quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Barulho d´água (Perseguição)

Perseguição
A mijada saiu vigorosa, jorrando quente, quase queimando a mão com a qual ele segurava o pau. Ah, que sensação, corpo estremecendo como quem está gozando, quase um orgasmo. Muito mais do que prazer, no fundo, sentia que se ia aliviando, afinal, despistara-os, escapara, finalmente. E, feliz por tê-lo conseguido, nem reparara na imundície daquele banheiro de quinta no qual afoitamente se enfurnara, buscando-o mais para se esconder do que para tirar a água do joelho. Lembrando-se do sufoco que passara, balançando para não deixar nenhuma gota pingar na cueca, o estômago resmungou. Só pensava em dar o fora dali o quanto antes, alcançar a Júlio Prestes, entrar no subúrbio e, enfim, ver se a caminho de casa, devidamente salvo. Mas não podia vacilar, os dois caras, é lógico, bem poderiam estar pela área, precisava dar um tempo naquele cubículo onde já começava a ficar nauseado. A prudência falou mais alto até o momento em que descobriu estar sem cigarros. Ai o vício, aliado à fome, venceu a cautela. Resolveu arriscar-se, era hora de sair da toca,
Dirigiu-se, antes, ao lavatório, onde não encontrou nem torneira, quanto mais água. O nojo aumentou, fora forçado pelas circunstâncias, mas culpou-se por não ter escolhido um lugar melhor para se enfiar. Após checar que a barra estava limpa, encostou-se ao balcão com um olho na rua outro na estufa onde boiavam algumas salsichas. Pediu uma no palito, pingado e um maço de Mourad ao homem de avental gorduroso, barba e unhas por aparar do lado de dentro. Ouvido colado no rádio, embora o volume estivesse ribombando por todo o recinto, o tal acompanhava um daqueles programas do mundo cão e nem te ligo. Somente no segundo pedido, com ar de poucos amigos, dignou-se a atender o freguês, a quem tornou a dar as costas tão logo o serviu, voltando à novela radiofônica que descrevia a infelicidade de um ladrão de correntinhas apanhado e quase linchando no Anhagabaú.
Engoliu o embutido quase sem o mastigar e o líquido apenas morno de gosto salobro que imitava café com leite de um gole só. Juntava as cinco moedas que poria na boca do caixa pensando em nem pedir troco ou saber se ficaria devendo na conta quando uma mão, tocando-o no ombro, por trás, deixou-o gelado. Por uma fração de segundos, que para ele deve ter durado mais, sentiu profundo terror, soube o que é para a mosca estar nos palpos da aranha. Assim que descobriu que fora o padrinho de casamento que o tocara, entretanto, o sinal se inverteu. De apavorado, passou a arrebatado de contentamento, quase caiu duro foi é de felicidade! Santa coincidência encontrar ali o compadre a quem não via há cinco anos, desde que, terminada a Copa da França (que ambos cobriram juntos), aquele deixou a Tribuna, contratado a peso de ouro para cuidar das sucursais interioranas da Gazeta. E, por ser abençoada, apesar de ainda ser muito cedo, propôs cerveja para comemorar o inesperado encontro.
Para por o papo em dia escolheram uma mesinha, nos fundos da lanchonete, num canto que consideraram mais limpinho. O amigo contou que madrugara no pedaço por ter sido uma das vítimas do passaralho na Gazeta, ali chegara porque precisava discutir o mais cedo possível com advogados do Sindicato números da rescisão que julgava a menor. Já o apadrinhado mentiu. Estava diante de um camarada confiável, dono de caráter irrepreensível, com o qual poderia desabafar sem medo (mencionando inclusive, a terrível perseguição que madrugada a dentro sofrera e os motivos dela até se refugiar naquele sujinho), mas, preferiu inventar. Alegou que fora escalado para o pescoção que preparava uma edição especial da Tribuna e, como perdera o último trem, achara melhor ficar navegando até dar um horário mais cristão, no qual pudesse voltar para casa sem correr riscos nem ter de ficar perambulando pela Boca. Ai que, a caminho da estação, sem cigarros, e com vontade de urinar, resolveu entrar na lanchonete.
Assim foram esvaziando copos e garrafas. A sede era grande, assuntos e fofocas não faltavam. Se quisessem poderiam tricotar todo o dia, e ainda mais um pouco, que nem sequer desenrolariam metade do novelo. Já ia bater dez horas, solicitaram a saideira, outro conhaque, mas, claro, já tinham acertado esticar a prosa. Almoçariam num bulevar da Paulista depois de passarem pelo Sindicato. Á tarde, antes do chopinho no Riviera, cineminha, ôpa, como não? Depois, jantar no Baião de Dois, filé a cubana, como nos velhos tempos depois dos fechamentos. Nesta batida, o primeiro nem mais se lembrava do sufoco e dos perseguidores, todo a conversa que punham em comum deixavam-nos cada vez mais leve, levavam ambos a gargalharem com a justa alegria que convém a dois velhos chapas que a correria separara. Conta rachada, com direito a gorjeta (que o tiozinho do avental escroto meteu no bolso sem conferir), enfim, saíram para o sol. Trôpegos, nem perceberam: duas sombras, saindo detrás de uma banca de esquina, puseram-se a subir a rua na mesma direção em que iam...

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Três ou mais linhas de prosa... e de poesia


O velho lago
mergulha a rã--
barulho d´água.

Este blog, cujo nome deriva do haicai de Matsuo Bashô, tem por objetivo a divulgação de crônicas e outros gêneros literários de minha autoria -- consulte também
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Marcelino Lima



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