quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Barulho d´água (Sabiá-laranjeira)

Sabiá-laranjeira
Numa certa manhã, meu pai armou numa das hortas do sítio do Barro Branco uma arapuca que ele mesmo fizera. Aquela era sua última oportunidade: dali a poucas horas voltaríamos para casa, em Osasco, mas, antes, ele pretendia capturar um dos muitos sabiás-laranjeira que ciscavam pelo chão, bicando frutas entre os gorjeares. Os sabiás, de vistosos peitos alaranjados, surgiam em bandos, eram bonitos de se ver, enchiam os olhos. Papai, entretanto, teve de se contentar com uma ave não menos deslumbrante: um pássaro-preto, de penas tão enegrecidas que quase se azulmarinhavam, canto melodioso. Um tanto contrafeito trouxe-o para São Paulo, Deus sabe como, dentro de um apertado alçapão, escondido entre pacotes de roupas, de comida e de outras tralhas, tudo acondicionado no bagageiro revestido de nylon vermelho do ônibus. Fabiano, o motorista da Cometa, antes de partir, desconfiou de que havia algo estranho entre aqueles “trens” ao conferir nossas passagens. Contudo, como tinha horário a cumprir e muita estrada para comer, tratou de logo assumir o volante do “Dinossauro” e partir. Seriam mais de quinhentos quilômetros entre as rodoviárias de Juiz de Fora, ainda instalada na avenida Getúlio Vargas, e a de São Paulo, defronte a estação Júlio Prestes. Em curvas, não só nas de Matias Barbosa, lugarejo das Geraes onde existe uma pedra enorme, a pacotaiada dançava para lá e para cá, ameaçando desabar no nosso colo. Ou, pior, na cabeça de alguém. Tentava imaginar o pampeiro que causaria um assustado pássaro-preto voejando entre os bancos até encontrar a liberdade por uma janela aberta. Tudo, entretanto, correu bem, embora nosso clandestino companheiro de viagem soltasse alguns pios de vez em quando, ora agudos, ora suaves, denunciando-nos e provocando duros olhares de reprovação que os passageiros atiravam em nossa direção. Oito horas e três paradas depois, fazendo jus ao apelido, a Terra da Garoa, enfim. Faltavam, agora, apenas o subúrbio (sempre lotado) até a estação do Quilômetro Dezoito e a “Gomes da Costa” (kombis que circulavam não menos apinhadas e, que o povo, de cáustica imaginação, apropriadamente comparava a uma lata de sardinhas) que nos deixaria defronte à Padaria Senhor do Calvário, na vila Yolanda. Chegando em casa, são e salvo, um bocado tonto apenas, o melro, como papai chamava o tisnado, ganhou uma bela gaiola, toda construída com varetas de bambu pelo hábil carpinteiro-artesão que meu velho era. A casa número 22 da rua Padre Paulo Xerdel passou a ser despertada por inesquecíveis sinfonias matinais. Seu Geraldo olhava e escutava admirado, coçava a cabeça do pássaro-preto demonstrando afeição sempre que o alimentava, na palma da mão. Porém, vincada no semblante, mantinha uma ponta de contrariedade, pois queria mesmo era o outro passarinho. Nestas horas, eu me encolhia, ressabiado, arrependido, mortificado em meu segredo. Papai teria trazido para casa o desejado sabiá-laranjeira não fosse a infantil curiosidade de um moleque que somente queria saber qual tipo de bicho estava na armadilha quando ela desarmou pela primeira vez.

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Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
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Marcelino Lima



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