domingo, 18 de novembro de 2007

Barulho d´água (Amizade)

Amizade
Todo desengonçado, assim o cão acossava o ciclista via acima. Mexia o rabo, balançava as cadeiras para lá e para cá de maneira bem divertida enquanto perseguia a bicicleta -- no dorso negro dele o que havia de sol refletia, brilhando, mas ainda com sono, um alaranjado opaco que parecia tão frio quanto aquela manhã. Não ameaçava o rapaz que a conduzia, deu a entender que apenas queria fazer farra, talvez exibir-se para algum outro vira-lata por perto, uma cadela, mostrar quem é o dono do pedaço. Meu pai andou em duas rodas por muito tempo, de casa para o trabalho, de lá para o lar. Ia ao mercado, à feira, à missa, passeava conosco, sempre de Monark. E divertia-se quando os perros, fingindo valentia, mas às vezes bravos de verdade, avançavam ir para cima dele. Em uma ocasião quase levou um belo tombo, precisou parar, como conseqüência acabou picando cartão atrasado, fato raríssimo em sua vida de dedicado carpinteiro-marceneiro -- ser pontual e assíduo era motivo de orgulho para ele. Pois não é que o cachorro, ao tentar dentar o pneu traseiro, conseguiu enfiar e prender o focinho entre os aros, incidente que o fez gritar e grunhir de forma tão desesperada ao ponto de atrair a vizinhança e fazer parar até ônibus? Ainda hoje, quando se recorda deste caso, papai ri, embora tenha ficado apreensivo. Explica, movimentando dois dedos em forma de “v”, que precisou cortar dois aros com um alicate que sempre carregava no embornal, cuidadosamente, como quem faz uma delicada cirurgia. Gosta de lembrar quanto o totó pareceu feliz quando, finalmente, viu-se livre, momento que exibiu profunda gratidão nos olhos e nos dentes. Ficaram amigos por muito tempo depois, até seu Geraldo ter de mudar de rota por precisar ir trabalhar noutro canto. O cão, embora tenha mantido a mania contra outras pessoas, nunca mais deu atrás da magrela dele enquanto a amizade durou. Ao retornar para casa, depois de montar e desmontar móveis o dia inteiro, o velho sempre deixava um pouco de comida para o animal. E inspecionava minuciosamente o banquete antes de encher a lata de marmelada que servia de prato para o cão se fartar. O rango, sobras do restaurante onde almoçava e que, geralmente, vinham abarrotadas de carne, faria a festa de qualquer faminto e jamais tinha osso para não oferecer risco de o cachorro voltar a se ferir, ou, Deus nos livre, morrer.

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Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
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Marcelino Lima



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