quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Barulho d´água (Águia)




Águia
Aos 65 anos, sentindo-se para lá de bem mais disposta após o inicio das aulas de hidroginástica, dentro da piscina sempre à primeira fila, bem perto do professor, nunca em toda a vida vira moço tão lindo. Em troca da promessa de bancar mimos que a neta mais nova pretendia, arrastou-a sábado bem cedinho. Aos shoppings, merecia um maiô novo, menos comportadinho, não estava morta, ainda tinha o que mostrar -- tem certeza, dona Maria, é com esta abertura toda? Está caro, sim, mas vale a pena, vou levar, aqueles óculos escuros também quero, ai ganho desconto? Entravam por um, saiam por outro ouvido indagações e críticas: para que tatuar uma maçã mordida, e bem ai, tia? Tia é a vovozinha, quanto mais dona, apenas Lú, para ficarmos íntimos. Seu Sebastião ensimesmando cada dia mais, depois de velha estas manias, fala com ela, Aninha, vê se tem cabimento exibir-se desta forma, já mangam de mim no carteado da praça, uns risinhos abafados, umas indiretas, ai que eu quase morro de vergonha, isto sem contar que vai consumindo todas as nossas economias! A filha bem que tentou -- quer ver como foi em vão: que fique Tião lá com os outros aposentados, bando de inúteis, desperdiçando o tempo entre um ás e um valete, eu quero vôos mais altos, menina. Mais banho de loja: repara, não ficou linda em mim esta saia? E esta blusa, não valoriza meus seios, meu bem? A vendedora apenas coça a cabeça, não tem como discordar. Azar do companheiro de 47 anos que já não acerta a mão, o parceiro recomenda ir devagar, fingir que não ouve as provocações, ela estica na piscina o mais que pode, só mais umas braçadas, cherry, enquanto isso, esvazia um pouco o vestiário, vaga o chuveiro que tem água mais quentinha, ando com tanto frio, você não acha que para fevereiro anda baixa demais a temperatura? Um garoto, ao mergulhar, esbarra nas nádegas dela -- ah, não, deixa disso, bobinho, não é preciso pedir desculpas, que nada, relaxa! Durante o chuveiro, massagem nos cabelos com xampu revitalizante, depois, creme antissinais no rosto e no corpo todo, perfume importado, os cílios bem pintados, lábios carneados, marcou com o tatuador vir apanha-la após a aula, mas quem chega ao estacionamento é Shirley, outra das filhas. Em casa o pai a ponto de se matar, que história é esta de nova tatuagem? Rápido, vamolá que eu temo pelo pior. Atende o apelo, mas não responde às perguntas. Durante o bate-boca ironiza, faz piadas, a angústia do velho parece animá-la, quero vôos mais altos, e você já nem se limpa direito das mijadas, me erra. Silêncio, apenas uma lágrima escorre, ele bate asas primeiro. Fulminado, o baque do corpo no piso até trinca o revestimento, atrai o mundo para o quarto. O velório cheio, irmãs, tias, cunhadas de preto. Lú discreta, apesar de trajar vestido de cor, à cabeceira do defunto, um dos amigos de baralho dele, ao pé do caixão, olhares furtivos à vista de todos, até a neta, antes dando a maior força, meneia a cabeça. Não a constrange os sinais de reprovação. Mais para o final da tarde, já perto dos três punhadinhos, as beatas tirando os terços das bolsas, sacristão de Bíblia nas mãos, um rapaz de rabo de cavalo se achega. De pé, a viúva recebe as condolências e, enquanto corre olhos pelo saguão até finalmente posá-los em duas outras brasas, cochicha ao ouvido do rapagão: assim que eu tirar o luto, uma águia bem bonita, nas minhas costas.  Nas coxas a gente vê na hora, tá bom
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Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
http://www.poesiafeitaemcasa.blogspot.com e http://www.karumi.nafoto.net, outros trabalhos que assino. A cópia e reprodução dos elementos aqui contidos sem a devida autorização, por escrito, e sem estarem negociados direitos autorais e outras questões comerciais, sujeitarão o infrator a entendimentos com a lei.

Marcelino Lima



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