segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Barulho d´água (Delicadeza)

Velho no farol
vendendo buquês de rosa –
O sorriso é brinde.

Delicadeza
A caminho de casa, depois de um exaustivo dia de trabalho, ainda por cima tórrido, ela só queria chegar logo.Desejava um bom banho, só depois pensaria no que fazer com o resto do dia. Ar condicionado ligado, vidros fechados, rádio sintonizando notícias sobre o trânsito, sempre caótico naquele horário, ainda mais complicado por ser época de festas. Para não adiar o encontro com o chuveiro, se fosse necessário, buscaria uma rota alternativa. Perderia dez, quinze minutos, rodaria alguns quilômetros a mais, tudo bem, importante era chegar à casa, ah, com aquele calor! Zapeando ouviu a emissora recomendar que fosse evitada a avenida Estadual, justamente o corredor de ligação com a saída para atingir o bairro onde ela reside. Plano B, então. Neste caso, além do tempo a mais, um porém a deixava preocupada: passar bem perto da entrada de uma favela, e provavelmente, amargar um sinal vermelho num ponto considerado bastante crítico, motivo de várias recomendações das autoridades, para variar, jamais com uma viatura protegendo o pedaço. Perto do local, checou travas das portas, tirou a bolsa do banco do carona, escondeu-a sob o lugar onde estava sentada. Livrou-se do relógio, dos brincos, dos anéis, juntando-os com a frente do rádio no porta-luvas. Um cinqüenta metros antes do sinal, verde, até então, deu uma geral, não viu ninguém, nada suspeito ao redor, julgou estar com sorte e já ia dando graças a Deus quando... a luz mudou de cor!
Obrigada a parar, e, ainda por cima, primeira da fila, suspirou fundo, tamborilou os dedos ao volante, depois os apertou com as mãos fechadas e levemente suadas enquanto checava aos lados. Foi quando viu se aproximar do carro um jovem, roupas surradas, sujo, descalço. E vinha em direção à janela dela, cambeteando, parecendo bêbado, ou, sabe-se lá, drogado. Já se aproximando, o jovem notou: à direção havia uma moça, que, por sinal, parecia bem interessante. Ela percebeu a surpresa dele ao vê-la, pois ele chegou a inclusive demonstrar certo contentamento e esboçar um sorriso maroto. Então, pensou: ai, é hoje, o que vou fazer, meu Pai, ajude-me! O temor aumentou quando o sujeito encostou no vidro, levou a mão por trás da própria cintura, tirando de lá algo que trazia consigo. Encolhida, olhos cerrados, escorregou em direção aos pedais, não dava a mínima às batidas no vidro, apenas balbuciava rezas. A agonia era tanta que também não a despertava do pesadelo as buzinas insistindo para que seguisse logo em frente, já que o farol abrira. Não sabe quanto tempo depois teve coragem de descerrar os olhos e, instintivamente voltá-los para o rapaz. Neste instante, levou um baque, quase morreu... de vergonha! Todo delicado, indiferente aos xingamentos dos demais motoristas que já contornavam o carro dela empacado à frente, o camarada oferecia a ela uma rosa. E tinha no rosto uma expressão de quem avisa que só iria embora quando a gentileza fosse aceita e a flor pega...

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Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
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Marcelino Lima



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