quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Barulho d´água (Condor)

Condor

A camisa do mais obeso já tinha, debaixo de cada axila, uma rodela empapada, e talvez por ser ele quem tocasse o bumbo, o esforço das batidas ajudasse a aumentar a sua transpiração, a qual também já escorria em filetes pelo rosto ameríndio, formando colares em torno do pescoço dele. Não que os demais músicos não sentissem o calor, ainda mais vestidos com aqueles coletes de lã tricolores alusivos à bandeira pátria, sol a pino sem direito a nenhuma nuvem no céu capaz de encobri-lo ao menos pelo breve instante de um sopro, ou brisa a farfalhar as palmeiras. Aliás, impossível a qualquer um resistir a tão elevada temperatura, deleite apenas para marreteiros de água de coco -- os quais, não se sabe de onde, em dias assim, reproduzem-se aos montes, ocupando todo degrau e metro quadrado de calçada que restar livre, acotovelando-se com outros vendedores de tudo o que se pode imaginar, de pilhas para aparelhos eletroeletrônicos a panetones de grife oferecidos a preços bem abaixo do mais barato dos mercados. Até a música soava arfante, embora ainda assim alegre e vibrante, com uma nota de panfletária; algo naqueles acordes parecia resgatar a força de um povo acostumado a lutar pela sobrevivência desde a época da colonização espanhola -- antes, em defesa dos metais de Potosí e outras riquezas usurpadas, hoje por algum trocado depositado no chapéu de alpaca que espera pela contribuição, sobre a calçada, ou como pagamento por um cedê, com muito, mas com muito esforço, audível.
São quase 14 horas pelo horário de verão, nada de um ventinho para refrescar, todo mundo parece estar concentrado no Centro, volta do ou vai para o almoço esbaforido, a banda avisou que seria a última e preparou-se para tocar a saideira -- até por que, mais a tardezinha, o mundo poderia desabar, trazendo inundação na certa. O gordinho esfregou a palma da mão direita da testa para o queixo, limpando o suor, o rapaz do meio dedilhou o charango, a flauta do ponta-esquerda entrou no concerto e “Noite Feliz” com suave sotaque andino, aos poucos, passou a ecoar pelo Anhangabaú, subindo até o viaduto e, de lá, esparramando-se tanto para os lados do Municipal e da República, quanto para as bandas do Pátio do Colégio e da Praça 14 Bis. O surrado chapéu, aos poucos, já transbordava. Pousado numa luminária, um condor aproveitou para matar as saudades das Cordilheiras.

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Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
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Marcelino Lima



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