da Vila das Flores até a noite cair, ou o último bêbado ficar convencido de que, agora, acabou de vez meu chapa, vaza que só no ano que vem!
O jogo é mesmo o acontecimento mais importante e aguardado do pedaço. É a única ocasião em que se veem todos os moradores juntos. Quem já se mudou ou trabalha longe sempre reaparece ou consegue folga. Dois meses antes já começam os trabalhos envolvendo toda a comunidade, e a campanha de divulgação. Palpites são lançados em meio à confecção de bandeiras e de bandeirinhas, as ruas próximas ao campo são limpas, todo mundo dá um trampo legal, sua a camisa para que tudo saia de acordo. Por costumar atrair centenas de pessoas, inclusive a imprensa, muito sapo de fora aparece para coachar, tenta tirar uma casquinha e aparecer sorridente na foto. Vacinados, os organizadores não vacilam. Ajudados somente pelos vizinhos, os quais se cotizam para comprar o que for necessário, sabem como dispensar patrocinadores e bajulações. Nem mesmo gambés são solicitados para dar uma geral e cuidar da segurança: o ambiente é respeitável, bem família, cordial, alegre. E ninguém bota faixa ou cartaz, distribui santinho ou faz discurso baba-ovo pedindo voto. Pretende-se um evento que transcorra sem conotações de nenhuma natureza, visa-se somente ao fortalecimento dos laços de fraternidade e de amizade, ninguém tem colher de chá ou espaço para dar recado. Mas, como quem é esperto não perde bonde...
Casamentos começaram ali, políticos conseguiram cadeiras, boleiros se deram bem tirando proveito do fato de olheiros de muitos times profissionais e jornalistas especializados pintarem para presenciar o duelo entre alvinegros e alviverdes -- o “Clássico da Paz”, como ficou conhecido depois da reportagem de doze páginas e belas imagens feita pela conceituada Escore há alguns anos. Entre os craques nascidos no Pela Porco, três já vestiram a amarelinha e mais uma legião reforça times europeus. Graças à matéria a fama chegou inclusive para duas biscas de um conjunto bem medíocre, responsável pelo agito nas redondezas e no dia da festa. Ambas assinaram contrato com uma publicação do meio erótico por um cachê astronômico. Inicialmente posaram abraçadas, apenas com as camisas do AM e do Vai de Bico. Completamente peladas terminaram o ensaio, e nem é preciso contar: todos os exemplares se evaporaram em menos de duas horas! A editora precisou preparar duas novas tiragens e na semana do jogo ainda soltou uma fornada extra. Uma das moças virou estrela de show de televisão e musa de um playboy carioca da gema que, por ter jurado entender de apito, recebeu a honra de arbitrar o clássico, chegando minutos antes do pontapé inicial a bordo de um reluzente conversível, trazendo a bordo a beldade e a mãe dele – socialite arroz de festa, que, dizem as más línguas, teria até sido amante de um ex-presidente da República. A outra dançarina também se arriscou na telinha, deu-se bem à beça e irá contracenar na próxima novela do horário nobre fazendo par romântico com um dos galãs mais cobiçados do mundo artístico – várias cornetas, no entanto, também espalham que o moço não gostaria nem um pouco da fruta. A aguardada presença de ambas na condição de madrinhas dos times, ainda mais após prometeram autografar exemplares da revista, fez aumentar o costumeiro público, e, de tabela, as expectativas em torno da partida.
Bola rolando. De um lado, o Atlético defendia invencibilidade de 35 jogos. Derrotado nos dois anos anteriores, agora reforçado por quatro vira-casacas (o zagueiro central Malega, o lateral-esquerdo Jonas, o volante Penélope, mais o centroavante Bodinho), o Vai de Bico prometia dar o troco. Rigorosamente equilibrado e disputado com extrema lealdade, o prélio prosseguia em branco quando, aos 38 da etapa final, ocorreu uma falta à entrada da área alviverde, pela meia-esquerda. A torcida alvinegra, em coro, pediu ao ponta-esquerda Meia-Sola, temido pelo chute sempre potente e certeiro, para executar a cobrança. Formada a barreira, Meia-Sola deu apenas um passo para trás. Ao ouvir o apito, soltou, então, o tradicional petardo. De tão violento, o tiro desferido fez a pelota chacoalhar o travessão do Vai de Bico, tomar a direção contrária e viajar, viajar, viajar, viajar até se aninhar na rede da meta do próprio Meia Sola! Cabeção, goleiro do AM, tentou evitar o incrível gol contra e deter a bola que mais parecia um meteorito dando, em vão, um cinematográfico pulo. O bandeirinha correu no ato para o meio do campo, mas o árbitro não validou o tento: para surpresa e irritação geral, alegou impedimento de Bodinho.
Foi então que, deixando a pose de lado, a madrinha do Vai de Bico classificou como ladrão e filho de uma que ronca e fuça Sua Senhoria. A outra miss, bem ao lado desta, não gostou.  Em defesa do namorado, esquentou uma das orelhas da ofensora. A mãe do rapaz também estava na tribuna de honra, igualmente tomou as dores do filho e deu um cola no outro ouvido da esquentadinha, depois de chamá-la de baranga. Aceso o pavio, a bomba explodiu. O pau comeu dentro e fora de campo, ninguém ficou sem se atracar com alguém. Em meio ao forfé, a mesa na qual a leitoa repousava levou uma bicuda, tudo subiu, depois foi ao chão. O sururu já durava alguns minutos quando Nego Tião surgiu ofegante, deu um teco para o ar. Por alguns instantes os ânimos serenaram, mas o jogo não teve sequência: ao perceberem o sumiço da porca, todos mutuamente voltaram a se acusar. Sopapos, voadores e outros golpes recomeçaram, cadeiras voaram, outros tiros espocaram, até repórter levou bordoada. Ao perceber que não teria o que fazer, Nego Tião guardou o cano na cinta, chutou a maça para o mato e resolveu vazar, contrariado e chorando. Atrás dos vestiários avistou uma matilha de cães, além de um gato estropiado, entre os quais estava o fiel Demolidor. Atendendo ao assobio do dono, o cachorro passou a segui-lo, abanando o rabo e saltitante, apresentando nos olhos o brilho de quem acabara de fazer um banquete.
 

 

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Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
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Marcelino Lima



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