Condor
A
camisa do mais obeso já tinha, debaixo de cada axila, uma rodela empapada, e
talvez por ser ele quem tocasse o bumbo, o esforço das batidas ajudasse a
aumentar a sua transpiração, a qual também já escorria em filetes pelo rosto
ameríndio, formando colares em torno do pescoço dele. Não que os demais músicos
não sentissem o calor, ainda mais vestidos com aqueles coletes de lã tricolores
alusivos à bandeira pátria, sol a pino sem direito a nenhuma nuvem no céu capaz
de encobri-lo ao menos pelo breve instante de um sopro, ou brisa a farfalhar as
palmeiras. Aliás, impossível a qualquer um resistir a tão elevada temperatura,
deleite apenas para marreteiros de água de coco -- os quais, não se sabe de
onde, em dias assim, reproduzem-se aos montes, ocupando todo degrau e metro
quadrado de calçada que restar livre, acotovelando-se com outros vendedores de tudo
o que se pode imaginar, de pilhas para aparelhos eletroeletrônicos a panetones
de grife oferecidos a preços bem abaixo do mais barato dos mercados. Até a
música soava arfante, embora ainda assim alegre e vibrante, com uma nota de
panfletária; algo naqueles acordes parecia resgatar a força de um povo acostumado
a lutar pela sobrevivência desde a época da colonização espanhola -- antes, em
defesa dos metais de Potosí e outras riquezas usurpadas, hoje por algum trocado
depositado no chapéu de alpaca que espera pela contribuição, sobre a calçada,
ou como pagamento por um cedê, com muito, mas com muito esforço, audível.
São
quase 14 horas pelo horário de verão, nada de um ventinho para refrescar, todo
mundo parece estar concentrado no Centro, volta do ou vai para o almoço
esbaforido, a banda avisou que seria a última e preparou-se para tocar a saideira
-- até por que, mais a tardezinha, o mundo poderia desabar, trazendo inundação
na certa. O gordinho esfregou a palma da mão direita da testa para o queixo, limpando
o suor, o rapaz do meio dedilhou o charango, a flauta do ponta-esquerda entrou
no concerto e “Noite Feliz” com suave sotaque andino, aos poucos, passou a
ecoar pelo Anhangabaú, subindo até o viaduto e, de lá, esparramando-se tanto
para os lados do Municipal e da República, quanto para as bandas do Pátio do Colégio
e da Praça 14 Bis. O surrado chapéu, aos poucos, já transbordava. Pousado numa
luminária, um condor aproveitou para matar as saudades das Cordilheiras.
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