terça-feira, 13 de novembro de 2007

Barulho d´água (Guarda-chuva)

Guarda-chuva
Nonato Junqueira encontrou num banco da estação um guarda-chuva daqueles bem grandes e chiques, de nylon, padrão tipo saia de escocês, pois xadrez em vermelho e verde. E era mesmo um senhor guarda-chuva! Com ele “seo Nonô”, como é tratado no bairro periférico da distante cidade onde o trem pára pela última vez ,antes de iniciar a longa viagem de volta, estaria protegido contra as águas descarregadas por São Pedro, contra erupções vulcânicas, furacões como o Katrina, o que Deus mandasse. Mais do que isso: notou que o uso cotidiano do guarda-chuva fez com que mais pessoas passassem a reparar nele; de repente eis que o amigo passou a ser alguém, carne e osso não só dentro da própria comunidade, mas onde quer que fosse se estivesse com o guarda-chuva. Um simples guarda-chuva, esquecido ou deixado para trás, veja só, deu um lustro na existência de um modesto e pacato cidadão. Ele próprio começou a sentir-se outro. No começo tímido, logo curtia aquela onda toda, passando em pouco tempo a orgulhoso daquela condição surgida tão inesperadamente. A vaidade, é claro, veio por tabela. Não mais punha a cara nas ruas sem se barbear, engraxar o combalido sapato. Camisa amarrotada, nem pensar. Vigia numa fábrica da Capital, seguia para o trabalho alinhado o mais possível -- o guarda-chuva, lógico, sempre a mão, chova torridamente ou faça calor torrencial, sol de fritar borracha. De manhã, quando voltava, apesar das marcas das madrugadas mal dormidas, caprichava de novo no visual -- afinal, sempre notava um olhar diferente, não raro, feminino, e até libidinoso – e olha que ele mal sabia o que está palavra significa, mas os olhares, ah, bem que os entendia, e os entendia bem. Já há três dias o interesse da dona de um destes olhares mantinha-se, ficava mais direto, profundo, penetrante. Bastaria um oi e o resto seria só encaminhar, já pensava, animado. Batata! Bingo! Encontro marcado. Sábado à tarde engabelou a patroa sem dificuldade. Ela ainda o advertiu que talvez fosse melhor não sair, havia temporal armado praqueles lados onde falou que iria. Sorriu, irônico, afinal... o guarda-chuva! Na hora marcada, ela na calçada oposta, ele debaixo daquele verdadeiro toldo sentia-se a salvo, protegido do dilúvio, e com espaço de sobra para dois. Quando o semáforo fechou, deteve o passo a tempo: um motorista maluco, sem respeitar o sinal vermelho avançava, o carro em alta velocidade quase o atropelou, fez espirrar todo o conteúdo da enorme poça d'água que havia junto ao meio-fio e o deixou encharcado, da cabeça aos pés. Não desmarcou o encontro, manteve-se altivo, apesar de molhado até a alma. Só decidiu que voltaria a ser o Nonô de antes assim que voltasse para casa, nada mais de encontros furtivos, de novo atenção só para dona Maria. O guarda-chuva esqueceria no trem.

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Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
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Marcelino Lima



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