quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Barulho d´água (Guache)

Guache
Quando ainda estava no céu, prestes a descobrir o que seria na Terra, um anjo travesso anunciou: "Vais ser guache na vida, mano!" Fiquei arara! Esperava ser árvore, flor, gente, tudo, menos...tinta! Diabos, pensei com meus botões. Poderia tentar reclamar, mas, como a tais decisões não cabe recurso, desencanei. Segui para a porta que o anjo apontou, e, quando vi, descia por um túnel de nuvens. Tempos depois, após quase secar numa empoeirada prateleira de papelaria, parei nas mãos de um menino. Quem me tirou do sufoco e me entregou ao guri foi um rapaz careca, brinco na orelha esquerda, lenço estampado com crânios preso à cabeça - para um pirata faltavam só o tapa-olho e o louro ao ombro. O pequeno deveria estar esperando por mim, pois escancarou um sorriso e estalou na face do pai um beijo interminável. Então, com jeito, destampou-me. Arrepie-me ao sentir a pontinha do fura-bolos dele tocar levemente meu conteúdo, para, em seguida, numa folha em branco, traçar o contorno do Sol. Logo, outros tubinhos iguais a mim de diferentes tons apareceram e entraram na festa. Neste instante, lembrei-me do quanto eu ficara "p" na fila do Paraíso. Agora, feliz, dava graças a Deus! Ao lado de outros trens de pintura guardados numa caixinha, aguardo ansioso por mais um momento de inspiração do piá. O sulfite que ajudei a tingir virou uma bela paisagem, sobre a qual há uma rubrica em vermelho: "Parabéns!". O homem que me comprou no armarinho e ajudou-me a descobrir o quanto é bom ser guache emoldurou a obra e, sempre que a olha pendurada na parede, ambos sorrimos.

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Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
http://www.poesiafeitaemcasa.blogspot.com e http://www.karumi.nafoto.net, outros trabalhos que assino. A cópia e reprodução dos elementos aqui contidos sem a devida autorização, por escrito, e sem estarem negociados direitos autorais e outras questões comerciais, sujeitarão o infrator a entendimentos com a lei.

Marcelino Lima



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