domingo, 18 de novembro de 2007

Barulho d´água (Morrinho-artilheiro)

Morrinho-artilheiro

Ninguém falou para ele que era bola para se agachar junto ao poste e aninhá-la bem presa ao peito, encaixada entre os braços, como bem sabia fazer, e não tentar um salto na horizontal, para não ser surpreendido, como acabou sendo, pelo “morrinho-artilheiro" . Mas já deveria ter percebido, logo após o fatídico jogo que terminou num frustrante empate, impedindo a promoção do time dele à divisão de cima, que o repórter da brava gazeta local, como de costume após tantas jornadas em que havia sido herói, naquele dia deixara de correr para entevistá-lo assim que o árbitro soou o apito — para o goleiro percebido claramente como um estampido à queima roupa, uma ensurdecedora buzina de transatlântico que varrera do ar o incômodo e, sim senhor, porque não? gélido silêncio que tomara conta do estádio após o farfalhar da rede às costas dele. Julgara que a tristeza era grande demais entre todos os que naquele dia contavam justamente com ele, e que por isso não houve nos instantes seguintes quem emitisse um simples comentário atravessado que o culpasse, entrementes, já no treino da semana posterior à decisão, o roupeiro não deixara sobre o banco do vestiário as luvas, o uniforme e as chuteiras, teve de abrir o armário e ele mesmo, apenas ele, pegar tais acessórios. O porteiro também deixara de tirar o cone do lugar onde preferia parar o carro no estacionamento do clube — depois daquele dia, sempre quando o veículo se aproximava, o dedicado funcionário ainda abaixava a portinhola da cabina, escondendo-se lá dentro até que o carro passasse. A garotada, aos poucos, deixou de ser vista nas ruas trajada com a camisa 1, em alguns casos até o nome dele acima do número havia sido pintado, arrancado, ou escondido com um tosco remendo. A filha do prefeito parara de telefonar convidando-o para um passeio no parque em dias de folga, passara a recusar ainda acompanhá-lo às idas ao shopping do município vizinho, maior e mais badalado, até dispensá-lo. Mais nenhuma mensagem de fã baixara na caixa postal dele, e, definitivamente, o jornalista o riscara da caderneta de fontes. Também rarearam, até pararem, os comentários de que o time campeão estadual estaria interessado em fazer uma proposta irrecusável para tentar o bi com ele a defender os paus. Sonhava em ir para a Europa, também, não contava para ninguém, mas alimentava esta pretensão -- além de, claro, ser lembrado pelo Dunga (“se até o Doni foi, também mereço!). Certo dia, no tradicional restaurante do logradouro, após darem as costas assim que ele entrou no recinto, e o garçom haver se esquecido pela primeira vez de puxar a cadeira para que se sentasse — como também antes agia, sempre amável e com um sorriso de admiração —, passou, enfim, a admitir o óbvio. Engoliu ar em seco assim que o ex-amigo trouxe depois da salada de entrada, sem que ele tivesse pedido, um frango assado inteiro, ao invés de picanha ao alho, prato predileto. Capitulou, enfim, quando descobriu não se tratar apenas de lenda, de uma inocente máxima do futebol: até a grama parara de nascer nas áreas dos campos onde jogava. Constrangido, pediu para ir embora, e radical, resolveu: iria abandonar a profissão. O presidente do clube, sem dizer uma palavra, topou na hora romper o contrato — fazendo questão de abrir mão da multa rescisória, além de fornecer a passagem que o levaria de volta a, felizmente, chegaram a comentar, tão tão distante terra natal. Nenhum ex-companheiro veio se despedir (“Cadê meu outrora inseparável companheiro de quarto?”), o motorista picotou o bilhete com cara de poucos amigos, sem grunhir um muxoxo, mas visivelmente inamistoso. Já dentro do ônibus, antes de o veículo entrar na última curva e deixar definitivamente a cidade, arriscou um derradeiro olhar para trás: já retocavam o grande painel onde, antes, em letras garrafais, brilhava o nome dele escrito em vermelho, acompanhado por uma caprichada imagem pintada à óleo, três vezes da altura do corpo dele, e pela frase “Obrigado!”, em agradecimento por tantas defesas importantes em temporadas anteriores...

Nenhum comentário:

Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
http://www.poesiafeitaemcasa.blogspot.com e http://www.karumi.nafoto.net, outros trabalhos que assino. A cópia e reprodução dos elementos aqui contidos sem a devida autorização, por escrito, e sem estarem negociados direitos autorais e outras questões comerciais, sujeitarão o infrator a entendimentos com a lei.

Marcelino Lima



Marcadores

Arquivo do blog