quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Barulho d´água (Paletó e gravata)

Paletó e gravata
E esta agora: dois reais a mais para poder tirar foto com terno e gravata! Havia juntado, com muito custo, seis paus para poder tirar retrato e enviar uma cópia para a família distante, junto com uma cartinha, letra bem caprichada, dizendo tudo vai bem comigo aqui na cidade grande e até emprego bom em firma importante já arrumei, com salário que dá até para guardar uns troquinhos e, de vez em quando, despachar algum para ajudar nas despesas de casa, e, ufa, quem sabe? voltar, mas precisava da fotografia para ajudar a fazer a história colar. Bonito na foto, com roupa chique no 3X4, dificilmente alguém duvidaria dele. Economizou em pinga, em cigarro, deixou de dar umas bocadas. Imaginava a patroa beijando e apertando a foto contra o peito, suspirando agradecimentos ao Padim que ouvira as preces dela, mas, na real, via-se diante do coreano que dizia nón, nón! à promessa de que pagaria a diferença amanhã. Coçou a cachola matutando onde e como poderia descolar o resto; nesta hora sentiu fundo a falta do amigo da praça, pego por engano pela polícia, que Deus o tenha, Miruca, o colega se apertaria para não deixá-lo na mão.
Desanimado deu meia volta, saiu do estúdio. Já na calçada oposta virou-se de novo, mirou o paletó, peça rota, ensebada e carcomida pelos anos e pelo uso comum, mas para ele a exata diferença entre a felicidade da família e a tortura da dúvida. Apertando a meia dúzia de beija flores na mão, seguiu adiante. Resolveu esticar até a igreja onde pedira ajuda pela primeira vez ao desembarcar na Capital, com fome de quatro dias, uma pequena trouxa com pertences pessoais, doido por banho. Quem sabe o padre não ajudaria de novo? A capela era distante, chegaria mais rápido se fosse de trem, acontece que o bilhete levaria parte da grana reservada para a fotografia e ai os pulos teriam de ser maiores. O ronco do pandu fez sentir a fraqueza das pernas, ainda assim acionou a coragem para escalar o muro e alcançar a estação. Devido à tremedeira quase não superou o obstáculo, ousadia que custou alguns arranhões nos braços e nas canelas. Olhou para todos os lados para ter certeza de não haver nenhum segurança rondando, não poderia ser pego, ou apanharia feito gato morto até miar. Quando e aproximava para galgar-se à plataforma descobriu volumoso pacote debaixo da laje. Agachou-se, e já presumindo o que conteria, dirigiu-se até o saco. Abriu-o. Lá dentro, acondicionado em sacolas menores, descobriu balas, doces, chocolates, bolachas e outras guloseimas apreendidas pelos agentes de algum garoto que tentava vende-las nos vagões. Era o bilhete premiado caído do céu, o baú onde repousava um tesouro. Já dentro da composição desafiou outra vez o medo e encarou o trampo. De estômago forrado por um pacote de bolachas que almoçara, sorria à besta enquanto apregoava as mercadorias. Somado ao contentamento da esposa ao vê-lo na estica, via, também, a cara da menorzinha, a raspa de tacho Rosinha, recebendo das mãos do carteiro uma colorida caixa de bombons
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Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
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Marcelino Lima



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