sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Barulho d´água (O menino magricela)

O menino magricela
Era uma vez um menino magro, ou melhor, um fiapo, bem magrinho. Era tão mirrado o coitado que, dependendo da ventania, precisava segurar-se em algo, num poste, numa cerca, no que fosse possível para não ser levado para longe como uma simples folha de papel. Chamava-se José Paulo, mas ninguém o conhecia, ou o tratava pelo nome. Quando queriam se dirigir a ele, por zombaria ou por costume, só o chamavam de Menino Magricela, apelido que ele ganhou cedo, dado pelo próprio pai, que num misto de carinho e de espanto, vivia dizendo «que bonitinho é meu menino magricelo». E de fato, além de frágil, o menino era bonito, parecia criança de televisão. Razões pelas quais, quando entrou para a escola, passou a ser o alvo da chacota de outros moleques -- que tiravam muito sarro dele, inventando outros apelidos, como «pau de virar tripa», «saco de ossos» e «pipa sem vareta» -- e ainda o centro das atenções das meninas --que suspiravam só de vê-lo passar. Nem mesmo os professores, inclusive quando faziam a chamada, pronunciavam José Paulo. «Menino Magricela?», perguntavam. «Presente, tia», respondia o garoto, automaticamente. De tanto escutar o apelido, já se acostumara. Aceitou, igualmente, sem nenhum complexo, a magreza. E de tal forma que passou a não dar mais bola nem para as piadas, nem para as alcunhas engraçadas que nele colocavam. Já os gracejos femininos e as propostas que recebia das garotas, embora o deixassem bastante feliz, também intimidavam-no um pouquinho -- o que as obrigava a tomar as iniciativas, afastando às vezes o arredio galanzinho.
Num certo dia, a caminho de casa, após a aula, soprou um vento muito forte e pegou o Menino Magricela desprevenido. Sem ter onde se segurar, ia sendo arrastado para não se sabe onde quando, no meio do caminho, chocou-se com nada mais nada menos que Maria Belinha, a mais cobiçada garota da escola. Gamada no guri como as colegas, Belinha quase desmaiou de felicidade ao ver que ele, literalmente, caíra no colo dela. «Puxa vida, desculpe-me por este encontrão, foi o vento que me carregou», disse Magricela, vermelho de vergonha. «Ora, que é isso, você não teve culpa não, sei que o vento trouxe você até a mim, quero dizer, até aqui, então, tá desculpado!», respondeu Belinha, emendando sem perder tempo «Mas, veja só como você teve sorte, né? Você poderia ter caído lá no meio da rua, em cima de um homem bravo, ou num espinheiro, mas que sooooorte, desabou logo em cima de mim! E olha: nem fiquei assustada, não, até acho que... hum, gostei!". «Gostou, como assim?», perguntou espantado o moleque, antes, de, no entanto, concordar «É, tá bom, de qualquer forma você tem razão. Já entrei em muita fria por causa do vento. Uma vez, cai em cima de uma tábua com um prego na ponta. Noutra, num quintal onde tinha um cachorro bravo. Até dentro do lago eu já fui jogado, ainda bem que sei nadar... Bom, mas já que você me desculpou, me dá licença, preciso ir», disse, já saindo, sem notar que os olhos de Belinha brilhavam.
A garota, no entanto, não queria perder a chance de ficar um pouco mais com o Menino Magricela. Agarrando-o pela mão, afirmou que ainda era cedo para ele ir embora e convidou-o para tomarem um sorvete num carrinho que ela conhecia, pertinho dali. Magricela, meio sem jeito, agradeceu, mas informou que não poderia ir, desculpando-se por não ter dinheiro. Belinha, porém, lembrou-o, esperta: ela convidou, portanto, pagaria pelos sorvetes. Percebendo que ficara sem jeito de negar, José Paulo cedeu, não sem alertar que precisavam ser rápidos, pois a mãe dele poderia ficar preocupada caso o garoto demorasse a voltar para casa. Prontamente, Belinha arriscou e se deu bem com uma piada: «Ah, então é só você falar para ela que o vento te levou para bem longe, bobo, por isso você se atrasou!»
Minutos depois, os dois estavam ao lado do sorveteiro. Depois que cada um chupou seu picolé, Belinha pagou e ambos voltaram a caminhar. Sentindo-se intimidado com a tentativa dela pegá-lo pela mão, Magricela tentou apertar o passo. Belinha percebeu: chegara a hora, seria agora ou nunca, sabia que não podia falhar. Com voz doce e trejeitosa, pediu para o amado segurar as pontas mais um pouco, pois tinha um pedido a fazer. Magricela corou no ato. Pressentindo que teria pela frente, solicitou, um pouco gaguejante, que Belinha falasse o que queria logo, estava ficando ainda mais tarde em relação à hora na qual deveria voltar da escola e, além do mais, poderia não ficar bem caso alguém os visse ali, juntinhos. «Então você está com medo de que nos vejam juntos, é? Será que você tem medo que digam que nós estamos, assim, namorando?» José Paulo ficou ainda mais enrubescido, esbugalhou os olhos e, com as pernas bambas, tentou explicar que não era bem aquilo. A confusão do garoto só deu mais munição para Belinha. Percebendo-o nas mãos, falou sem cerimônia: adoraria se pensassem que ambos estivessem namorando, o que deixou o garoto mais envergonhado. “O que se passa contigo, meu magrelinho, qual a razão de tanto medo de mim, hein, ser magro por acaso deixa você encabulado? » «Não, não é isso não... é que eu, bem... é que eu nunca namorei antes!»; «Ora, e daí, para tudo tem uma primeira vez, e eu também ainda não namorei ninguém, a gente vai aprender juntinho! », falou Maria Belinha, sentindo o coração aos pulos. «Mas você nem me conhece direito, será que não é melhor a gente conversar um pouco antes, sei lá, pedir pros nossos pais...»; «Que nada, não precisa, é só você dizer que topa e pronto, ou melhor, é só você me dar um beijo bem aqui, na minha boca, que o namoro começa!», continuou a garota, esticando os lábios em direção ao Menino Magricela, já de olhos cerrados. Sentindo-se flechado pelo cupido, experimentando lá no fundo uma estranha, mas agradável sensação de calor, José Paulo também fechou os olhos e decidiu beijar Belinha. Ambos tremiam de emoção, mal respiravam. Os lábios estendidos quase já se iam tocando quando soprou outra ventania. Como uma pipa taiada, o Menino Magricela, de novo, foi arrastado para longe. Belinha tentou alcançá-lo, mas sem pernas para acompanhar a lufada, desconsolada, sentou-se no chão, onde, com cara de tacho, ficou imaginando se o beijo do Magricela era tão gostoso como o sorvete de baunilha.

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Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
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Marcelino Lima



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