domingo, 18 de novembro de 2007

Barulho d´água (Lei do silêncio)

Lei do silêncio
A casa em ruínas: única testemunha que o viu morrer. Numa encruzilhada a poucos metros do lar, por volta das 4 horas. Doze tiros, um exagero, pois caíra fulminado já na primeira bala. Terra dura. Não teve nem mesmo o conforto do asfalto para morrer. Ficou lá estendido por horas. Ao amanhecer, o sol até mostrou a cara. Mas temendo represálias, recolheu-se atrás de uma nuvem. Só saiu de lá após a partida do rabecão, quase no momento de ser rendido pela lua. Pelo corpo muitos passaram apressados a caminho do trabalho, da escola. Vida que continua. Olharam-no com indiferença -- a maioria. E pouca piedade – só uma velha senhora fez o sinal da cruz. Também se ouviram muitas pragas -- e nenhuma oração. Inerte, da boca saindo um filete vermelho no qual aos poucos a poeira aderia, vasculharam seu passado, lembraram-se ou acrescentaram (afinal, o que é mais uma “azeitona” para um corpo já morto?) fatos e delitos:
-- Não era este que roubava na feira?
-- É, parece que é o malaco mesmo, mano...
-- E ele também não estuprava garotinhas?
--Pois não é? Agora ai, ó, tomou... Mortinho da Silva! -- Fala-se ainda que “puxava” carros no Grajaú e era “ganso”, este safado!
-- Se era cagueta não sei. Mas ladrão de galinha não tem fim assim...
E aquilo. E aquilo outro. E mais aquilo. Tudo a seu respeito disseram antes de levarem o relógio e subtraírem dele a carteira. Morto não precisa ser britânico e nem comprar ingresso para descobrir a cor da barba de São Pedro -- embora aquele, apostavam as próprias almas, já estivesse abraçado ao coisa ruim. Uma ratazana juntou-se à roda. Cheirou as poças de sangue. Chegou, inclusive, a prová-lo. Deu “linha” como todo mundo e amoitou-se para não violar também a inquebrável lei do silêncio quando a viatura da imprensa pintou na esquina. Os olhos assustados do “presunto” eram fechados neste instante, quatro horas depois do crime. O irmão raspa de tacho é quem fez a caridade. Este sabia: a ‘’capivara” do rapaz estava em branco, faria questão de declarar a quem ouvisse. Decidiu ainda que faria de tudo para limpar a honra da vítima. Menos vingança. Depois de acender uma vela, ajoelhado ao lado do cadáver, o caçula chorou o que precisava chorar. Os soluços iam aumentando à medida em que o fotógrafo, pitando um cigarro de palha, caprichava no enquadramento para capturar o instantâneo da manchete, e o jornalista de óculos de fundo de garrafa mirando-o mordia a caneta entre um rabisco e outro no bloco de anotações.
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Crônica classificada entre as vencedoras do Concurso de Contos e Crônicas da editora fluminense Guemanisse, de Teresópolis, que a publicou em antologia em 2007.

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Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
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Marcelino Lima



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