sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Barulho d´água (Paquera)

Poente de outono.
quase encoberto pelas buzinas,
o gorjeio do sábia.


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Paquera
Ia começar a ler uma nova página quando o percebi aproximando-se pelo jardim do parque. Vinha se achegando de mansinho, e, embora houvesse certa lentidão a cada passo que dava, notei naquele jeito, que num primeiro julgamento pensei ser desconfiado, apenas o modo de ele se locomover, não uma forma cautelosa de ficar mano a mano com um estranho como convém numa cidade grande e violenta. Parei a leitura, fitei-o. Olhos nos olhos menos de dois metros um do outro. Deteve-se à frente da metade de um coco verde, lixo deixado ali por um transeunte desleixado -- o mais incrível: com uma lixeira ao alcance da mão.
Houve entre nós sintonia imediata. É claro, ele estava mais interessado em matar a fome. Mas sentiu poder vir para a refeição sem medo, percebera ao escolher o lugar e o prato para se refestelar que não seria de maneira alguma incomodado pelo cara sentado no banco de madeira pintada de verde. Transmitia esta confiança e uma ponta espontânea de admiração cada vez que, após tirar um naco da fruta, pose meio imperial, levantando a cabeça, voltava a me mirar por alguns segundos, peito estufado, sem piscar, antes de voltar a se servir. Como não queria mesmo que ele se assustasse calculava também meus gestos, procurando manter-me imóvel, sem fazer o menor ruído, focado só nele. A “paquera” durou algo em torno de um minuto. Já satisfeito, agora dando três desengonçados pulinhos, alcançou a base do tronco de uma das árvores, dali voou para o galho mais baixo, depois para o intermediário, para o terceiro mais elevado na seqüência e, assim por diante, até desaparecer entre as folhas e alçar ao céu azul daquela já quase metade de sexta-feira de outono. O pássaro com quem tive o prazer de dividir um instante poético e permitiu que eu encontrasse um pouco da poesia que há escondida em cada cantinho desta conturbada metrópole era um (ou seria uma?) sabiá-laranjeira. Neste momento, despedindo-se do sol que aos poucos vai caindo atrás do morro, aposto que gorjeia por ai e inspira alguém a escrever um haicai...


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Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
http://www.poesiafeitaemcasa.blogspot.com e http://www.karumi.nafoto.net, outros trabalhos que assino. A cópia e reprodução dos elementos aqui contidos sem a devida autorização, por escrito, e sem estarem negociados direitos autorais e outras questões comerciais, sujeitarão o infrator a entendimentos com a lei.

Marcelino Lima



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