sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Barulho d´água (Demoninha)

Demoninha
“Putinha safada, cachorra, demoninha...”
Ao ouvir o terceiro xingamento, com toda a força dos braços, empurrou-o para trás, as duas mãos contra o peito peludo, tal qual golpe de machado. “Ah, meu senhor, desculpe-me, por ai, não! Aceito qualquer coisa que me peças. Fantasio-me de Cleópatra, de empregadinha doméstica, de enfermeira. Rainha a teus pés, brinquedo em tuas mãos, tua, sempre tua. Mas não me chames por demoninha ou por qualquer outro nome associado ao coisa ruim, imploro-te, não me zangue!”. Voz rouca, dócil, explicou serenamente o motivo de tal reserva moral ao novo parceiro subitamente arrancado das entranhas dela e que fitava-a sem nada entender. “Respeito à minha mãe, meu amo. Morreu depois de anos enferma sobre a cama. Que Deus a tenha em bom lugar! Minha santinha não podia ouvir nenhuma das alcunhas relativas ao Cão Trevoso que já logo se ia benzendo, medo dos fogos do inferno!”, contou fazendo o em-nome-do-Pai repetidas vezes. Meio riso canalha, o estreante fingia compreensão, enquanto matutava acompanhando os desenhos da fumaça que, ao se dissolverem, subiam ao teto: como poderia ter tal purismo a dona da maior fama entre as damas da noite, a alegria dos jovens, dos homens, dos velhotes, a mais assediada das zonas até pelas franchas, e justamente pelos modos libertinos que se entregava aos prazeres da carne, pela volúpia durante as inumeráveis farras a dois ou em bacanais? Entretanto, por estar bebendo pela primeira vez naquele co(r)po, embora já certo de que o ergueria mais quantas vezes quisesse, embriagado pelos licores que nele sorvera até o repentino chega-prá-lá, acedeu. “Melhor provar trigo cru do que sem pão ficar”, sussurrou ao ouvido da cortesã, movendo a língua em busca de um dos mamilos ainda intumescidos.  Cigarro pelo meio se consumindo em um dos cantos do quarto, logo estava lambendo-a de novo à entrada do braseiro, forno sempre em ponto de fundir aço e cujo calor sentira já durante as primícias ao queimar de leve a pontinha do intruso dedo introduzido lá  pela borda da calcinha.

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Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
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Marcelino Lima



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