sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Barulho d´água (Pegando leve)

Pegando leve
Travou-se a discussão e se deu o fato à calçada, à mesa de um boteco de interior sórdido, numa tórrida noite de começo de verão, luzes de Natal que enfeitavam casas e árvores já começando a piscar. Um deles, com ares de Rui Barbosa misturado com São Francisco de Assis, defendia curiosa tese: não se mata baratas a marteladas como tinha feito o amigo de copo, antes de dirigir-se ao bar. “Uma chinelada, vá lá, pode ser, não é tão cruel. Mas, colega, uma martelada não te parece demais?”. “Qual é a diferença? O certo seria ter piedade do bicho e apenas espantá-lo, pois, martelada ou chinelada, dá na mesma: matas o coitado e ponto! E olha que, a martelo, dás ainda à barata chance maior de fuga, já que nem sempre é pam! e, pimba! Precisas de ter boa pontaria, já que ela corre frenética, desesperada, prevendo seu fim, dificultando o golpe certeiro. A chinelada, tudo bem: a pancada é rápida, mais fácil. No entanto, nem sempre mata no primeiro golpe, o que pode exigir um segundo, de misericórdia, aumentando a dose de crueldade”, respondeu o outro, entre goles de cerveja. “Pode ser, pode ser. Mas, mesmo em se tratando de um inseto escroto, o qual, sobretudo neste calor infernal, infesta todo canto, surge do nada, considere comigo, o melhor é pegar leve. Talvez tenhas razão: nem matar, mas deixar viver, fazer a barata correr até entrar no esgoto, e, ali, junto à colônia e aos ratos, deixar que se acabe. Por outro lado, quem agüenta a ojeriza de só olhar para uma barata e não ceder ao impulso de querer esmagá-la com um bom pisão? Nem martelada, nem chinelada, um pisão, embora nesta maneira como estamos a considerar também não deixaria de ser maldoso”, retomou o primeiro. Replicando depois de limpar o bigodinho branco, o outro sugeriu: “Olha, pensando bem, deixemos esta história para lá! Vamos tomar a nossa sem espichar este papo que, te confesso, está me dando nojo, uma ponta de arrependimento. Desde que o mundo é mundo este ser rastejante existe e há quem diga que será capaz até mesmo de sobreviver à hecatombe nuclear. Sempre houve, sempre haverá baratas. Até a literatura já fez dela musa ou personagem de romances tal a atenção que despertam mesmo sendo repugnantes. Do Kafka à Clarice Lispector, ninguém fica indiferente. Então, o que fazer? É certo de que não dá para exterminá-las, nem todos os martelos e todos os chinelos dariam jeito.” Neste exato momento, quando o primeiro preparava-se para por mais lenha na fogueira, eis que uma barata enorme, suja e cascorenta vem cruzando célere o salão, ziguezagueando de antenas em pé no rumo deles e provocando banzé entre os fregueses. Mecanicamente, ambos levantaram os pés uns cinco centímetros do solo. Pensavam em pisotear a intrusa, contudo, de repente, olharam-se e sorriram de leve. Compreendendo um ao outro, tornaram-se a se ajeitar nas cadeiras, ergueram os copos, e brindando de tal forma que até estalaram-nos, em uníssono propuseram: “À vida! Saúde, meu chapa!”, enquanto a barata sumia pelo ralo existente debaixo da mesa.

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Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
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Marcelino Lima



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