quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Barulho d´água (Tristeza)

Tristeza
 

A maior parte do tempo as duas irmãs do defunto, mais a viúva: sozinhas velando o morto, madrugada comendo o sono. De vez em quando, um vizinho, condolências rápidas. Um bêbado espiando da ponta do pé, lá da rua mesmo, sem entrar, querendo saber quem este ai que esticou as canelas: era bacana, ou pé-rapado? Um cão sarnento dormindo debaixo do esquife. Moscas nos crisântemos. O salão, luzes quase mais fracas que a chama das velas, de um amarelo mortiço. Parentes um pé lá, outro cá, já fui! Sobrinhos ou netos, se nem os dois filhos? E se os distantes não chegariam a tempo, para que pegar estrada ou trem?  
 
A mãe, já de volta do cemitério, molhada pela garoa fina que enregelava até a alma, mal agasalhada pelo xale preto. Entra no quarto, surpreende o moço a bulir gavetas. Quer saber cadê o "bobo" do falecido e, irritado, exclama ao ouvir a resposta entre soluços: "Não acredito minha mainhizinha! Você enterrou o relógio russo com ele se daria uma boa grana no antiquário?! Mas então diga ai, velha, seja franca, vai: o pai era mesmo durango ou deixou algum em seu nome, sei lá, uma conta secreta, abre o jogo, vai!" Para não perder a viagem carregou consigo três camisas, dois cintos, gravatas, um risca de giz que apesar da falta de um botão na frente e já meio puído vestia elegante, de bom corte, pares de sapatos maiores dois números — "mamãe daria tudo aos pobres, que desperdício, meu! E se caso não servissem, aos amigos menos remediados!". Do carro na garagem, bye bye, rádio gravador. E que pai mais besta de antiquado, nem um cd player instalara, "oh, miserê, cara!"
 
Ao telefone informa à "menina": missa de sétimo dia. "Ai mamacita, bem na hora e no dia da festa de aniversário do Xandão, meu melhor amigo da academia? Nem pensar, dona Inês, vai rolar a maior balada na Lagoa Preta, perco não. E tem mais, prestenção, please, mama: o papai mor-r-eu, viste, está mor-ti-nho da sil-va, já era! Vê se desamua, não fica em casa curtindo viuvez! Oh, um toque esperto: a senhora ainda está conservada, caia na vida! Tem tiozinho enxuto na pista, dando mole, uns até bem remediados e resolvidos, veja se consegue me entender, sempre tem um cara legal, ou sei lá, até mesmo... um boy! É, quem é que vai ligar se for garotão? Vai nessa, mãe, bola pra frente, vida que segue! Um beijo, fui!" Clique, pam, pam, pam, pam...
 
Dias passando, iguais. Piores momentos a solidão da noite, cada vez mais longa. Tevê amanhece ligada, lâmpada do banheiro torna acesa. Únicos consolos: foto na cabeceira, visita de algumas amigas, as duas cunhadas, gente de igrejas, piedosa. E a gata, batizada Apache pelo camarada Ribeiro em homenagem aos peles-vermelhas que vira num bang-bang; ele sempre torcera contra John Wayne e demais cowboys e pelos índios, mania de tomar partido pelos mais fracos que o levara a defender desde moço a ideologia da foice e do martelo, traço de caráter e humildade que de porra nenhuma serviram, até renderam mote de gozação quando, já desiludido da vida pública, puxaram o tapete dele na convenção. Contas feitas, votos a favor suficientes, tudo somado na ponta do lápis, calculado, recontado... e o desafeto, pelego safado, é quem sai candidato pelo Partidão; tanto altruísmo, incansável em lutas intermináveis e por pouco não faltaram mãos para pegar nas alças do caixão a caminho da tumba.
 
É, vida que segue. Só não contaram para Apache, que lá, pelos cantos, não entende aquele súbito vazio da casa incompleta. Miarosa, agora faz fora do tanquinho de areia, melancolindo-se cada vez mais, olhar tristonho e perdido afundado na poltroninha da varanda onde não mais encontra aconchego de colo, aquele carinho dos dedos longos cofiando-lhe o pelame. Há três dias nada de leite, nem sequer polenta reforçada por caldo de frango, um mimo que antes devorava, sobretudo quando preparado pelo dono, desperta a fome da bichana...
 

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Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
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Marcelino Lima



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