quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Barulho d´água (Sardinha)


Sardinha
Sardinha hesitava. Entre ir e ficar, trocava alguns passos, mas, logo, estacava, não arredava, orelhas em pé, olhos atentos, como se fosse capaz de saber o que se passava bem lá adiante do focinho. Possuía a sabedoria que todo cão vagabundo tem, calejado de tanto andar para baixo e para cima, malaco das ruas, das vielas de tantas personagens, gente, bichos, odores, partilhas e coisas estranhas aos freqüentadores de pet-shops, fifis de berço vacinadas até contra gripe, jamais sugadas por uma mísera pulga ou hospedeiro de carrapato, casinha, tigela de ração balanceada até a boca, água fresca, manta e roupinha sob medida para aquecer, um colchão para relaxar os ossos, encostar e dormir o dia inteiro. Nada, portanto, poderia meter medo em Sardinha, conhecedor do frio, da fome remediada com restos de feira e de botecos, daí, o nome, da sarna, da indiferença, de dentadas brigando por cadelas, alvo de pedradas, de bicudas nas costelas e onde mais pegasse, circunstante de assassinatos até à luz do sol, tiro de raspão na barriga, perna quebrada e, Deus sabe lá como, meu velho, curada depois de um atropelamento, carregado certa vez por enchente – perambulava pela zona Oeste, quando, enfim, conseguiu vazar da enxurrada, fatigado, já sem pulmões, estava na Norte.
Sabia barulhos, distinguia vultos, decifrava cheiros, ao pisar a vibração que sentia nas patas já anunciava o que poderia topar na curva seguinte. Mais alguns passos, parou de vez, recuou de fasto meio metro. Perscrutou outro tostão, e, como já soubesse o que mais adiante o estaria aguardando, chispou, não foi, xará, pois vira-latas até poderia ser, mas, toupeira, só se fosse gato, e daqueles de concurso de peruas e de bichanas que de malícia não tem nem para descer do colo. Horas depois repórteres do mundo enviavam imagens da tragédia. Checando e ciscando entre escombros, como quem procurasse vidas, Sardinha chamava a atenção de todos e após pontificar em praticamente todos os noticiários por semanas, inclusive no principal telejornal da BBC, acabou indo parar no Corpo de Bombeiros.

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Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
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Marcelino Lima



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